quinta-feira, novembro 21, 2024

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Artur AzevedoContos, Crônicas e Poesias

Chico, Conto de Artur Azevedo

Chico

Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi chamado à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre do seu caráter obsequioso e humilde.

— Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissão que só tu poderás desempenhar a meu gosto.

— Estou às suas ordens.

— Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola que, em rapariga, enjeitou bons casamentos, sempre à espera de um príncipe, como nos contos de fadas, e agora, que vai caminhando a passos agigantados para os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar cá por casa e nem ela, nem eu, sabemos quem é.

— Ele chama-se?…

— Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz lacônica, em que declarou à Maricota que a amava e desejava ser seu esposo. Já me disseram — e é tudo quanto sei a seu respeito — que esteve empregado na estrada de ferro, onde não esquentou lugar. Preciso de mais amplas e completas informações a respeito desse indivíduo e, para obtê-las, lembrei-me de ti que és esperto e conheces meio mundo.

O Chico dissimulou uma careta.

— Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez 37 anos, mas é minha irmã, e eu, como chefe de família, farei o possível para evitar que ela se ligue a um homem que não seja um homem de bem, não achas?

— Certamente.

— Portanto, meu rapaz, peço-te que indagues e me venhas dizer quem é, ao certo, esse Alexandrino Pimentel, que quer ser meu cunhado. Peço-te igualmente que desempenhes essa comissão com a brevidade possível, pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada que nem um macaco a quem se mostra uma banana.

O Chico pôs-se a coçar a cabeça e não disse nada. Bem sabia quanto era espinhosa tal comissão, mas não tinha forças para recusar os seus serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu médico, já o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta.

— Está dito?

— Está dito. Vou indagar quem é o tal Alexandrino Pimentel, e pode contar que dentro de três ou quatro dias terá os esclarecimentos que deseja.

No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado antigo da Central, e perguntou-lhe se conhecia um sujeito que ali tinha estado algum tempo, chamado Alexandrino Pimentel.

— Um bêbado! — respondeu prontamente o outro.

— Bêbado?

— Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs na rua!

— Mas não se terá corrigido?

— Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com segurança é o Trancoso. — Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por sinal que não se dava com o sogro.

— Casado?

— Casado, sim!

— Quem é esse Trancoso?

— Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro anos. Mora lá para os lados de Inhaúma.

— Podes dar-me um bilhete de apresentação para ele?

— Pois não!

No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à procura do tal Trancoso, que já lá não morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana, onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz não esmoreceu diante de uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagações, batia à porta do Trancoso.

Veio abrir-lha um velho asmático, envolvido numa capa, lenço de seda ao pescoço, carapuça enterrada até às orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos.

Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum com “esse bandido”!

— Mas não é ele seu genro?

— Foi por desgraça minha, mas já o não é, pois deu tantos desgostos à minha filha, que a matou!

— Eu desejava apenas tomar algumas informações a respeito desse homem. Trata-se de coisa grave. Ele pretende casar-se em segundas núpcias, e foi a família da noiva que me pediu para…

— Pois, meu caro senhor, as informações que lhe tenho a dar são as seguintes: o sujeito de quem se trata é malandro, bêbado, devasso jogador e bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua própria mulher! Se a tal senhora, com quem ele se pretende casar, quiser passar fome e ser armazém de pancada, não poderá escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as informações que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente, e as visitas aborrecem-me!…

Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua.

Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino Pimentel, mas, ao ar livre, refletiu que todas essas informações, partindo de um homem tão apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser, pelo menos até certo ponto, injustas; por isso pôs-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta dacolá, chegou, depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, à firme convicção de que tudo aquilo era a pura expressão da verdade.

Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que três ou quatro dias dentro dos quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda. Quando voltou, já os amores de Maricota e Alexandrino haviam assumido proporções consideráveis, e o Dr. Miranda tinha revelado à irmã que o obsequioso Chico se incumbira de tomar informações a respeito do pretendente.

— Que diabo! Julguei que você não me aparecesse mais, — exclamou o médico ao ver então o seu cliente gratuito.

— A coisa deu mais trabalho do que eu supunha, e eu não quis fazer nada no ar. Trago-lhe informações seguras!

— Boas ou más?

— Péssimas.

O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.

— Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem e o teu Pimentel.

— Pois diga! — resmungou Maricota com um olhar zangado, adivinhando os horrores trazidos pelo Chico.

Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe:

— O senhor coloca-me numa situação difícil. Julguei que isto não passasse de nós dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado e receoso, porque não posso dizer senão a verdade, e a verdade é muito desagradável.

— Minha irmã é a principal interessada neste assunto, redarguiu o doutor, e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve com esse inquérito. O seu dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; é senhora das suas ações.

O Chico, arrependido já de se haver metido naquele incidente de família, contou minuciosamente as diligências que fizera e o resultado a que chegara.

Quando ele acabou o relatório:

— Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia torpe! — bradou Maricota, fula de raiva e batendo o pé. — E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de mim, e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo!

Não houve palavras que a convencessem de que tal casamento seria um desastre. Diante da vergonha, com que ela ameaçou o irmão de sair de casa para ir ter com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se.

Fez-se, e não há notícia de casal mais venturoso!

Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era um marido solícito, dedicado, carinhoso e previdente; não ia a passeio ou a divertimento sem levar Maricota; não bebia senão água; não jogava senão a bisca em família — e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela terrível perspectiva de que ele seria o contrário.

— Maricota apanhou a sorte grande! — diziam os amigos e parentes, inclusive o Dr. Miranda.

Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a tratar com frieza o informante.

O pobre Chico perdeu o amigo e o médico, foi odiado por Maricota por ter pretendido frustrar a sua aventura, e o regenerado Pimentel, quando soube da comissão que ele desempenhara, segurou-o um dia com as duas mãos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe:

— Eu devia quebrar-te a cara, miserável, mas perdoo-te, porque és um desgraçado!.

Moralidade do conto: ninguém se meta na vida alheia, principalmente quando se trate de evitar um casamento serôdio.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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