A Piedosa Teresa, Conto de Alcântara Machado
Extraído do livro Laranja da China
A Piedosa Teresa
(Dona Teresa Ferreira)
Atmosfera de cauda de procissão. Bodum.
Os homens formam duas filas diante do altar de São Gonçalo. São Gonçalo está enfaixado como um recém-nascido. Azul e branco. Entre palmas-de-são-josé. Estrelas prateadas no céu de papel de seda.
Os violeiros puxando a reza e encabeçando as filas fazem reverências. Viram-se para os outros. E os outros dançam com eles. Bate-pé no chão de terra socada. Pan-pan~pan-pan! Pan-pan! Pan Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Param de repente.
Para bater palmas. Pla-pla-pla-plá! Pla-plá Plá! Pla-pla-pla-plá! Pla-plá! Param de repente.
Para os violeiros cantarem, viola no queixo:
É este o primero velso Qu’eu canto pra São Gonçalo
– Senta ai mesmo no chão, Benedito. Tu não é mió que os outro, diabo!
É este o primero velso Qu’eu canto pra São Gonçalo
E o coro começa grosso, grosso. Rola subindo. Desce fino, fino. Mistura-se. Prolonga-se. Ôooôh! Aaaah! ôaaôh! Ôaiiiih! Um guincho!
O violeiro de olhos apertados cumprimenta o companheiro. E marcha seguido pela fila. Dá uma volta. Reverências para a direita. Reverências para a esquerda. Ninguém pisca. Volta para seu lugar.
– Entra, Seu Casimiro!
O japonês Kashamira entra com a mulher e o filhinho brasileiros de roupa de brim. Inclina-se diante de São Gonçalo. Acocora-se.
O acompanhamento das violas feito de três compassos não cansa. Nos cantos sombreados os assistentes têm rosário nas mãos. No centro da sala de cinco por quatro a lâmpada de azeite dança também.
Minha boca está cantando Meu coração lhe adorando
Cabeças mulatas espiam nas janelas. A porta é um monte de gente. Dona Teresa, desdentada, recebe os convidados.
– Não vê que meu defunto Seu Vieira tá enterrado já há dois ano… Faiz mesmo dois ano agora no Natar.
Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pan!
– A arma dele tá penando aí por esse mundo de Deus sem podê entrá no céu.
Pla-pla-pla-plá! Pla-plá!
– Eu antão quis fazê esta oração pra São Gonçalo deixá ele entrá.
Vou mandá fazê um barquinho Da raiz do alecrim
O menino de oito anos aumenta a fila da direita. A folhinha da parede é uma paisagem de neve. Mas tem um sol. E o guerreiro com uma bandeirinha auriverde no peito espeta o sol com a espada. EMPÓRIO TUIUTI.
Pra embarcá meu São Gonçalo Do promá pro seu jardim
Desafinação sublime do coro. Os rezadores sacodem o corpo. Trocam de posição. Enfrentam-se. Dois a dois avançam, cumprimento aqui, cumprimento ali, tocam-se ombro contra ombro, voltam para os seus lugares. O negro de pala é o melhor dançarino da quadrilha religiosa.
São Gonçalo é um bom santo Por livrá seu pai da forca
Só a casinha de barro alumiando a escuridão.
– Não vê que o Crispim também pegou uma doença danada. Não havia jeito de sará. O coitado quis até se enforcá num pé de bananeira!
Dona Teresa é viuva. Viúva de um português. Mas nem oito dias passados Dona Teresa se ajuntou com o Crispim. A filhinha dela ri enleada e é namorada de um polaco. Na Fazenda Santa Maria está sozinha pela sua boniteza. Dona Teresa cuida da alma do morto e do corpo do vivo. No carnaval deste ano organizou um cordão. Cordão dos Filhos da Cruz. Dona Teresa é pecadora mas tem sua religião. Todos gostam dela em toda a extensão da Estrada da Cachoeira. Dona Teresa é jeitosa, consegue tudo e ainda por cima é pagodeira.
Artá de São Gouçalo Artá de nossa oração
– Nóis antão fizemo uma promessa que se Crispim sarasse nóis fazia esta festinha.
Foi promessa que sarando Será seu precuradô
As violas têm um som, um som só. É proibido fumar dentro da sala. Chega gente.
São Gonçalo tava longe De longe já tá bem perto
Um a um curvam-se diante do altar. O violeiro de olhos apertados está de sobretudo. Negros de pé no chão.
Nóis tamo memo emprestado neste mundo.
Cantando cruzam a salinha quente.
Amor castiga a gente. Olhe a Rosa que não quis casar com o sobrinho do poceiro. Não houve conselho de mãe, não houve ameaça de pai nem nada.
Fincou o pé. E fugiu com o italiano casado carregado de filhos. Um até de mama. Não tinham parada. Agora, agora está ai judiada com o ventre redondo. São Gonçalo tenha dó da coitada.
Abençoada seja a união Que enfeitô este oratório
O preto de pala dá um tropicão engraçado. E a mulher de azul-celeste dá urna risada sem respeito. O bico do peito escapuliu da boca do filho.
Da dança de São Gonçalo Ninguém deve caçoá
Ôooôh Aaaah! ôaiiiih!
São Gonçalo é vingativo Ele pode castigá
Silêncio na assistência descalça. As bandeirinhas de todas as cores riscam um x em cima dos dançarinos. Atrás da casa tem cachaça do Corisco.
– Depois é a veiz das môça. Quem quisé pode pegá o santo e dançá com ele encostado no lugá doente.
Onde chega os pecadô Ajoeai pedi perdão
O estouro dos foguetes ronca no vale fundo. Anda um ventinho frio cercando a casa.
São Gonçalo tá sentado Com sua fita na cintura
O caboclo louro puxa a faca e esgaravata o dedão do pé.
– São seis reza de hora e meia cada mais ou meno. Pro santo ficá satisfeito.
Lá no céu será enfeitado Pla mão de Nossa Sinhora
Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pla-pla-pla-plá! Plaplá! Plá! Pla-pla-pla-plá!
Oratório tão bonito Cuma luz a alumiá
De cima do montão de lenha a gente vê São Paulo deitada lá embaixo com os olhos de gato espiando a Serra da Cantareira. Nosso céu tem mais estrelas.
São Gonçalo foi em Roma Visitá Nosso Sinhô
Dona Teresa parece uma pata.
– Só acaba aminhã, sim sinhô! Vai até o meio-dia, sim sinhô! E acaba tudo ajoeiado, sim sinhô!
Ôooôh! Aaaah! ôaaôh! ôaôaiiiih! Primeiro é órgão. Cantochão. Depois carro de boi. No finzinho então.
Sinhora de Deus convelso Padre Filho Espírito Santo
Quem guincha é mesmo o caipira de bigodes exagerados.