quinta-feira, abril 18, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasD. João Câmara

O primeiro socorro, Conto de D. João Câmara

O primeiro socorro

Mal se tinham acendido as luzes no Coliseu, quando ele entrou devagarinho, triste, um pouco asmático, meneando a cabeça pálida.
Parece que mais lhe pesava a corcunda naquela noite.
Andando pelo corredor estreito, que divide os camarotes dos lugares mais baratos, foi encostar o queixo à teia de pinho, pintada de branco, junto do caminho atapetado, que a cantora devia seguir do camarim para o palco.
Era uma artista célebre a que se estreava. Com oito dias de antecedência tinha-se espalhado com profusão pela cidade, colado aos vidros das portas dos armazéns de música, pendurado em quadros às esquinas das ruas, o retrato litografado de mademoiselle Eva d’Avenay.
Um dia, o corcunda, passeando depois do jantar, como costumava, pela rua do Ouro, erguendo a cabeça, deu, de súbito, com um daqueles retratos na loja dum livreiro.
Parecido ou não, representava uma mulher lindíssima. Ficou extático um momento; sentia tremer-lhe o coração um pouco, e como que dois dedos apertarem-lhe amorosamente a garganta.
Entrou envergonhado, e com voz sumida perguntou ao caixeiro se aquilo se vendia.
— Um tostão.
Ele que nunca olhara para mulher senão cá de muito baixo, coitado, assentado no meio da espinha as abas do chapéu, que (fato pouco vulgar) por detrás é que amoleciam, podia finalmente, por um tostão (barato!) contemplar uma mulher bonita à vontade, sentado comodamente, sem ser visto e sem ter de corar.
Quando saiu da loja, levando na mão o rolinho de papel pardo, que embrulhava a litografia, caminhou mais depressa, quase alegre, menos asmático.
Chegou a casa, desdobrou o retrato sobre a mesa, encostou nela os cotovelos, e com as fontes apertadas nos punhos cerrados, passou parte da noite em contemplação da estranha formosura.
Parecia-lhe que afinal aquela mulher tinha que refletir para ele uma parte de tanto amor, que todo lhe estava dando e que era o primeiro que sentia.
Desejos haveria tido, mas amar… Quem? Se, quando passava, todos se riam e ninguém, ninguém jamais sorrira para ele!
Quando recordava tempos longínquos, via, como através de um nevoeiro, uma mulher a quem ele estendia os bracinhos magros, que se lhe debruçava sobre o pequenino berço — tão pequenino! — e que o envolvia nutria atmosfera de amor, beijando-o muito. Mas essa mulher também não sorria… chorava.
Chorava naturalmente de vê-lo tão fraquinho, tão feio, tão enfezado. Se o visse agora, cheio de rugas precoces, com os cabelos alvejando-lhe nas fontes, e triste sempre, sempre tão triste!
Por isso contemplava aquele retrato, como se fora possível aquela mulher loira, voltar a cabeça no papel e enviar-lhe, só para ele, aquele sorriso que, por todas as esquinas, por toda a parte, ela enviava… para quem? — para coisa nenhuma; que o retrato era a três quartos e ninguém sabia para onde olhava.

***

Os porteiros, cada um à sua porta a receberem os bilhetes, cantarolavam os bocejos e assoavam-se com estrondo para espertar. O teatro continuava às escuras.
Um homem gordo entrou devagar, com as mãos nas algibeiras do colete, assobiando por entredentes. Sentou-se, deitou as pernas para cima da cadeira que lhe ficava defronte, pôs o lenço entre o pescoço e o colarinho e, tirando um palito da algibeira, pôs-se a espalitar os dentes, com um ar maçado.
Duas ou três filas mais adiante, um outro abanava-se pachorrentamente com o chapéu, virando um bocadinho a cara para lhe ir o fresco às orelhas.
Conheciam-se e começaram conversando em voz alta:
— Olá, conselheiro! Então também deitou até cá?
O homem gordo encolheu os ombros:
— Não há mais nada que fazer!
E depois de espalitar um bocado:
— Que isto cheira-me a fiasco.
— Ora! — disse o outro com ar convencido e para estar de acordo. — A tal mulher…
— A gente cai em cada uma!… — terminou o conselheiro.
E, encostando a cabeça para trás, deu largas a um bocejo formidável.
Um arrumador, que passava naquele instante, sorriu-se aduladoramente, curvando-se muito.
— Senhor conselheiro…
— Adeus, seu José.
E fechou os olhos, como se estivesse dormindo.
Ah! se o corcunda não andasse tão rasteiro, se não fosse tão fraquinho, como perguntaria àquele homem, frente a frente, com que direito bocejava, quando ele estava ali sentindo o coração a estalar-lhe no peito!
Os músicos com os instrumentos dentro de saquinhos de chita, começaram a entrar, limpando o suor, resmungando árias, espreguiçando-se.
Deram oito horas. Chegaram umas carruagens a trote largo. O teatro encheu-se rapidamente.
Ouvia-se o sussurro das conversações e o ranger das varetas dos leques.
Os lugares junto da teia, a que se encostara o corcunda, eram da predileção de muitos; pouco a pouco foram-no empurrando e ele, apertado, aflito com a asma, que logo o atacou violentamente, ouvia por detrás umas risadinhas zombeteiras. Sentiu numa orelha bater-lhe uma bolinha de papel. Um velho mal-encarado, ao lado dele, estava de figa feita.
E resignado, agarrando-se aos balaústres da teia, esperava que fosse aquela noite a primeira feliz da sua vida.
Abriram as torneiras do gás e a luz jorrou de repente.
Houve um sussurro maior. Muitos, que ainda não se tinham visto, cumprimentaram-se. Os elegantes das cadeiras apontaram os óculos para os camarotes e começaram tirando os chapéus.
O teatro transbordava.
Os músicos afinavam os instrumentos.
Ouviam-se por entre as variações alegres da flauta as notas harmônicas das rabecas. O homem dos timbales batia notas surdas com a mão esquerda e apertava com a direita as escaravelhas.
Afinal entrou o regente, de casaca e gravata branca, cumprimentando os colegas, enquanto descalçava a luva.
Bateu na estante e ergueu alto o braço.
Houve uns schius! assobiados por alguns amadores, que a toda a sala impuseram silêncio.
O regente olhou para todos os músicos, demorou-se um instante e depois, descrevendo com a batuta um quarto de circunferência, fez sinal às rabecas, que logo começaram tocando muito piano, em uníssono.
Era com certeza mademoiselle Eva d’Avenay quem ali atraía a maior parte dos espectadores. Os conversadores pouco a pouco foram elevando o tom e, como as rabecas sozinhas continuavam tocando pianíssimo havia o que quer que fosse fantástico naquele maestro de grande cabeleira caindo-lhe até à gola da sobrecasaca, elevando alto, muito alto, a batuta, e deixando depois cair o braço a tremer, a tremer, comandando uns arcos que se mexiam como puxados por um só homem, mordendo cordas que não tinham som.
Decididamente o corcunda sufocava.
De repente, a um sinal enérgico do regente, os metais vibraram enchendo a sala de notas alegres, vivas, que num instante, como por encanto, cortaram as palestras.
Foi um relâmpago de alegria. O regente sorriu-se delicadamente e as rabecas continuaram sozinhas no meio da distração geral.
Um gaiato gritou lá de cima:
— Muito bem!
Tinham acabado felizmente.
A respiração do corcunda era um apitozinho.

***

Instantes depois, corria-se uma cortina e encaminhava-se para o palco mademoiselle d’Avenay.
Houve um sussurro admirativo. Muita gente ergueu-se. Ouviram-se vozes:
— Abaixo!
Ela, já no palco, sorria impassível, cumprimentando o público, olhando em volta, muito serena.
Alguns entusiastas davam palmas.
O conselheiro olhou para o amigo e fez-lhe uma cara como quem diz: — de truz!
O regente muito amável curvou-se para a cantora e fez-lhe baixinho uma pergunta.
Respondeu que sim, muito risonha, muito amável.
As rabecas preludiaram.
Ela consertava o decote e alisava o cabelo na testa.
Era uma mulher em todo o esplendor da beleza dos anos, de elegância distinta e inteligente; alta, com o busto quebrado um pouco na cintura, o peito forte, braços admiráveis, ombros muito redondos, e nas costas, bem ao meio, uns dois ou três sinais, que pareciam ter-lhe sido dados, de caso pensado, pela natureza, para que ninguém julgasse que aquele busto era de mármore. Os olhos azuis tinham um olhar profundo e os cabelos loiros e finos emolduravam uma testa muito lisa, como de virgem de 15 anos.
Quando cantava, a boca simpática, fresca, sorria sempre, alegrando-se aos cantos com duas pregas infantis.
Do lugar onde estava, o corcunda via-lhe o perfil sereno, a longa trança dourada todo o vulto branco salientando-se na massa escura dos espectadores aglomerados nos degraus em anfiteatro do outro lado da sala.
Quando ela acabou de cantar, toda a plateia aplaudia, delirante.
O corcunda bem queria dizer — bravo! mas sumira-lhe a voz.
Mademoiselle d’Avenay cantou três vezes naquela noite e o delírio crescendo sempre!
Agradecia muito reconhecida, pondo a mão no peito, fazendo ranger a seda do vestido.
Já os músicos se tinham retirado, já o iluminador começava fechando as torneiras do gás e ainda novas ovações ecoavam na sala.
Ela tornava a subir ao palco, agradecendo, muito amável, sorrindo como no retrato, para o ar, para coisa nenhuma.
E por onde passava deixava no rasto um cheiro forte, bom, que embriagava o corcunda.

***

Achou-se afinal sozinho.
Umas famílias, que se tinham encontrado à saída, conversavam, enquanto as senhoras vestiam os xales e os homens acendiam os cigarros.
Que fazia ali o corcunda? Viera na esperança de que essa mulher ideal, como ele não sonhara poder haver no mundo, reparasse no pobre verme e do seu pedestal lhe fizesse a mercê dum olhar.
Mas nem ela o vira, nem ele pudera ajudar à ovação. Bem tinha deitado os bracinhos por entre os balaústres para aplaudir; se não fosse a asma, teria gritado: bravo! mil vezes. Mas se era tão fraquinho!…
Estava extenuado, meio morto; a cabeça estalava-lhe.
Sentou-se num dos degraus da geral e escondeu o rosto entre as mãos.
Pouco a pouco, ia perdendo a memória do que se passara, conservando apenas a consciência de que era um desgraçado.
Acordaram-no uns passos de mulher.
Ergueu a cabeça.
Mademoiselle d’Avenay, toda embrulhada em rendas brancas, saía do camarim muito risonha, conversando com uma velha, que a acompanhava.
Levantou-se. Ela tinha de passar por ali e ele tremia. Quase sem forças, desvairado, mal pôde pronunciar:
— Bravo! Bravo!
Ela parou um pouco assustada. Vendo-o tão pequenino, na meia escuridão, julgando-o provavelmente uma criança, tocou-lhe com dois dedos na cara. Mas, picando-se nas barbas, retirou a mão e disse:
— Pardon, monsieur.
E quando passou… sorriu-se para ele.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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