terça-feira, abril 16, 2024

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Artur AzevedoContos, Crônicas e Poesias

A Ritinha, Conto de Artur Azevedo

A Ritinha

Naquela noite o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento penoso, que não podia definir.
Tinham-lhe dito que estava no Rio de janeiro a Ritinha, aquela interessante menina que há trinta anos, lá na província, fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.
Andou morto por vê-la, não que lhe restasse no coração nem no espírito outra coisa senão a saudade que todos nós sentimos da infância e da adolescência, — queria vê-la por mera curiosidade.
Satisfizera o seu desejo naquela noite, quando menos o esperava, num teatro. Ela ocupava quase um camarote inteiro com a sua corpulência descomunal.
Mostrou-lha um comprovinciano e amigo:
— Não querias ver a Ritinha? Olha! Ali a tens!
— Onde?
— Naquele camarote.
— Quê! aquela velha gorda?…
— É a Ritinha!
— Virgem Nossa Senhora! — E aquele homem de óculos azuis, que está de pé, no fundo do camarote? É o marido!
— Qual marido! É o genro, casado com a filha, aquela outra senhora muito magra que está ao lado dela. O marido é o velhote que está quase escondido por trás do enorme corpanzil da tua ex-namorada.
O Flores, estupefato, contemplou e analisou longamente aquela mulher, que fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.
Não podia haver dúvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar de outrora. Com aqueles destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por peça, a estátua antiga. Tinha a visão exata do passado.
Representava-se uma comédia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases, de todos os gestos, de todas as jogralices dos atores com uma complacência, de espectadora mal-educada e por isso mesmo pouco exigente.
Aquelas banhas flácidas, agitadas pelo riso, tremiam convulsivamente dentro da seda do vestido, manchado pelo suor dos sovacos.
O genro, que se conservava sério e imperturbável, lançava-lhe uns olhos repreensivos e inquietos através dos óculos azuis. Ela não dava por isso.
— Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? perguntou o Flores.
— Nada… apenas passear… estão de passagem para a Europa.

***

E aí está por que o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento que não sabia definir.
Quando ele se espichou na cama estreita de solteirão, e abriu o livro que o esperava todas as noites sobre o velador, não conseguiu ler uma página. Todo o seu passado lhe afluía à memória.
Ele e Ritinha foram companheiros de infância. Eram vizinhos, — brincaram juntos e juntos cresceram. Tinham a mesma idade.
Depois de dezessete anos, aquela afeição tomou, nele, nela não, um caráter mais grave: transformou-se em amor.
Mas Ritinha era já uma senhora e Flores ainda um fedelho.
Como o desenvolvimento fisiológico da mulher é mais precoce que o do homem, raro é o moço que ao desabrochar da vida não teve amores malogrados.
Foi o que sucedeu ao nosso Flores. Ritinha não esperou que ele crescesse e aparecesse: tendo-se-lhe apresentado um magnífico partido, fez-se noiva aos dezoito anos.
O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um criançola, mas tinha a idade de Romeu, a idade em que já se ama.
Um pensamento horroroso lhe atravessou o cérebro: assassinar Ritinha e em seguida suicidar-se.
Premeditou e preparou a cena: comprou um revólver, carregou-o com seis balas, e marcou para o dia seguinte a perpetração do atentado.
Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro.
Ergueu-se pela manhã, vestiu-se, apalpou a algibeira e não encontrou a arma.
— Oh!
Procurou-a no chão, atrás do baú, por baixo da cômoda: nada!

***

— Para que precisas tu de um revólver, meu filho? perguntou a mãe do rapaz, entrando no quarto.
— Está com a senhora?
— Está.
— Mas como soube?…
— As mães adivinham.
Flores não disse mais nada: caiu nos braços da boa senhora, e chorou copiosamente.
Ela, que conhecia os amores do filho, deixou-o chorar a vontade; depois, enxugou-lhe os olhos com os seus beijos sagrados, e perguntou-lhe:
— Que ias tu fazer, meu filho? Matar-te?
— Sim, mas primeiro matá-la-ia também!
— E não te lembraste de mim?… não te lembraste de tua mãe?…
— Perdoe.
E nova torrente de lágrimas lhe inundou a face.
— Ouve meu filho: na tua idade feliz um amor cura-se com outro. O que neste momento se te afigura uma desgraça irremediável, mais tarde se converterá numa recordação risonha e aprazível. Se todos os moços da tua idade se matassem por causa disso, e matassem também as suas ingratas, há muito tempo que o mundo teria acabado. Raros são os que se casam Com a sua primeira namorada. O que te sucedeu não é a exceção, é a regra. O mal de muitos consolo é.
— Eu quisera que Ritinha não pertencesse a nenhum outro homem!
— Matá-la? Para quê? Ela desaparecerá sem morrer… nunca mais terá dezoito anos… A idade transforma-nos tal qual a morte. Não imaginas como tua mãe foi bela!
O velho Flores, pai do rapaz, informado por sua mulher do que se passara, e receoso de que o filho, impulsivo por natureza, praticasse algum desatino, resolveu mandá-lo para o Rio de Janeiro, onde ele chegou meses antes do casamento de Ritinha.

***

Naquela noite o Flores, quase quinquagenário, chefe de repartição, lembrava-se das palavras maternas e reconhecia quanta verdade continham.
Ainda naquele momento sua mãe, que há tantos anos estava morta, parecia falar-lhe, parecia dizer-lhe:
— Não te dizia eu?
— E que impressão receberia Ritinha se me visse? pensou ele. Também eu sou uma ruína…

***

O Flores apagou a vela, adormeceu e sonhou com ambas as Ritinhas, a do passado e a do presente.
Dali por diante, todas as vezes que encontrava esta última, dizia consigo:
— Olhem se eu a tivesse matado!

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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