quinta-feira, março 28, 2024

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Camilo Castelo BrancoContos, Crônicas e Poesias

De abismo em abismo, Conto de Camilo Castelo Branco

De abismo em abismo

Eu é que não podia satisfazer a minha curiosidade com a descosida revelação de Valadares.
Muitas vezes acalorei a questão do cinismo, aplicando-a a Miquelina; mas este nome enfurecia-o de tal modo, que as nossas relações estiveram a romper-se, e reataram-se com a condição de eu nunca lhe tocar ligeiramente em semelhante assunto.
Sujeitei-me; mas, na primeira ocasião prosperada pelo acaso, alcancei esclarecimentos, que elucidam a degradação da pobre mulher.
Em 1848, Miquelina vivia ainda no Porto. A sua vida já a sabem. Como veio ela tão abaixo?
Foi assim:
Alguns dias depois da fuga vergonhosa com o defunto lacaio, Miquelina foi conduzida a Lisboa. A avó, que pôde sobreviver ao golpe, quis salvar a neta da cólera do filho. Este ausentara-se para Chaves, no momento em que a filha entrara em casa. De lá, escrevendo à mãe, dizia-lhe que desse à infame algum destino, porque, enquanto a sua presença envergonhasse aquela casa, nunca ele tornaria ali.
Daquela família estava em Lisboa um magistrado, tio materno de Miquelina. Foi este o encarregado de recebê-la durante alguns meses na sua casa.
Não se passaram muitos dias, sem que Miquelina revelasse os seus instintos. Namorava escandalosamente um homem, sem nome, que frequentava as janelas de um alfaiate, que morava em frente.
O magistrado suspeitou, e proibiu-lhe o uso das janelas. O homem, que, por força, havia de ter um nome, e poderia muito bem chamar-se José Maria, não era tão escasso de meios que não comprasse um criado da casa. O criado era o intermédio da correspondência, menos da última carta, surpreendida pelo magistrado. Esta carta autorizava José Maria a empregar a força judicial para tirar de casa Miquelina. Nesse mesmo dia, a perigosa “donzela” foi mudada para casa de um general, cunhado de seu tio.
O general era solteiro, homem de cinquenta e tantos anos bem conservados, admirador das boas mulheres, e vigoroso ainda para não desmentir o culto, quando se lhe pedissem provas práticas das teorias um pouco irrisórias na sua idade.
Tinha consigo duas irmãs, mais novas, que, mutatis mutandis, professavam as ideias do irmão.
Dito isto, vê-se que a casa, onde Miquelina foi reclusa, era um viveiro de moral.
Foi bem recebida, e até muito bem aconselhada. As irmãs do general falavam muito da virtude, e da honra. Quem as não conhecesse, acrescentaria duas mártires inéditas às onze mil virgens conhecidas, de que Byron duvidou, e eu não me sinto muito propenso a acreditar, nem o meu amigo Valadares.
O José Maria não sei que fim levou. Seria algum desses quatro que em 1845 se precipitaram dos “Arcos das Águas-livres!?” Se foi, não andou bem, porque fez as coisas de modo que ninguém fala dele. Os Werthers sabem escolher as ocasiões, senão… é melhor deixarem-se morrer de tédio, que é a morte que me espera a mim, e a ti, leitor, no fim deste livro, se não morreres no meio.
O general namorou Miquelina. Namorando-a, seduziu-a. Seduzindo-a, abriu-lhe a outra meia porta da corrupção.
Porque foi assim que as coisas se passaram:
Miquelina afeiçoou-se ao general, como se afeiçoara a Valadares, ao lacaio, e ao José Maria. Trazia o cunho da perdição! Era uma destas desgraçadas que a gente vê cair, cair, cair a despeito de todos os estorvos! Que Deus, ou que demônio imprime o movimento nestas máquinas, sem coração nem cabeça? Não se sabe! A verdade é que eu sinto vontade de chorar essas vítimas cegas de um destino bárbaro, e tenho fúrias de blasfemo quando me dizem que Deus se entremete nas coisas deste mundo… Vamos adiante, senão atiro a pena fora, e rasgo o papel…
Ora já vedes que o general era um devasso, e a pobre menina deve merecer-vos uma pouca de compaixão, se eu vos afianço que o amou, até ao ciúme.
Disseram-lhe um dia que uma mulher de capote e lenço entrara no quarto do general, que era ao rés da rua. Miquelina estava doente de cama. Ergueu-se com febre, vestiu-se precipitadamente, desceu as escadas cambaleando de fraqueza, escutou à porta do traidor, e ouviu risadas, e palavras obscenas.
Era noite, quando isto se passava.
As irmãs do general deram pela falta da hospeda, e desceram a procurar o irmão. Miquelina, quando as sentiu, na incerteza do que devia responder-lhes, fugiu. Fugindo, achou-se numa rua que não conhecia, atravessou umas poucas, chegou a uma praça onde encontrou umas mulheres esfarrapadas que a trataram por tu, e fugiu até deparar as escadas de uma igreja, onde um soldado lhe veio dizer palavras desconhecidas.
Fugiu ainda; mas a desgraça corria a par dela.
O frio da noite, e a febre do coração aniquilaram-na. Sentou-se num portal, e desmaiou. Uma patrulha deu-lhe com a ponta do pé, e a desgraçada não respondeu. Tomaram-na como bêbeda, e foram seu caminho.
Outra patrulha sacudiu-lhe a cabeça pelos cabelos. Miquelina gemeu, abriu os olhos, e pediu erguendo as mãos que a deixassem morrer. Estava perto do hospital de São José. Os soldados pediram socorro ao próximo corpo da guarda, e mandaram-na para lá.
No hospital, deram-lhe uma cama na enfermaria… não sabemos que enfermaria; mas parece que o facultativo, na visita de manhã, mandou retirar a mulher para um quarto particular, pago à sua custa.
Que foi o que ela disse ao médico? Nada. Seria nele um arrojo de caridade? Não. “Pois não tens uma palavra boa para explicar uma ação nobre?” Nobilíssimos leitores, deixai-me supor que sois melhores pessoas que o médico. O que ele queria era uma criada, com as feições de Miquelina. As despesas da cura, além de ficarem encontradas no seu ordenado, seriam pequenas. Uma febre benigna não resistiria ao tratamento de oito dias.
Mas, ao sétimo, Miquelina fugiu do hospital, favorecida pela enfermeira, em cuja casa foi residir.
Desde esse dia, chamou-se Rosa…
— Que bonita rapariga é aquela que está em casa da A*** na calçada do Duque?
— É uma rapariga da província, pela pronuncia: chama-se Rosa, mas não diz de onde é, nem quem a trouxe ali.
— Parece bem educada!
— Parece… e não é desbocada… Não tem ainda a consciência do seu ofício… É necessário que perverta a linguagem, se quiser celebrizar-se…
— De quem falam vocês? — disse um terceiro, que, na Praça do Rocio, veio associar-se ao grupo.
— Daquela Rosa, que tu denominaste um querubim precipitado na tua poesia.
— E é…
— É!… pois tu sabes a vida dela?
— Sei…
— Contas?
— Não…
Este terceiro era Valadares.
Teve ele coragem de vê-la face a face?
Não teve: entrou ali com uma máscara na terça feira de Entrudo.
Conheceu-o ela? Conheceu: porque no dia imediato desapareceu de Lisboa.
É por isso que eu a vi no Porto em 1848…
O general é hoje conde. O menos torpe dos florões da sua coroa é este… Foi honrado e hospitaleiro!…
Valadares embriaga-se todos os dias, e não pode assim viver muitos mais, porque já não sente no paladar o ácido do conhaque.
E Miquelina?
Há mais de seis anos que os estudantes da escola médico-cirúrgica do Porto a retalharam fibra a fibra com os seus escalpelos observadores.
Já vedes que morreu no hospital, e foi em pedaços atirada ao monturo da santa casa, depois de se prestar, como cadáver, às lucubrações da anatomia.
Podeis não acreditar tudo, ou parte disto… Olhai, porém, que vos não dei aqui a verdade descarnada como ela é no conto melindroso, que vos contei. Escondi-vos metade.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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