sábado, novembro 23, 2024

Online Cursos Gratuitos

Canal Online para divulgação de Cursos Gratuitos, Livros, Apostilas e informações úteis para estudantes e professores.

Camilo Castelo BrancoContos, Crônicas e Poesias

A Suicida, Conto de Camilo Castelo Branco

A Suicida

Elisa Loeve-Weimar…

A senhora, que teve este nome, suicidou-se com um tiro, no Porto, no dia 30 do mês passado.

Dentre os meus escritos de há doze anos reproduzo um que a toda gente, com certeza, esqueceu, tirante o coração daquela que hoje é morta.

Dizia assim:

A Formosa das Violetas.

Júlio Janin, no folhetim do Jornal dos Debates de 30 de março do corrente ano (1863), escreveu o seguinte: “No ano da graça de 1836, o mês de abril correu aprazível e delicioso; e no mês de Maio ressoaram canções que farte. Ora, a ponto de expirar o mavioso abril e repontar o Maio (apenas são volvidos vinte e sete anos e três revoluções!) as turbas afanadas e curiosas acotovelavam-se no vestíbulo do teatro da Porte-Saint-Martim. O já então popular e glorificado autor de Henrique III, de Antony, de Ricardo de Arlington, da Torre de Nesle e de Ângelo, naquela noite, pusera em cena um mistério em que figuravam anjos e demônios. Agrupados à porta do teatro, muitos rapazes daquele tempo cediam o passo à multidão azafamada, divertiam-se a vê-la entusiasmada, e notavam os homens conhecidos, os homens célebres, uns no começo, outros no termo da sua carreira. Eis senão quando todos os olhos convergiram sobre um soberbíssimo trem, uma berlinda de Erhler, ajaezada à Brune, e tirada por uma parelha de enormes ursos ingleses, saídos das cavalariças de madame la Dauphine. Um espadaúdo cocheiro, e um alentado húngaro de sete palmos de altura, afora o penacho, todo broslado de galões de ouro, completavam a equipagem que parou de súbito à porta do teatro. E, aberta logo pelo keiduque a portinhola, caídos estrondosamente os degraus da berlinda, vimos apear um elegante homem.

“Não tinha ainda trinta anos; vestia com requintado esmero; gravata branca e luvas amarelas; estatura corpulenta e formosamente conformada; cabeleira calamistrada; boca um tanto grande, mas graciosa; olhar ardente, e altiva compostura no aspeto. No braço do mancebo apoiava-se a leve mão de uma senhora, juvenil como ele, ansiosa de volitar por sobre o espaço intermédio. Que linda ela estava com o seu vestido de primavera! Violetas na mão, violetas como adorno no Chapéu de palha, ondulante faixa a tiracolo, calçada com extremada perfeição de botinas gaspeadas de cinzento e escarlate. Formosa e esbelta a mais não ser! A impaciência tirava por ela; e o irmão caminhava a passo mesurado, com aqueles ares de homem que em si escuta a fada benigna da suprema fortuna. Exornavam o peito do cavalheiro as mais variegadas cores da pedraria dos ornatos e condecorações. Era Barão em França, marques em Espanha, e sócio do club dos fidalgos florentinos. Contava-se — e era verdade-que o somenos utensílio dos seus aposentos era de ouro: o seu lavatório era de ouro armoriado, e dourada a sua câmara. E, todavia, creiam-me, se quiserem: a sensação que nos causou foi a da admiração simpática; inveja, não. Nesta França, atenta e alheada nos aparecimentos de cada dia, tais como, de manhã, As orientais, depois A carnagem de Missolonghi de Eugênio de Lacroix; ao meio dia, os discursos de Thiers; à noite, a ópera deMeyerbeer; no dia seguinte, um romance de Balzac, uma canção de Alfredo de Musset… entre nós, aquele mancebo tinha, de pouco, revelado Hoffman e os seus contos. Escrevia ele rápido, pouco e bem. Sabia inglês como um diplomata, e alemão como um filósofo. Pertencia naquele tempo à nascente redação do Jornal dos Debates, e chamava-se Loeve-Weimar”.

Até aqui Júlio Janin.

***

Nos arrabaldes de Londres, num a quinta de delícias, quantas pôde imitar da natureza a arte britânica, vivia, naquele tempo, um português que a intolerância política expatriara em 1828. A fortuna comercial dava-lhe desvelados amigos para o espírito, ótimos convivas para a mesa e gentis mulheres para o coração. O nosso patrício, encarreirado prosperamente no trafico mercantil, assentou que lhe era dever acudir aos desterrados pobres; e assim, quantos portugueses se socorriam da sua valia encontraram franco e inexaurível aquele coração de ouro, e o ouro das suas gavetas. Os convivas habituais da sua mesa eram um jurisconsulto dos mais celebrados em Londres, e um português de excelentes qualidades, nosso ministro atualmente na corte de Madrid.

Um dia, porém, os contubernais saíram do encantador abrigo do emigrado, porque eram demais em alegrias, cuja doce poesia está no resguardo e recolhimento de dois. O português fora o preferido daquela formosa das violetas que Júlio Janin relembra no seu folhetim. Mele Elisa Loeve-Weimar, a irmã do nacionalizador de Hoffman em França, do Barão, do marques, do fidalgo florentino, casara com o nosso patrício, que era então um rapaz alegre como a felicidade, descuidado do futuro como criança a brincar entre flores, todo expansibilidade em olhos e palavras do muito bem querer que lhe exuberava do coração.

Coração e nome são ainda os mesmos naquele homem, vinte e sete anos depois. Porém, há de reconhecer-se hoje o festejado e amado noivo da irmã de Loeve-Weimar naqueles cabelos brancos e cara avincada do jornalista portuense? Aqui vo-lo apresento agora: estendei a mão àquela mão liberal que muitos infelizes beijaram. Abraçai José Joaquim Gonçalves Basto, e sentireis pulsar o melhor e mais infeliz dos corações!

***

Infeliz!… Com tão prospera monção ao entrar em bonançoso mar? Amado por aquela peregrina dama, cujo espírito cultivado em Paris e Londres competia com a distinção da beleza?

Infeliz, sim, e por que não? A desgraça, quando colhe de sobressalto os seus prediletos, quebra os elos da corrente que parecia forjada por esforço de virtudes domésticas para os duradouros contentamentos do amor. Compraz-se ela em abater e rasourar ao nível das baixas condições os mais altos espíritos.

Gonçalves Basto, decorridos dois anos de esposo e pai, foi vencido na luta com imprevistas calamidades comerciais. Empobreceu. Saiu de Inglaterra, e repatriou-se com a sua família. De repente, e o mais logicamente que o puderam fazer, os amigos desamparara-mo, desobrigando-se da dívida, esquecendo o credor. Permaneceu, com tudo, leal no infortúnio um que se mantivera desprendido na prosperidade: era José Vieira de Carvalho, jovem portuense abastado, instruído e bom. Deliberara Vieira fundar um jornal de parceria com Antônio Bernardo Ferreira, e com o atual deputado e integérrimo caráter, o Sr. Joaquim Ribeiro de Faria Guimarães. Fundaram a Colisão, cuja redação e responsabilidade aceitou Gonçalves Basto. Os proprietários, porém, a pouco e pouco se desligaram de compromissos, declinando sobre o redator o encargo de sustentar intelectual e materialmente o jornal. Gonçalves Basto, extinta a Colisão, fundou o Nacional, faz hoje dezoito anos.

Entretanto, José Vieira, rico e celibatário, antevendo o próximo termo da vida, anuncia que a sorte dos filhos de Gonçalves Basto está segura nos seus haveres. Morre em Paris, e o testamento é roubado em benefício de parentes remotos.

Na contra revolução de 1846, Gonçalves Basto, ao serviço da Junta do Porto, foi nomeado comandante de um batalhão de artistas. Reprime a indisciplina, e dá no campo o exemplo da coragem um tanto insubordinada, porque espingardeava os espanhóis que transpunham as fronteiras do norte, quando a Junta lhe ordenara que respeitasse a intervenção. E, neste entretanto, a família do jornalista, esposa e três filhos, belíssimas e adoráveis crianças, viviam da gratificação mensal do comandante: Dez mil reis

***

José Joaquim Gonçalves Basto envelheceu cortado de lancinantes dores; porém, duas vezes tão somente lhe vi o rosto lavado de lágrimas: foi ao resvalarem-lhe dos braços à sepultura dois filhos. A pobreza cerra-o de perto há quinze anos; e ele como que tem minas de diamantes na mais risonha filosofia que ainda vi! É sempre com um sorriso que vos ele diz: “Não tenho nada”. A desgraça tem destes sorrisos que são, a dentro do peito, unhas de ferro.

E ela, a formosa das violetas, de 1836, a irmã do Barão em França, do fidalgo em Florença e do marques em Espanha? Elisa Loeve-Weimar vai, algumas vezes, ao cemitério da Foz, onde vicejam umas flores plantadas pela sua mão sobre a sepultura de um dos seus filhos. Ali, de certo lhe esquecem as pompas e as vaidades da sua brilhante mocidade. Aquele cômoro de terra separa esta mãe das gloriosas presunções da irmã do fastuoso literato, da formosa que o príncipe dos folhetinistas franceses recordava vinte e sete anos depois com as calorosas expressões de uma saudade que parece o reflexo do amor. Que tem que ver no cemitério da Foz aquela Níobe com a sua beleza preconizada em Paris? Ai! formosura! flor de um dia, queimada pelo gear de uma noite! E tu, talento! flama esplendente que mais nos cerras a escuridão, quando nos não iluminas a vereda por onde o infortúnio nos assalta! Ó santa de todas as dores de mulher que é mãe! quem saberá contar as cruzes do teu calvário? quais almas, sequer, se inquietam, pensando o que foste, o que és, e que paragem final te assinalou o destino!

***

Meu caro Basto, releva ao teu amigo de dezesseis anos o vir ele dizer dos teus infortúnios em face de uma gente que os há de ler por ser isto em folhetim e ajeitado à guisa de romance. Quando entrei nesta vida dolorosa das letras, achei-me contigo. Encontrei-te neste tormento de Sísifo e aí te vejo ainda agora a rolar o penedo. Se às vezes paras um instante na ladeira, é para contemplares como a estupidez e a infâmia trazem avassalados os fiscais da república, e como eles galgam arreados de placas e fitas, enquanto tu vais descendo à margem do rio da morte, olhando em ti, e antevendo próximo o dia em que não terás um pão para repartir com a tua família. Há trinta anos que esperas e trabalhas por afeto à pátria e por forçada violência de operário desta galé. Deves ter desmaios de angústia quando em ti reparas e não vês homem que possa dizer-te: “Sofri e lidei tanto como tu, e recebi dos governos do meu país a retribuição de igual desprezo”. Luta, meu amigo; e, quando mais não puderes, vinga-te morrendo como o soldado do padre Vieira, e vai saber nos segredos da divina Providência que mal devias fazer à pátria e aos teus concidadãos para que eles te beneficiassem”.

***

Algum tempo depois, José Joaquim Gonçalves Basto, quando o círculo de ferro da penúria se apertava, encontrou a mão poderosa de um ministro que lho partiu. A salvadora chamava-se a Justiça, e o ministro era o Sr. Fontes Pereira de Melo.

***

Ora, como em 30 de Setembro deste ano se suicidasse, no Porto, com um tiro, a minha formosa das violetas, pareceu-me apropositada a ampliação e complemento do meu folhetim de 1863.

Elisa Weimar nasceu em Paris em 1805. O Barão Nemi Loeve-Weimar, seu pai, era alemão, oriundo de israelitas. Exercera funções importantes na corte de Luiz XVIII. Em 1814, quando o exército prussiano infestou o território francês, a família Loeve-Weimar retirou para Hamburgo. O futuro nacionalizador de Hoffman seguiu alguns anos a carreira comercial; depois, apostatou do judaísmo, converteu-se à fé católica, e regressou a Paris, ao mesmo tempo que Mele Elisa foi completar em Londres a sua educação literária.

Conhecedor dos idiomas e literaturas do norte, o jovem escritor alistou-se vantajosamente de par com os literatos de mais voga. Entrou seguidamente na redação do Álbumda Revue encyclopedique e do Fígaro. Muitos livros alemães desconhecidos em França trasladou-os ele com estilo sedutor; e da literatura d’além-Reno publicou em 1826 um compendio. Traduziu depois, com excelente êxito, romances de Vander-Velde, Contos de Zschokke, de que auferiu renome e dinheiro a granel. Na Revista de Paris, cujo fundador foi, publicou novelas e artigos de estética. Em 1830 substituiu no Tempo o celebrado Imbert na redação dos folhetins teatrais, e excedeu-o na graça mordente e na dicacidade engenhosa. A pujança do critico era tal que um empresário e diretor da ópera lhe deu sociedade nos lucros do teatro, a fim do amaciar e polir com o atrito do ouro. “É inútil acrescentar, diz um biografo, que, no conceito do folhetinista, o modo como era dirigida a cena lírica não deixava nada a desejar”.

Volvido um ano, solicitou-o a Revista dos dois mundos para escrever a crônica política. Nesta árdua missão houve-se com rara fortuna e dexteridade, flagelando os personagens mais graduados. Os ministros galardoaram-lhe a sátira, enviando-o diplomaticamente à Rússia com uma missão temporária e especial ao imperador Nicolau.

Esta enviatura acresceu às despesas dos negócios estrangeiros 60:000 francos anuais: era cara a mordaça. Regressando a Paris, foi nomeado cônsul de França em Bagdá.

A revolução de 1848 esbulhou da brilhante posição o apostata da república mal rebuçada; quando porém Loeve-Weimar chegou demitido a Paris, já a reação vingou repô-lo na diplomacia, indenizando-o da injustiça com o consulado geral de Caracas (América do Sul). Chegado à capital da república de Venezuela, Loeve-Weimar, receando a febre amarela, pediu licença, e veio a Paris requerer a transferência para o consulado geral de Lima, que lhe foi dado.

Preparava-se para a viagem quando a morte o arrebatou em Paris no dia 7 de novembro de 1854.

Acrescenta o biografo em frases pouco funerárias: “A morte é de crer que o apanhasse com as madeixas encaracoladas em papelotes; porquanto o seu trajar, o apontado da sua pessoa, e mormente os esmeros que punha na sua cabeleira loura, lhe tinham sido a constante preocupação da vida. A tal respeito, se conta que o primeiro dividendo que recebeu na empresa lírica, empregou-o na compra de um vestido completo de veludo escarlate lavrado que lhe custou 25:000 francos. É o que faria, nem mais nem menos, uma lorette! Não custa, pois, a crer que ele, sempre narcisando-se e sempre rapaz, acabasse, já em anos outoniços, por esposar uma estrangeira rica. Luiz Filipe fizera-o Barão. Um dia, deu-lhe na veneta de abrir o seu brasão de fresca data num manto de arminho com a coroa de duque; fez-se, pois, enducalisar, mediante dinheiro, pelo governo espanhol. Afora as obras já referidas, deixou Cenas contemporâneas, publicadas com o pseudônimo de Comtesse de Chamily. O livreiro Ladvocat também imprimiu em 1840, sob o título homérico de Népenthès, uma seleta dos seus artigos de jornais e revistas”.

Um dos admiradores mais exaltados de Loeve-Weimar foi o insigne Philarète Chasles, professor do Colégio de França, há pouco mais dum ano falecido, com reputação europeia. Nos seus Estudos sobre a Alemanha no XIX século, publicados em 1861, recorda-se de Loeve-Weimar, no capítulo intitulado Os três magos do norte. Um dos três magos era o nacionalizador de Hoffman.

São estas aproximadamente as palavras de Philarète Chasles: “…Vede-me este personagenzinho franzino e louro, gracioso e fino, melodioso e sardônico, taful, garrido, esbelto, refinadamente casquilho. Casou romanticamente. Assim se casavam quase todos os literatos do nosso tempo. É Loeve-Weimar, aquele que escreveu o Népenthès, e colaborou na Revista dos dois mundos com o doutor Véron, Charles Nodier e comigo. Acabou por ser em Bassora ou Badgad não sei que sultão oriental bochechudo, pantafaçudo, enojado, sonolento e amodorrado. Este pintalegrete, este chasqueador, aliás armabilíssimo, que foi o adail, o porta-bandeira do motim literário de 1815, não nascera para contemplações absortas nem aventuras grandiosas. O salão do século XVIII era a mais frisante moldura da sua vida e o teatro que mais lhe quadrava à índole. Procedia de Champfort, de Champcenetz e de Cazzotte. Tinha o desempeno social, o conhecimento dos homens, a flexibilidade, a solércia. Como Congrève, pavoneava-se de não ser homem de letras. Arreda! Não que a tinta suja os dedos…

Delatouche introduzira Hoffman, e Loeve-Weimar nacionalizara-o francês. Loeve arregaçou os punhos, adelgaçou-lhe as grosserias, recobriu as cores dúbias, encurtou as demasias, elidiu os destemperos, amenizou as asperezas e recompôs, sob pretexto de versão, um novo Hoffman, que deu brado em Paris. Inventou-se então uma palavra para tamanho êxito: o fantástico… A França morreu de amores por Hoffman falsificado por Loeve e apregoado por Koraff…”

***

Aí está o que sei do irmão da suicida.

Esta senhora, quando eu a conheci em 1849, mostrava ainda uns traços esmaecidos de beleza rara. Representava trinta e cinco anos, tinha quarenta e quatro, e redigia uma folha em francês, cujo título me esqueceu. Colaborava nesse semanário ameno o cônsul de França Mr. d’Estrées, que pereceu no naufrágio do vapor Porto, em 1852. Eram três os seus filhos, lindos e louros como ela e como o pai. Gonçalves Basto havia sido um homem gentilíssimo. Dava ares de inglês, e nascera em Cabeceiras de Basto, onde floresce uma raça de homens celtas esculturais, e de mulheres fortes, raça calaica, às quais sobram as exigências musculosas da estatuária.

Naquele tempo, ouvi dizer que a paz doméstica do proprietário e colaborador do Nacional não era invejável. De feito, Gonçalves Basto alimentava-se nos restaurantes, desculpando a irregularidade insalubre e estouvanada deste viver parisiense com a faina jornalística.

Elisa era mãe extremosa. Quando lhe morreu o terceiro gênito, a criança mais angelical que ainda vi uma menina de nove anos,-a mãe, num ímpeto de desvario, fugiu para a Foz com os outros dois filhos, e alfaiou elegantemente uma casinha contígua ao cemitério, que então se andava construindo. Uma das primeiras lápides que ali se assentaram cobriu o cadáver de um dos dois filhos. Este menino, se bem me recordo, era afilhado de Lamartine.

Visitei com frequência esta senhora nesse ano de luto e desesperação. Era solidamente instruída. Lia os livros portugueses com rara inteligência. Achava os romances peninsulares fastidiosos como a Corte na aldeã de Rodrigues Lobo. Dizia que nós apenas tínhamos um céu azul com uma bonita lua, e na terra muitas flores e ribeiros cristalinos que nos inspirassem; mas que o romancista carece de sociedade viva, com as suas boas e ruins paixões. E acrescentava que Portugal era geograficamente obrigado a ser um alfobre de liristas.

Mostrou-me o seu álbum de autógrafos. Os mais preciosos dera-lhos o irmão, que se carteara com parte dos seus contemporâneos ilustrados. Tinha-os de alto valor histórico, escritos por Maria Antoinette, por Luiz XVI, por Chateaubriand, por Mademoiselle de Staël, pelos estadistas das grandes tradições. A sua livraria era pequena, e quase toda inglesa. Não sabia o alemão; tencionava porém estudá-lo, quando serenasse a tempestade que ainda rugia à volta da sua alma articulando-lhe os nomes dos filhos. Foi ela quem me deu o Adolpho, romance de Benjamin Constant, e me disse: “Leia-o enquanto lhe pôde ser proveitoso”. Li-o, e não aproveitei nada; nem ela, que o lera três vezes, aproveitara muito. Os livros nada ensinam na alçada do coração. A experiência, sim; mas a lição vem tarde. Quem ensina tudo é a velhice. Ainda bem, se nos salva dos espetáculos do riso, e nos tira o pincel do bigode.

Henri de Weimar Basto, o filho primogênito, quando frequentava distintamente a escola politécnica e auxiliava o pai traduzindo o Times, morreu tísico aos dezoito anos de idade, nos arrabaldes de Lisboa.

Fez-se então o crepúsculo da noite infinita na razão de Elisa Basto; a treva, todavia, condensou-se vagarosamente, porque a inteligência reagiu com as suas poderosas energias à paixão que a dementava.

Começou a estudar o idioma germânico de tão frenético modo que aí mesmo denunciava o desconcerto do seu espírito. Gonçalves Basto raras vezes a visitava. Depois da morte do último filho, deslaçaram-se de todo os frouxos vínculos que os ligavam. Encontravam-se naquele filho os dois amores dos corações divorciados; era de ambos aquele ser querido e disputado à competência de carícias. Morreu o incentivo, apagou-se a luz que ainda lhes mostrava ao longe a saudade na penumbra do passado amor: a pedra que o cobriu abafou tudo o mais! acabaram ali com ele todas as recordações e esperanças. Daí em diante, cada qual habitava sua casa; ela na Foz, e ele na rua 29 de Julho.

Entretanto, Elisa pernoitava sobre os lexicons alemães, e decifrava a tradução bíblica de Lutero. Deste afanoso estudo tenho à vista a prova no fragmento de uma carta que me ela escreveu por esse tempo. Eu tinha publicado um folhetim de má prosa acerca dos Provérbios e Cantares. DosProvérbios extrairá eu estes períodos dos capítulos XII, XIV e XV:

A mulher diligente é a coroa do seu marido; e a que obra coisas dignas de confusão far-lhe-á apodrecer os ossos.

A saúde do coração é a vida da carne, a inveja é a podridão dos ossos.

A luz dos olhos alegra a alma; a boa reputação engorda os ossos.

Isto, bom ou mau, está assim, em osso, nas versões bíblicas portuguesas; porém, a ilustrada e talvez religiosa dama, acudindo pelo siso do poeta hebreu, arguiu de muito parafrástica e cavilosa a minha interpretação, e corrigiu-a nos seguintes termos:

La meileure, la plus exacte, la plus élegante traduction de la Bible c’est la traduction alemande de Martin Luther. Or voici, mot pour mot, les versets que Mr. C. C. B. a cité:

La feme déligente est la courone de son mari, la nonchalante est l’ulcère de son corps.

Un bon coeur est la vie de la complexion (constitution du corps); l’envie est l’ulcère des os.

Un coeur joyeux rend la vie agréable; mais une humeur sombre desséche le corps.

Une visage amicale rejouit le coeur, une bone renomée engraisse le corps.

Le langage affectueux est du miel qui conforte l’âme et rafraichit le corps.

Na verdade, o monge augustiniano, vertendo para corpo o que os setenta ossificaram desgraçadamente, expungiu dos versículos a parte picaresca. Bom foi isso.

***

A demência de Elisa Weimar manifestou-se num lance que, a não ter a irresponsabilidade da loucura, seria o máximo desdouro — uma catástrofe moral. Foi ela pessoalmente delatar à autoridade civil que o seu marido e outras pessoas conjuravam contra a dinastia e elaboravam tramas sanguinolentos nos subterrâneos da oficina do Nacional. O magistrado, como se a respiração da mentecapta o contagiasse provisoriamente, lançou inculcas, adestrou espias, afuroou certas luras onde os conspiradores poderiam alapardar-se. Afinal relaxou-se um pouco, confiando a sorte da dinastia às fatalidades indeclináveis do destino.

De outra vez, a deplorável senhora, quando o meu querido amigo José Cardoso Vieira de Castro era já falecido em Loanda, denunciou ao administrador do bairro de Cedofeita que, em casa do seu marido, estava escondido

Vieira de Castro, fugitivo de Angola, onde, de acordo com as autoridades, dera morto por si. Esta denúncia foi desprezada com bastante admiração minha. Varias pessoas me disseram por esse tempo que Vieira de Castro passeava vivíssimo na América inglesa; não seria, pois, absurdo fazê-lo viajar até casa de Gonçalves Basto, na Ramada Alta.

Nesta visualidade de Elisa há uma coincidência memorável. Na casa que ela indicara como esconderijo do condenado, hospedara-se Vieira de Castro com a sua senhora, quando chegaram a Portugal. Morava então ali seu irmão Antônio. No ano seguinte, foi habitá-la Gonçalves Basto, atraído pela beleza do sítio e prazeres da jardinagem em que se ocupava todas as horas vagas dos seus labores de escrivão de fazenda.

Aqui viveu três alegres anos o fatigado lidador do jornalismo, cultivando flores, morangais, parreiras, e fabricando ele mesmo, na qualidade de lagareiro, o seu vinho, com que, no estio, deliciava os hóspedes.

Nesta inocência de patriarca, o assalteou um dia a esposa, ao cabo de nove anos de divórcio, intimando-lhe que saísse daquela casa que era dela. O fleumático marido enfardelou alguns objetos de primeira necessidade e mudou-se, como quem foge. Tinha juízo. Aquela visão etérea de J. Janin, olorosa de violetas, recendia agora à pólvora e fósforo dos revólver, desde que o rapazio da Foz lhe pegou de apupar as abas amorfas e infinitas de uns chapéus de palha mastreados de escumilhas variegadas.

Magoa-me verdadeiramente desfazer algum tanto na sentimentalidade com que, em alguns periódicos, se lastimou a miséria de Elisa Weimar. Vi escrito que a suicida experimentara as agonias da fome, da casa sem aconchego, do desamparo dos indigentes. Não é exato isto. Há de haver quatorze anos que ela foi a Paris instaurar um pleito sobre a herança do seu irmão. A ação intentada terminou por conciliação, lucrando a irmã de Loeve-Weimar uma pensão anual e vitalícia de 3:000 francos. Além disso, recebia 18$000 reis mensais que lhe dava o marido. 750$000 reis bastariam ao decente passadio de uma senhora com regular entendimento para governar-se; porém, se os proprietários dos prédios que ela habitava recorriam ao expediente das penhoras, é porque Mademoiselle Elisa Weimar não pensava normalmente acerca dos senhorios; ou, no estado informe das suas ideias embaralhadas, não podia conciliar as obrigações impostas pelo Código Civil, no artigo 1608, que reza: O arrendatário é obrigado a satisfazer a renda, etc.

De mais a mais, esta senhora presumia-se muito rica e muito perseguida pelos jesuítas — talvez reminiscências delirantes da família do general Simon de E. Sue. À volta do Porto, reputava propriedades suas, rústicas e urbanas, as campinas mais férteis e os chalets mais imbricados. Afora isto, dava-se como direta senhora e enfiteuta de terrenos na Foz e outros pontos convidativos a edificação. De modo que, se lia no Primeiro de janeiro ou Comércio do Porto o anúncio duma propriedade à venda, no dia seguinte contra anunciava que a propriedade era sua, ainda mesmo que a não tivesse arrolado no tombo imaginário dos seus haveres litigiosos. Aqui há meses, um padre que se dizia procurador do meu amigo Custódio Teixeira Pinto Basto, replicando a um desses contra-anúncios, alegou, na imprensa, que a Sra. D. Elisa Loewe-Weimar estava enganada; pois que os prédios, quintas e chãos que ela reputava seus, eram indisputavelmente do seu constituinte o Sr. Pinto Basto. Em resultado deste desmentido, assinado por um padre, me escreveu Mademoiselle Elisa confirmando-me na guerra que os jesuítas lhe moviam, confederados em espoliá-la porque era protestante e estrangeira desprotegida das autoridades portuguesas. Em virtude do que me rogava que saísse na sua defesa e lhe comunicasse os alvitres a seguir mediante cartas que, a uma hora determinada, eu devia introduzir pela fresta de uma das suas janelas ao rés do chão, visto que a sua correspondência lhe era subtraída no correio pela Companhia de Jesus.

Às vezes, parava na rua, e detinha-se a examinar a frontaria de um prédio. A final, recordava-se que era um dos seus, entrava no pátio, sacudia rijamente a campainha, e fazia saber ao morador que estava ali a senhoria para ver se eram precisas obras na sua casa. Era inofensiva; mas não deixava de ser incomoda esta maneira de doidice.

Há quatro anos ainda, vestia-se singularmente. Quando a saia era azul com requifes encarnados, o corpete era branco, e verde o filó do chapéu. Gostava muito do vestido de veludo preto e botinas brancas. Os transeuntes paravam descaridosamente a rir, e ela passava, triste e solene como o símbolo da desgraça num baile de carnaval. Nestes dois anos derradeiros, trajava menos que modesta, pobremente, um capotilho cor de castanha, apresilhado na cintura, e um chapéu campestre de palha cor de bronze. Não erguia os olhos, nem correspondia aos cortejos, quando algum raro encontradiço com memória e coração reconhecia, naquela mulher encanecida e trôpega, a esbelta e irrequieta francesa de há trinta anos, e maquinalmente se descobria como se faz a um esquife coberto de crepe e assinalado por uma cruz amarela.

***

José Joaquim Gonçalves Basto, no fim do ano passado, alegrou a minha mesa com a sua jovialidade, com as suas épicas faculdades digestivas. Estava conosco Plácido de Freitas Costa, um galhardo espírito com todas as graças petulantes dos rapazes de 1850. Não tem ainda trinta anos, e protesta contra o marasmo dos homens da sua geração — uma gente que tem o coração em modorra e a alma anelante no domínio de quatro inscrições.

Não havia aí distinguir entre os dois na competência de festivas rapazices. Alta noite, saíram de braço dado, percorreram os teatros e passearam as ruas até ao romper da aurora. Gonçalves Basto perfizera setenta anos nesse mês. Ao outro dia, Plácido de Freitas dava um jantar ao decano da imprensa portuense no Hotel do Louvre. Os comensais eram todos rapazes e alguns estrangeiros. Gonçalves Basto brindava-os nas suas línguas, e as risadas estrondeavam quando ele salgava os discursos com as facécias que se usam lá fora nos lautos banquetes britânicos em que o corpo, mais débil que o espírito, resvala para debaixo da mesa, e todo homem se fica então parecendo com Horácio ou Numentano a ressonar no triclínico.

Dois meses depois, estando eu enfermo, disseram-me que José Joaquim Gonçalves Basto adoecera, pela primeira vez na sua vida. Ao outro dia, mandei saber como passara a noite. Tinha morrido às cinco horas da manhã.

***

A viúva, participando-me que o seu marido estava defunto, relatava o caso tão glacialmente como se historiasse o trespasse do seu quinto avô. Todavia, tinha magoados toques o seu estilo quando o arguia de haver deixado hipotecadas fraudulentamente as propriedades em benefício de varias mancebas.

A falta do marido, que para ela representava quatro libras mensais, verdadeiramente não autoriza a hipótese da pobreza. Os numerosos e extensos anúncios que publicava, em ressalva das suas propriedades, eram pagos. Visitava as livrarias e comprava livros. Tinha uma casa decentemente trastejada, e servia-se com criados a quem pagava talvez, não os confundindo com os senhorios.

Quando o proprietário da casa lhe enviou mandado de despejo e sequestro no dia último de Setembro, Elisa Weimar fez trancar as avenidas. Nesse momento, a sua alma aterrada pelo estrondo dos esbirros que arrombavam as portas, estremeceu, e… acordou. Eis o momento da lucidez! Ao cabo de seis anos de demência, relampagueou-lhe na razão o fulgor de um corisco; e então, vendo-se desgraçada e ridícula, matou-se.

***

Adeus, minha formosa das violetas! O teu Júlio Janin, o teu cantor, quantos te amaram e admiraram são já mortos, desde Henri Heine até Philarète Chasles. Como devias ter morrido antes da velhice, a tua alma sempre juvenil desamparou-te; e enquanto ela gemia nos ciprestais do Père-la-Chaise a cada saimento dos teus amigos da mocidade, o teu corpo inerte e estúpido imergia no pesadelo das sonhadas riquezas! Ias ser baldeada aos ápodos das turbas, e levada pela polícia à caverna das doidas, quando a tua alma regressou nas suas azas de luz, radiou por sobre a área negra da tua suprema desgraça, e aí te iluminou o suave reclinatório da sepultura. Era a hora bem-dita ou maldita da morte. Abraçaste-a. Descansas. Numa das tuas cartas me escreveste há vinte anos, estas palavras de Balzac: Cada suicida é um poema sublime de melancolia… Adeus! quando eu souber onde a caridade te sepultou, irei levar-te um ramo de violetas.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

compre-amazon

   

Intitula Cursos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *