terça-feira, dezembro 3, 2024

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Camilo Castelo BrancoContos, Crônicas e Poesias

Aquela casa triste,Conto de Camilo Castelo Branco

Aquela casa triste

 A casa grande das quinze janelas branqueja no espinhaço do monte.As janelas fecharam-se há seis meses, ao mesmo tempo que duas sepulturas se abriram.
A sepultura do africano, que chegava ao cemitério quando a filha expirava; e a sepultura de Deolinda, quando o sino dobrava ainda nos funerais do pai.
Ao homem que morreu naquela casa triste chamavam o africano.
Estou-a vendo daqui.
As vidraças reverberam o sol poente.
Eu, há hoje dez anos, vi abrir os alicerces daquela casa.
Lidavam operários a centenares.
Entre os alvenéis estava um sujeito, na pujança dos anos, magro, macilento e tostado pelo sol da África.
Disseram-me que era homem muito rico, e viera do cabo do mundo, e se chamava Duque por apelido e o africano por alcunha.
Avizinhei-me dele, com o rosto risonho de cortesias, para lhe perguntar como ia, em monte assim agro e ermo, fabricar edifício tão grandemente cimentado.
Respondeu que tinha em Benguela uma filha, com quem andara viajando na Suíça. E que a sua Deolinda, estanciando nas empinadas serras de São Gotardo, disse-lhe que seria feliz se morasse no topo de uma montanha, em casa imitante de outra onde pernoitara, e donde vira levantar-se o Sol do seu leito de neve.
E ele, pai extremoso, rico e saudoso da pátria, disse à filha que, pôr cima da casinha onde nascera, num outeiro do Minho, sobranceava um alto monte, golpeado de regatos que derivavam por entre arvoredos fresquíssimos.
E a filha, cingindo-lhe ao pescoço, exclamara:
— E quando vamos?
— Irei fazer a casa no alto do monte, e depois irás tu, e levaremos para a capela os ossos da tua mãe. E eu descansarei desta labutação em que pude granjear mais que o preciso ao teu passadio, visto que preferes, a viver em Paris, uma casa nas serras de Portugal.
E saiu de Benguela, provido de dinheiro para edificar o ostentoso chalé que a filha fantasiara.
Ora, os arquitetos do Minho, como não percebessem a planta do africano, construíram-lhe um palácio aldeão, espécie de dormitório monástico, um leviatão de granito zebrado de vidraças enormes e portas alterosas.
Perto dali, na outra lombada do mesmo outeiro, está o antigo solar torreado dos senhores de Farelães.
E eu, que, naquele tempo, me embrenhava nas ruinarias grandiosas do paço senhorial de Ruivães, a decifrar a lenda meio histórica dos Correias de Sá nos frescos do teto apainelado, ao perpassar pelas grossas cantarias do africano, dizia entre mim: “O palácio cavaleiroso que desaba e o palácio industrial que se levanta. Aquele recorda as manhas épicas do peito ilustre lusitano, indústria da lança que atirou da Índia para ali, na ponta ensanguentada, a pedraria dos reis de Chaul, de Calecute e Mombaça.
Ergue-se o novo palácio para assinalar à posteridade que o peito moderno lusitano é ainda ilustre e empreendedor, diferençando-se do antigo somente no que vai entre adaga e azorrague, entre acutilar o Índio pela frente ou verberar o Etíope pelas costas. Mas eu não sabia se aquele homem, tão entranhadamente pai, amealhara os seus haveres pôr entre os perigos do cruzeiro. Talvez que não. A riqueza não é sempre o estipêndio generoso dos homens cruéis. E, em corações afistulados por peçonha de cobiça – sede execrável que se apaga em lágrimas – não cabe o exaltado e santíssimo sentimento do amor paternal. Quem chora por um filho não tem olhos que vejam, enxutos, arrancar escravos dos braços das suas mães. Verdade é que os práticos destes ultrajes a Jesus – ser divino em que Deus se manifestou no mais elevado grau da consciência humana – dizem que lá, nas cubatas, não há mães nem filhos: há indivíduos bestialmente rebanhados e inconsciente de laços de família. Se assim é, meu Deus, por que não destes à vossa criatura de epiderme negra o amor maternal que dulcifica as meiguices da hiena enroscada nos filhos?

***

Aprumadas as paredes, delineados os repartimentos, os patins, as portas, a capela e o jardim, Duque, o africano, saudoso da filha, deixou a obra no meio e dinheiro de sobra ao seu feitor, pautando-lhe que, no prazo de doze meses, a casa estaria feita.
E voltou a Benguela, onde tinha centenas de escravos, armazéns de café, de marfim, de gomas, e as suas vastas sementeiras sobre dez léguas circulares de terra, onde o suor da pele fusca, porejado pelo sol a pique, era um como adubo forte, um guano de sangue estilado por entre febras vigorosas e distendidas pelo látego.
Vendeu as fazendas, enfeitou as bestas e os negros, abarrotou a galera de carregação sua, esquivou a tolda, decorou de froixéis de seda o camarim da filha e projetou à pátria. Parecia um dos antigos vice-reis que voltavam da Índia, de uns que não se chamavam João de castro nem Afonso de Albuquerque.
— Vale duzentos contos a carga da Deolinda! – diziam os amigos do africano, quando as velas da galera, chamada com o nome da filha do seu dono, trapeavam bafejadas por aprazível brisa.
A navegação, por perto da costa, e sempre ajudada por prósperos ventos, correu alegre e descuidosa de receios.
Deolinda deleitava-se a remirar a prata das ondas espumantes, ou, enlevada em leituras amenas, passava as tardes na tolda, enquanto não chegavam os seus amores mais queridos, as estrelas do céu e as fosforescências do mar.
Ela era mulata, e bela quanto cabe ser, com a face beijada por aqueles raios ardentes e o sangue escaldeado das lufadas do deserto – mulata, com as feições levemente denunciativas da raça materna, quase tirante a esmaiado amarelido, um bem harmonizado conjunto de graças, avantajadas ao que se diz beleza, debaixo deste nosso céu de rostos níveos, sangue pobre e epiderme alvacenta.
Trasmontada a linha e festejado o passo com descantes da maruja, o céu entrou de nublar-se, a nortada a ringir nas gáveas os silvos agoureiros e o piloto esperto a encarar muito fito num nevoeiro que se acastelava, sobre noite, à volta do sol esmaecido. Era em Fevereiro de 1869.
Ao repontar a manhã do dia seguinte, o mar urrava acapelado, as nuvens desciam a sorver as ondas que se encurvavam, o sol apenas entreluzia frio e marmóreo na baça claridade da manhã.
Ao meio-dia, o escurecer fez-se rápido e pardacento como um crepúsculo de noite invernosa.
Bravejou súbita fúria de mar, apenas colhido o velame.
O piloto vira terra, e cobrara alento na esperança de aproar a Cabo Verde, conquanto se temesse daquela costa infamada de muitos naufrágios, desde que portugueses se andam à cata de ouro e opróbrio pôr entre os colmilhos da morte, na espádua das tempestades, a braços com a ira de Deus e dos homens.
Noite alta, estrondeou no cavername da galera um como estampido de peça que detonasse dentro.
Deolinda foi colhida nos braços do pai, quando resvalava da camilha ao pavimento, com o livro das suas orações nas mãos convulsas, e o nome da Mãe dos aflitos nos lábios.
— Morreremos, meu pai?! – perguntou trespassada de horror.
— Ânimo! – murmurou ele –, abraça-te em mim, que eu não quero chorar-te nem que me chores, filha… Morreremos juntos.
Em cima estrugia a celeuma dos marinheiros, o rojar ríspido das amarras, os gritos, as súplicas, os apitos, o troar da peça, que pedia socorro, e o dos trovões, que reboavam, e um relampadejar que azulava os abismos.
E, de súbito, a galera, após aquele repelão que lhe vibrou as cavernas, quedou-se arquejante, a roçar nos espigões da restinga.
E as vagas, raivando contra aquele estorvo, galgavam-no, rolando-se, refervendo e marulhando de um bordo a outro. O porão descosia-se, bebendo e golfando jorros de água como o monstro dos mares escalavrado pelos arpéus.
O capitão, pálido mas sereno, debruçou-se no corrimão da câmara e disse:
— Encalhou a galera, Sr. Duque. É tempo de sair a terra.
— Nenhuma esperança? – perguntou o africano.
— Só?…
Perguntou o homem rico; mas aquele monossílabo, estrangulado na garganta, rouquejou como um arranco da vida. Só! Só a vida? O meu suor de quarenta anos, os meus duzentos contos de réis não salvam? Eu hei de sair pobre de entre esta riqueza que é minha, que é o repouso da velhice, o patrimônio da minha filha? Só!
E as lanchas, balançadas no vaivém das ondas, chofravam nos flancos do navio por entre espadanas de espuma.
Deolinda atravessou corajosa, e firmada no braço do pai, até ao portaló.
O africano levava no rosto um terror indescritível e nas contorções e visagens de aflição a agonia da pior morte.
E ela saltou de ímpeto ao escaler, apenas amparada na mão de um passageiro, que disse-lhe:
— Adeus…
— Não vem? – perguntou ela.
— Primeiro hão de vir as crianças, as mulheres e os velhos.
Deolinda contemplou-o alguns momentos, e amparou-se na face do pai, onde as lágrimas derivavam copiosas.
Os escaleres varavam na areia, revezados no rolo da vaga. Estavam salvos os velhos, as mulheres e as crianças.
E, logo, os remadores intrépidos que outra vez se arrostavam com a morte, viram a galera a balouçar-se entre o vagalhão e ouviram o estralejar do cavername por sobre os clamores dos náufragos; depois, levantou-se um grande mar, e a lancha ficou para além dessa formidável montanha; e, quando o escarcéu descaiu para solevar a barca, um momento quieta nas fauces da voragem, os mareantes já não viram da galera senão o gume da quilha e à volta dela o bracejar dos agonizantes.

***

Um dos que ali morreram foi aquele que, dando a mão a Deolinda, lhe dissera: “Adeus!” Era um homem de trinta anos, bem figurado, ares de fina raça e maneiras de cortesão, com palavras polidas e muito alheias das usuais nos homens que viandam por aquelas paragens. Não lhe sei o nome, nem que lho soubera o diria. Foi-lhe túmulo o mar, como se a sorte quisesse que o seu nome se não lesse em epitáfio. Sei que ele cumprira sentença de três anos em angola, porque aspirara às honras de ser rico, sem escrupulizar nos meios. Tinham-lhe dito que os seus conterrâneos mais nobilitados se tinham enriquecido trocando as riquezas de sã consciência por outras que levam ao Inferno, é verdade, mas pelas portas do Paraíso das regalias deste mundo. Via-os saborearem-se em sossego dos bens mal adquiridos, sem remorso que lhes desvelasse as noites, nem injúria da sociedade que lhes pusesse ferrete na testa; ao revés disso, eles eram a classe mais ao de cima, a gente chamada às honras, sem desconto na estupidez nem proterva reputação, quando à procedência dos seus bens de fortuna.
Nascimento ilustre, educação primorosa em letras e bastante descuidada em moral, pobreza repentina por efeito de demandas que o esbulharam do patrimônio, impaciência, ruins exemplos de infames prosperados – todas estas coisas se travaram de mão para o perderem. O seu crime foi associar-se desaproveitadamente com moedeiros falsos, prestando-se a servir de passador de notas no Brasil; no ato, porém, de fazer-se à vela para lá, de um porto do arquipélago açoriano, foi denunciado, preso e condenado.
De volta para Portugal, foi visto por Deolinda a bordo da galera do seu pai, que o tratava com desdém, se não desprezo. A filha do negreiro – negreiro no começo da vida mercantil, mas depois (bendita seja a civilização!) filantropo seguidor das leis humanitárias impostas pelo cruzeiro – soube do seu pai o crime do passageiro e não se compenetrou do racional horror de tamanho delito. Bem que o condenado não ousasse abeirar-se dos mercadores, e menos dela, Deolinda usou traças de conversar com ele uma fugitiva hora de noite serena, enquanto o pai, no seu camarim, formava esquadrões de algarismos, dos quais tirou a prova real de que os seus haveres excediam para muito os duzentos contos que lhe atribuíam.
Desde essa hora da noite estrelada em que ela ouvira palavras nunca ouvidas, acendeu-se no coração combustível da mulata o fogo que costuma purificar as culpas do homem amado, tanto monta que ele seja moedeiro falso, como homicida, quer negreiro, quer ladrão de encruzilhada.
E ele soube que era amado daquela mulher que havia de herdar muito ouro, e nem por isso lhe deu o galardão de Ter descido até ao pobre estigmatizado para sempre. Nem palavra de humildade agradecida, nem ânimo alvoroçado por esperança de ser, a um tempo, amado e rico.
Deolinda ousou argui-lo de frio e desdenhoso. Ele explicou docemente a sua frialdade, dizendo que só havia no mundo uma mulher que não devia desprezá-lo, e uma só a quem ele devesse amar sem pejo nem temor de ser repelido.
— Quem é? – perguntou ela em sobressalto.
— É a minha mãe. Vou procurá-la e pedir-lhe perdão, porque pus a minha ignomínia à cabeceira do seu leito de moribunda. Se a não mataram vergonhas e saudades, é porque Deus quer que eu a veja.

***

Quem sabe aí dizer o que Deus quer de nós?
O degredado, na volta da pátria, ali morreu naquele naufrágio, depois que ajudou a salvar as crianças, as mulheres e os anciãos, despedindo-se de todos com aquele sereno adeus que dissera à filha do africano.
E Deolinda, quando soube que ele era um dos vinte e cinco cadáveres escalavrados na costa de Cabo Verde, chorou poucas lágrimas, e parecia querer romper no seio uma represa delas, que lhe deliam os estames da vida.
— Estamos pobres! – exclamava o pai.
— Temos demais para o que havemos de viver – respondia ela com uma alegre serenidade.
— Por que hás de tu morrer, minha filha? – volvia ele, já conformado com a desgraça.
— Porque senti há pouco um estalo no coração e pensei que morria abafada. Passou esta ânsia, mas sei que hei de morrer disto. Parece que vejo a sepultura aberta e que o frio do cadáver me trespassa.
O pai aconchegou-a ao seio, como quem aquece uma criança enregelada e soluçou:
— Ó meu Deus, levai-me minha filha quando eu me queixar da vossa vontade que me reduziu a esta pobreza!

***

Quando soou em Ruivães a nova de haver chegado ao Porto o africano, com a filha, os homens ricos e pobres, da terra e de fora, contribuíram com mais ou menos para se lhes fazer uma espera de estrondo em Famalicão.
Contrataram-se as bandas musicais mais em voga, ou mais na berra, como diziam os antigos. Parece que a frase seiscentista foi inventada particularmente para as orquestras daqueles sítios, as quais berram pelas suas goelas de metal, quando a paixão filarmônica as não exalta do berro ao mugido, do mugido ao urro e do urro ao bramido. Há ali trombetas que parecem ter assistido ao arrasar-se de Jericó da Bíblia, e se reservam para trovejarem o horrendo sinal da ressurreição de Josafá.
Eram quatro as filarmônicas chamadas a festejarem a entrada de Antônio Duque no conselho. A música de Landim, famosa por seis cornetas de chaves, que executavam valsas e peças teatrais, de modo que, se Ducis as ouvisse, diria que a ópera lírica balbuciara os seus primórdios entre as florestas druídicas. A banda de Fafião competia com a de Guinfões na substância das trompas e troada das caixas. A de Ruivães avantajava-se às três rivais na delicadeza das modas e sentimentalismo com que as charamelas respiravam o sopro daqueles músicos, cujas bochechas pareciam estar cheias de alma e castanhas assadas.
Sou um homem feliz e digno de inveja. Tenho saboreado os inocentes deleites que prodigalizam ao seu auditório as quatro bandas musicais de Landim, Fafião, Ruivães e Guinfões. Quando algum amigo vai alegrar o ermo de São Miguel de Ceide, chamo logo a música mais delicada, a de Ruivães; principalmente se o amigo é de Lisboa, e frequentador de São Carlos. O senhor visconde de Castilho e o seu filho Eugênio são chamados a depor neste processo da imortalidade que vou instaurando ao figle e à requinta, principalmente à requinta de Ruivães. Não vi o senhor visconde chorar de prazer, mas observei que sua excelência estava comovido quando a requinta assobiava uns guinchos estridentes da Maria Cachucha.
Tomás Ribeiro, o poeta eminente, recolhia-se às vezes, não ao seu quarto a calafetar os ouvidos, mas ao íntimo da sua alma a fazer viveiro de inspirações. Eugênio de Castilho, o poeta das fantasias louras, quer a música de Ruivães lhe amolentasse a sensibilidade, quer os rouxinóis das ramarias lhe dessem invejas dos seus amores, fosse o que fosse, foi assaltado e vencido de uma paixão.
Esta paixão tem uma história. Não sei se ele tenciona escrevê-la nas suas memórias póstumas; e assim, contá-la eu, é esbulhá-lo da novidade e primazia; desconfio, porém, que o meu hóspede e amigo desconhece a história daquela raparigaça de cabelos de ouro e ancas boleadas que deslumbrava a dúzia de jovens requebradas que lhe apresentei na eira.
Chamava-se ela Amélia de Landim. Contava-se que tinha vindo para ali da roda dos expostos de Barcelos. Naturalmente, porque era linda e pobre, ou se vendera ou tinha sido vendida. Assim se disse; mas o certo foi que um filho de lavrador rico lhe dera o impulso no alto da ladeira, ao fundo da qual estava a voragem. Pode ser que a alma se abismasse e requeimasse no fogo dos infernos por onde resvala a mulher perdida. Pode ser. Do corpo é que ela não perdera a menor beleza; nem sequer o viço dos dezoitos anos.
Teria então vinte e cinco. Não era beleza peninsular. Aquele escarlate, os olhos azuis, os opulentos cabelos louros, a pujança das formas, a musculatura rosada e rija, a elegância congênita, o riso, a desenvoltura sem despejo, a graça lúbrica do trajo, enfim, a mulher, os arvoredos, a música de Ruivães, nomeadamente a requinta, e no meio de tudo isto um rapaz de vinte e dois anos, poeta porque é Castilho, e ardente porque é trigueiro, e apaixonado porque é ardente, eis aqui o porquê daqueles amores.
Castilho carecia de um confidente com ouvidos e crítica. A poesia não lhe deu para se confidenciar com os sobreiros da mata, nem me consta que ele se andasse a entalhar na cortiça iniciais e datas.
O seu confidente foi o morgado de Pereira, último senhor da honra e couro de Esmeriz, um rapaz de grande coração, que eu apresentei, no Limoeiro, a José Cardoso Vieira de Castro, que, em 5 de outubro do ano passado, morreu no degredo, para onde o acompanhou aquele morgado.
Este neto dos Ferreiras Eças e dos remotos castelões de Riba de Ave é hoje, em Cassengo, na África, negociante de café, de marfim, de gomas, de farinhas, etc. Depois de haver bandarreado vida de fausto, com muitas ilusões perdidas, mas pouquíssimas lágrimas, porque a desgraça lhe anda sempre a morder os tacões das botas, em dia de fiéis defuntos ajoelhava, e então chorava, no cemitério de Luanda, em frente do cômodo onde jaz Vieira de Castro, o mais sublime desgraçado que os homens injuriaram, desde que o sol de Deus aquece condições de feras dentro dos covis que se chamam arcas do peito.
Ó meu caro morgado, estas linhas não chegam ao seu sertão, nem eu desejo que as leia, para lhe não darem rebates de saudades daquelas noites de 1866, quando você e mais o seu gentil confidente, com intervenção da Lua, falavam da Amélia de Landim, enquanto os meus queridos visconde de Castilho e Tomás Ribeiro se embelezavam nas trovas da Custódia da Feira, que seria Hipatias, se nascesse na Grécia, ou Corina, se os amavios de Itália lhe coassem no seio coisas mais limpas do que as coplas que a trovadora do Minho tirava do estômago em perfumes de vinho verde.
Não sei como Eugênio de Castilho saiu de São Miguel de Ceide, pelo que respeita à alma. Lá dizia-se que Amélia, a doida, veementemente apaixonada, iria depós ele. Eu receei o lanço de fino amor, donde adviriam ao meu hóspede agros desgostos. Se os de Lisboa lha vissem, quantos rivais, que mordentíssimos ciúmes! Aquilo era mulher para destinos extravagantes. Que a sentassem numa frisa de São Carlos! Os binóculos assestados nela seriam tantos como as paixões, e ao outro dia a enjeitada de Landim, se não fizesse ministérios, havia de fazer muito amanuense de secretaria e dar vazão ao estanque de muito bacharel.
Não foi: estava-lhe reservado menos brilhante mas mais pacífico destino.
Um dia, apareceu em Landim um homem de Barcelos, procurando a mulher que trouxera da roda dos expostos, em 1851, uma menina chamada Amélia. Vivia ainda a ama que a criara. Foi chamada a exposta à presença do homem que se dizia portador de uma fausta nova.
Chegou Amélia, e recebeu do velho desconhecido o tratamento de excelência. Cuidou-se ela ludíbrio do sujeito e riu-se às casquinadas para lhe agorentar o prazer da zombaria.
No entanto, o velho, composto gravemente o aspeto, disse-lhe:
— Minha senhora, não é para gargalhadas a missão que venho cumprir…
— Pois vossa excelência está a dar-me excelência! – volveu Amélia.
— Dou-lhe o tratamento do seu pai e dos seus avós. O seu pai, o Sr. Álvaro de Mendanha, antiquíssimo fidalgo e representante dos alcaides-mores de Barcelos, faleceu há três dias com testamento, em que declara que houvera de uma sua parenta, àquele tempo freira no mosteiro de Vairão, uma filha, que por justos motivos expusera, assinalando-a com o nome e outras circunstâncias. Acrescenta que tem notícia de existir em Landim essa menina, que ele reconhece sua filha, e a institui sua universal herdeira. É vossa excelência, portanto, a herdeira do Sr. Álvaro de Mendanha.
A ama abriu a boca e despediu um ah surdo, que vinha da garganta afogada pelo júbilo.
Amélia quedou-se imóvel, pensativa, triste, e murmurou:
— Se o meu pai sabia que eu estava aqui, por que me não levou para a sua companhia?
— Respondo, minha senhora. Quando vossa excelência tinha dezoito anos, o seu pai indagou e descobriu que a Sra. D. Amélia estava aqui; porém, ao mesmo tempo, exatas ou inexatas informações lhe asseveraram que a senhora levava uma vida péssima, desonrada e cheia de opróbrio. Receou, com algum fundamento, o Sr. Álvaro de Mendanha que o aviltamento da sua filha desluzisse o lustre do seu nome, e por isso abafou o coração e o remorso debaixo do peso da dignidade, ou recuou diante da irrisão do mundo…
— Mas… – interrompeu Amélia – se eu estava perdida, foi porque ele me atirou ao mundo e à sorte sem amparo de ninguém…
— Tem razão, minha senhora, e foi essa mesma a razão que moveu o seu pai a deixar-lhe todos os seus bens.
— Mas eu antes queria conhecê-lo e melhor ser pobre, que ser rica por morte dele.
— Já que não é remediável essa nobre dor – disse o testamenteiro de Mendanha – receba vossa excelência a suprema prova do arrependimento do seu pai.
Neste legado dos bens está o legado do coração. Seja de hoje em diante vossa excelência digna dele, já que desde esta hora os seus apelidos são dos mais ilustres desta província.
Neste mesmo dia, D. Amélia de Mendanha saiu para Barcelos, onde entrou a ocultas para o palacete do seu pai, a fim de trajar luto e aparecer convenientemente aos numerosos parentes que confluíam a desanojá-la.
Os bens eram grandes em terras e foros. Casa antiga e sólida. Alfaias do tempo de D. João V a dourarem os salões de teto apainelado, com reposteiros brasonados. Na parte mais velha do edifício, cadeiras repregadas de bronze, contadores atauxiados de prata e enxadrezados a cores, guadamecins nas paredes, amplas mesas de pés torneados, leitos rendilhados com as armas dos Mendanhas na espalda, bufetes, jarras da Índia com as iniciais de um governador de Chaul, oriundo de Mendanha, retratos de família, a começarem em D. Gil Gutierres de Mendanha, solarengo de Barcelos, no meio disto, e senhora de tudo isto, aquela Amélia de Landim, ó meu amigo Eugênio de Castilho! Aquela Amélia, que sarabandeava a Cana verde, o Leva água o regadinho, e descantava umas Torradas com manteiga que não há aí mais que se diga.
— Onde estava ela?
Perguntavam entre si as primas e os primos.
E diziam exatamente onde ela estivera e de que infectos pauis se levantara com asas de ouro aquela borboleta saída de tão feio casulo!
Relatavam-se os pormenores da sua desgraçada vida, encareciam-se, como se fosse preciso, as desonestidades… e visitavam-na.
Volvidos alguns meses, três padres, à compita, lhe saíram a propor três casamentos: rapazes, parentes, abastados ou arruinados, mas fidalgos e gentilíssimos das suas pessoas.
Rejeitou-os.
Um dia, saiu D. Amélia de Barcelos, na sua sege, apeou em Famalicão, saiu a pé, e parou perto de Landim, à porta de um lavrador. Procurou por um homem que dava pelo nome de Antônio do Couto de Baixo.
Saiu a falar-lhe no quinteiro, ou alpendre, um sujeito de trinta anos, boa figura de campônio, estupidez em barda por todo aquele carão.
— Antônio – disse ela –, conheces-me?
— A senhora, a senhora… acho que é… – tartamudeou o lavrador agadanhando no occipital.
— Sou a Amélia de Landim. Quando eu tinha 15 anos, amei-te. Era então inocente. Esperava ser tua mulher, e perdi-me. O teu pai não te quis deixar casar comigo, porque eu era pobre. Sei que sofreste, e quiseste fugir para o Brasil a fim de ganhares dinheiro, para depois me receberes. Eu não te deixei ir. Sabes qual foi a minha vida depois. Hoje estou rica, ainda te amo, por que foste a origem da minha desventura. Queres casar comigo?
Responde.
— Quero.
— Então segue-me.
— Deixa-me ir dizer a minha mãe, que essa queria que eu casasse contigo.
— Podes dizê-lo ao teu pai, que esse também quer agora.
E, daí a momentos, o pai e a mãe saíram ao alpendre, a recebê-la, e levaram-na para o sobrado entre carícias.
Aí pernoitou.
O velho nunca pôde desarticular os queixos da apostura do espasmo, desde que D. Amélia começou a contar por milhares de alqueires de milho o rendimento da sua casa.
Ao outro dia, que era Domingo, leram-se os primeiros banhos, e, com dispensa dos imediatos, casaram-se na Igreja de Santa Maria de Abade.

***

Mas a que propósito caiu este conto, que não tem que ver com Aquela Casa Triste!…
Ah! Foi pôr amor da requinta da música de Ruivães, que está agora silvando na Barca da Trofa, à espera de Antônio Duque, o africano.
As quatro músicas reunidas na Ponte da Trofa. Depois de espavorirem os passarinhos, que, ao descer da tarde, se embocavam nas ramarias do rio Ave, retrocederam, porque o Duque não chegou. Os promotores da festa, mandando sobraçar os feixes de foguetes de três estouros, disseram entre si que o africano, faltando à hora da espera triunfal, bem demonstrava ser filho do capador da Lamela. Outro era de parecer que o Duque, tratando de resto as pessoas que o obsequiavam, dava a perceber que não queria amigos… do seu dinheiro.
O africano havia escrito de Lisboa ao seu feitor, anunciando-lhe o dia em que tencionava chegar à sua casa de Ruivães, com recomendação de lhe ter preparados os leitos e assoldadada uma boa criada para o quarto da sua filha.
Divulgou o feitor a nova, sem propalar a do naufrágio, porque a não sabia. Se o homem lesse gazetas, informaria os seus vizinhos do desastre do seu amo, da riqueza engolida pelas goelas da tormenta, da quase pobreza em que ficara o náufrago, e, enfim, das piedosas lástimas com que os periódicos deploravam a catástrofe de duzentos contos granjeados honestamente. Se isto se soubesse em Ruivães, não haveria quem se afanasse em busca de músicas, competindo entre si os obsequiadores sobre qual arranjaria aquela que maiores gritos fazia dar à fama pelos buracos da requinta. Quando às vinte e quatro dúzias de foguetes de três estouros que os rapazinhos de Ruivães tinham carregado até à Ponte da Trofa, é bem de ver que ninguém se abalançaria a tamanho estrondo de generosidade, se soubesse que o Duque não vinha em circunstâncias de chorar de ternura abraçado ao peito magnânimo donde rabeavam tantos foguetes.
No dia marcado ao feitor, devia o africano chegar à Ponte, onde era esperado; porém, apeando na estalagem de Carriça, légua e meia distante, ouviu dizer que na Trofa estava o poder do mundo, com quatro músicas e muito fogo do ar, à espera de um brasileiro que vinha da África.
Ouvido isto, Duque disse ao boleeiro que recolhesse a parelha da sege, porque resolvera sair de madrugada.
Depois, foi contar à filha o que ouvira e o desgosto que queria evitar no encontro de festas, tão desapropositadas da tristeza de ambos.
Deolinda, prostrada no leito, aprovou a resolução do pai, queixando-se de agonias, sufocações e desmaios do coração, que mal a deixavam seguir a jornada.
Passou o pai o restante do dia e parte da noite à beira da cama, inventando com santo esforço alegrias que divertissem Deolinda da concentração que uma ou outra lágrima desafogava por momentos.
Alegrias!…
Que heroísmos cabem em peito de pai! Quantos há que são supliciados por esse amor que parece vir da mão de Deus! Que maiores angústias tem esta vida, se compararmos todas à daquele pai que ali estava ao pé da filha que os médicos de Lisboa lhe tinham auscultado e considerado perdida!
Mas ele, acreditando na ciência que tem a certeza de ser lesão mortal a hipertrofia do coração, afigurava-se-lhe que a Providência o não castigaria tão severamente, fazendo-o sobreviver ao perdimento dos bens, para depois amparar nos seus braços a filha agonizante. Nunca discutira entre si se Deus era preciso, ou que parte lhe coubesse no regimento deste mundo.
São meditações estas que, em África, passam rápidas como o siroco, mas não abrasam, nem obrigam as caravanas a curvar o corpo até bater com as faces nos areais. Os que por ali veniagam, à imitação do pai de Deolinda pensam, se acaso pensam, que a justiça do Céu tem alçada em mais amenos climas e descura saber se lá o homem tem mais ou menos semelhança com o tigre.
Porém, depois que o céu se azula e estrela, aquém da linha, e a brisa refrigera o sangue, os expatriados, maiormente os ricos, não recusam crer que há Deus, dadas certas condições; fazem-lhe o obséquio do conjeturar sentado à mão direita do Padre Eterno e absorvido na perenal glória da sua divindade, sem entender nas trivialidades deste globo, mais pequeno que os milhares de mundos que lhe circunvalam à ourela do trono. Esta filosofia é grandiosa e barata. Cansam-se os mestres em a propagar, e, todavia, qualquer sandeu bem engraxado a tem espontânea na alma, como tortulho em lodaçal, sem que os filósofos lha inculquem. Estudem Ario, Espinosa, Renan e outros, afora o meu bacalhoeiro, que tem dentro de si três filósofos, um pórtico, um liceu, dentro de si, repito, porque o si, o ele, são as cédulas bancárias, a burra, que tem um nome de predestinação para aviso e escarmento de sábios que se burrificam, não querendo acabar de entender que saber, honras, regalos, respeitos, inviolabilidades, vem tudo da burra.
Sucede, porém, uma vez ou outra, encrespar-se uma onda, que logo se arqueia em vagalhão e se abre em voragem. Aí resvala a riqueza do homem, que se arrodelara com ela das farpas do mundo. Os brilhantes impenetráveis do arnês caíram e rolam na profundidade do abismo. Aqui está o homem a pensar em Deus, porque está pobre, está sozinho, já se não vê ídolo dos outros e divindade de si próprio. A desgraça, que traz sempre consigo um anjo vestido no Céu com uma luz que arde inextinguível no túmulo de Sílvio Pélico, assenta-se ao lado do infeliz e começa por lhe dizer:
“Que eram esses bens da vida, se tão depressa te reduziste a esta pobreza? Olha tu para as estrelas que cintilam serenamente sobre a voragem que tos devorou, e pede ao meu anjo que te diga o que há destes milhões de mundos para além!” Ah! Quando esta voz repercute na consciência de um pai, e ao mesmo tempo a asa da morte roça e tinge de rubor febril a face da sua filha, então sim, Deus entreluz na treva, a alma crê, mas crê para pedir de mãos erguidas. Isto é fé, é fé que relampagueia; mas eu não sei se alguma hora a razão dos grandes desgraçados foi iluminada por esse relâmpago.
Pelo que, assim orava o africano, às quatro horas da manhã, em pé, em frente do leito da filha adormecida.

***

Entraram na casa apalaçada de Ruivães, inesperadamente.
Quando o souberam os vizinhos, um correu à igreja a repicar o sino e a sineta, outro rompeu as nuvens com girândolas, a orquestra da terra, que andava dispersa a sachar os milharais, confluiu de galope a casa do mestre, escodeou as mãos no regato, travou dos metais e prorrompeu estridulamente à porta do africano, tocando o hino de 20, o hino do Senhor.
Costa Cabral, o hino da Sra. Maria da Fonte, o hino do Sr. Duque de Saldanha e o do Santo Padre Pio IX.
O africano saiu à janela com a sua filha, cortejou o público, assistiu a das mazurcas tocadas com variações de requinta e pediu vênia para recolher-se, em razão da sua filha se sentir mal com o sol que lhe dava no rosto.
O público murmurou, trejeitando uns momos significativos de menos respeito.
O feitor foi dizer ao seu amo que era preciso dar de beber aos músicos e receber a visita dos parentes e mais lavradores.
O Duque respondeu:
— Vá aí fora ao pátio e diga bem alto que eu estou pobre.
— Pobre! – acudiu o feitor casquinando um riso perspicaz. – Bem me fio eu nisso! Vossa excelência está a gozar!…
— Faça o que lhe digo – volveu severamente o amo.
E, de fato, o criado foi ao pátio, chamou a si os lavradores mais grados, o mestre da música, o boticário de Delães, e o boticário de Landim, e o regedor de Vermoim, e disse-lhes:
— O Ilustríssimo Senhor Duque manda-me dizer a vossemecês que está pobre.
Os circunstantes olharam uns para os outros, embrutecidos pelo mesmo choque. Um deles, porém, que eu presumo fosse um dos dois boticários, deu aos beiços um jeito de quem vai orar. Encararam-no todos, e o boticário tirou do peito estas duas palavras:
— Ora bolas!
E saiu do pátio.
Tenho esquadrinhado o melhor sentido daquelas palavras do ático farmacêutico. Consultei filólogos que mais convizinham deste sujeito, e apenas colhi que as expressões montavam tanto como dizer: ora bolas.
Eu porém, dou mais lata interpretação ao epifonema, sabendo que todo aquele gentio bolourou para casa.

***

O africano, passados seis meses, procurou um brasileiro rico de Ninães, recentemente chegado, e disse-lhe:
— Sei que o senhor está resolvido a edificar uma casa. Se quer poupar-se a grandes despesas, incômodos e desgostos, compre-me a minha.
Vendo-lha metade do que me custou, com uma condição: se eu e a minha filha não tivermos morrido dentro de seis meses, serei obrigado a dar-lhe a casa no fim deste prazo; mas, nestes primeiros seis meses, o senhor não poderá ocupá-la.
Pediu o brasileiro explicações de tão estranha cláusula.
O Duque respondeu:
— Minha filha está mortalmente enferma. Tem um aneurisma. Eu também me sinto no termo da vida. Vou morrendo a cada hora que a doença me deixa ver a morte na face da minha filha. Não hei de sobreviver-lhe, se Deus me não fizer o benefício de me levar adiante.
Consolou-o o brasileiro conforme soube, aceitou a proposta e assinou as escrituras no dia seguinte, entregando ao vendedor alguns contos de réis.
Pagou o africano as dívidas contraídas em Cabo Verde, encerrou-se na antecâmara do quarto da sua filha, e deu-se pressa em agravar os seus padecimentos à custa de se remirar no seu infortúnio, de cortar bem dentro as fibras ainda rijas do coração antecipando a imagem da filha morta, repulsando todo o alívio da esperança, furtando-se a todo o desafogo, matando-se com a lentidão de um desvairado que se escavernasse num antro, esperando sem terror a entrada da fera e ansiando-a para se lhe rasgar nas presas.
Ao quinto mês do contrato, os padecimentos de Deolinda tocaram nos extremos sintomas da morte. As hemorragias amiudaram-se. Estava já entorpecida, imóvel, salvo quando arrancava do seio as aspirações, que revelavam ao través das coberturas da cama os arquejos do coração.
Nesta conjuntura, o pai estabeleceu entre si e Deus uma convenção que era já delírio precursor da demência ou da morte: “Se ela hoje morrer, ou Deus me mata amanhã ou, quando ela estiver sepultada, eu me matarei.” O pároco, que sacramentara Deolinda, ouviu esta vozes e disse aos botões da sua batina: “Este homem está no Inferno.” Quando ficou sozinha, Deolinda chamou o pai e disse-lhe:
— Não quero ir desta vida sem dizer-lhe um segredo com que não devo morrer. No meu baú está uma caixinha de folha, que o mar lançou à praia, depois do naufrágio. Levaram-me em Cabo Verde esta caixinha, pensando um marujo que fosse minha. Abri-a, e vi que encerrava cartas de uma mãe muito extremosa para seu filho. O filho era aquele rapaz que vinha do degredo, e salvou os velhos e as crianças antes de morrer. A mãe, que lhe escrevia, diz-lhe em algumas cartas que tem sentido as angústias da fome.
Chama-se ela… O meu pai lhe verá o nome e a terra onde vivia… Se tiver morrido, feliz dela. Se ainda viver, meu pai, manda-lhe como esmola o que ficar do meu espólio e diga-lhe que eu… lhe amei o seu infeliz filho… até morrer… por ele!…
— Cumprirei a tua vontade, minha filha – respondeu o pai.

***

Ditas aquelas palavras, o africano encarou na filha com a fixidez torva de um amaurótico. Depois, como se sentisse dobrar sobre os joelhos, saiu da alcova, atirou-se como ébrio para o leito, e murmurou estas vozes:
— Meu Deus! Morro por amor da minha filha, e ela… morre por outro…
Bem podia consentir a desgraça que eu morresse sem este desengano…
Vinte anos a adorar esta filha, um ano a agonizar ao pé da sua agonia… e afinal ouço-lhe dizer que morre por um homem… que não era o seu pai…
Escabujou em ânsias muito aflitivas, pedindo a Deus com dilacerante esforço que lhe abreviasse o transe. Rompeu em soluços; e, sufocado pelo choro ou por um golfo de sangue, arrancou da vida num estremecimento instantâneo.
Deolinda ouviu o murmúrio rouco desta convulsão da morte, e voltou a face para onde supunha que estava o pai.
Chamou-o. Sentou-se no leito com supremo esforço. Tangeu a campainha. Acudiu a criada, a quem ela pediu que lhe desse o seu vestido.
Foi nos braços da criada à sala contígua, onde o pai tinha o seu leito.
Dobrou-se sobre o peito dele, colhendo-lhe nos lábios um hálito ainda quente, como vestígio da alma que passara queimando as fibras por onde abrira a fuga do seu inferno.
— Morto! – bradou ela, golfando-lhe no seio o derradeiro sangue.
Transportada ao canapé fronteiro, ali se quedou empedernida. Não houve rogos que a tirassem de lá. Viu amortalhar o cadáver do seu pai, viu-o sair no esquife para ser depositado na capela da casa, ouviu o último dobre da sepultura; e então, comprimindo o seio esquerdo com ambas as mãos, invocou a compaixão da Virgem Santíssima e expirou.

***

Lá está em cima aquela casa triste… O brasileiro que a comprou não a quis habitar. As janelas nunca mais se abriram. O vestido que despiram do cadáver de Deolinda pende ainda da espalda do canapé em que ela morreu.

 

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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