quinta-feira, novembro 21, 2024

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Artur AzevedoContos, Crônicas e Poesias

Como eu me diverti, Conto de Artur Azevedo

Como eu me diverti

(Conto Comédia)

 
PERSONAGENS:
JORGE (empregado no comércio)
O COMENDADOR ANDRADE (negociante, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia)
UM MÉDICO
DONA MARIA (excelente senhora de meia idade, estabelecida com casa de alugar cômodos a moços solteiros)
A ação passa-se no Rio de Janeiro, em quarta feira de cinzas. Atualidade.

ATO ÚNICO

A cena representa a sala e a alcova que Jorge ocupa em casa de Dona Maria. Atirado sobre um velho canapé um hábito de frade encardido de suor e sujo de lama. No chão, um par de luvas, igualmente sujas, e um nariz de papelão quase a desfazer-se, preso a uns grandes bigodes e a um par de óculos.

CENA I

Dona Maria, o Médico.

O MÉDICO
Que tem ele?
DONA MARIA
Não sei, doutor, não sei. O senhor Jorge tem muito bom coração, mas tem muito má cabeça: é doido pelo Carnaval.
O MÉDICO
Gabo-lhe o gosto.
DONA MARIA
Ontem vestiu-se de frade, pôs aquele nariz postiço e andou, num carro todo enfeitado de flores, ao lado de uma sujeita que mora no Hotel Ravot, acompanhando um préstito. Só o vestuário da pelintra lhe custou perto de oitocentos mil-réis!
O MÉDICO
Quem lhe disse?
DONA MARIA
Os meus hóspedes não têm segredo para mim.
O MÉDICO
Adiante.
DONA MARIA
Para se não constipar, o pobre moço levou consigo, por baixo do hábito, uma garrafa de conhaque e de vez em quando atiçava-lhe que era um gosto! Quando o préstito passou pela primeira vez na Rua do Ouvidor (eu estava lá…) já ia o frade que não se podia lamber! Depois na Rua da Constituição — isto sei eu por um amigo dele, que tudo viu — outro moço, também fantasiado, bifou-lhe a pelintra, e isso deu lugar…
O MÉDICO
… a um rolo! Pudera!…
DONA MARIA
Racharam-lhe a cabeça!
O MÉDICO
Naturalmente.
DONA MARIA
E o demônio do rapaz andou toda a noite, de cabeça rachada, à procura da tal mulher, dos Fenianos para os tenentes e dos Tenentes para os Democráticos, bebendo sempre, até cair na Rua do Fogo, às três horas da madrugada!…
O MÉDICO
Com efeito!
DONA MARIA
A polícia levou-o para a estação da travessa do Rosário, e pela manhã uns amigos que tinham sido avisados, trouxeram-no para casa.
O MÉDICO
Onde está ele?
DONA MARIA
Naquela alcova. Há cinco horas que ali está deitado, sem dar acordo de si. Por isso, mandei chamá-lo, doutor.
O MÉDICO
Fez bem. Vamos vê-lo.
(Entram na alcova)

CENA II

Jorge, o Médico, Dona Maria.

(Na alcova, Jorge está de cama, com a cabeça amarrada, os olhos fechados, os braços caídos. O Médico, ao ver o enfermo tem um movimento que escapa à Dona Maria).
O MÉDICO (tomando o pulso do doente)
Não tem febre. (Depois e examinar-lhe a cabeça) O ferimento nada vale… Já lhe puseram uns pontos falsos; é quanto basta… O seu hóspede tem apenas o que os estudantes chamam “uma ressaca”; precisa de descanso e mais nada. Quando voltar a si, se quiser tomar alguma coisa, dê-lhe uma canja, dois dedos de vinho do Porto misturado com água de Vichi, um pouco de marmelada, e disse. Se amanhã continuar incomodado, que tome um laxante.

CENA III

O Médico, Dona Maria.

(Na sala).
O MÉDICO (tomando o chapéu)
A senhora não imagina como estimei por ter sido chamado para ver este senhor Jorge. Foi uma providência.
DONA MARIA
Por que, doutor?
O MÉDICO
Conheço-o, mas não sabia que se tratava dele. É o namorado, quase noivo de minha afilhada, filha do meu amigo Raposo. A menina gosta dele, e o pai já estava meio inclinado a consentir no casamento; tinham-lhe dado boas informações sobre este pândego. Agora, porém, vou prevenir o compadre, e dissuadir minha afilhada, que é muito dócil e me ouve acatamento.
DONA MARIA
Valha-me Deus! e sou eu a culpada de tudo isto!
O MÉDICO
Culpada, por quê?
DONA MARIA
Por ter mandado chamar o padrinho! Pobre rapaz!…
O MÉDICO
A senhora deve estar, pelo contrário, satisfeita, por ter indiretamente contribuído para este resultado. (Voltando-se para a alcova) Que grande patife! namorar uma menina pura como uma flor, e andar de carro, publicamente embriagado, em companhia de uma prostituta.
DONA MARIA
No carnaval tudo se desculpa.
O MÉDICO
Nada! — eu sou o padrinho, o segundo pai daquele anjo! (Vai saindo)
DONA MARIA (tomando o Médico pelo braço)
Doutor, doutor, não vá assim zangado com o senhor Jorge… não diga nada à família da menina… Ah! se eu soubesse… Mas que quer?… Vejo que este hóspede tem segredos para mim… (O doutor tenta safar-se). Ouça doutor… ele tem um bom emprego… é muito estimado pelos patrões…
O MÉDICO
E a minha afilhada tem um dote de cento e cinquenta contos.
DONA MARIA (aterrada, largando o braço do Médico)
Cento e cinquenta contos!
O MÉDICO (saindo)
Fora o que lhe há de caber por morte do pai! (Chegando à porta, para, volta-se e diz:) Canja… vinho do Porto… água de Vichi… marmelada… e disse! (Sai)

CENA IV

Dona Maria, depois Andrade,

DONA MARIA (fica perplexa, de olhos baixos, na atitude de Fedra, quando diz)
Juste ciel! qu’ ai je faite aujourd’hui?
(É despertada bruscamente pelo Comendador Andrade, que entra com espalhafato)
O COMENDADOR (gritando)
Onde está o senhor Jorge?
DONA MARIA (consigo)
Um homem zangado! É ele, é o pai da menina!
O COMENDADOR
Senhora, pergunto-lhe pelo senhor Jorge!
DONA MARIA
Está doente… naquela alcova… dorme…
O COMENDADOR
Já me contaram as façanhas que ele praticou esta noite! (Apanhando o nariz postiço) Cá está uma prova! (Atira-o longe)
DONA MARIA
Desculpe-me essa rapaziada, e não lhe negue a mão da menina. O Comendador — A mão da menina! Que menina?
DONA MARIA
Sua filha.
O COMENDADOR
Minha filha? Qual delas? Pois este mariola ainda por cima se atreve a erguer os olhos para uma das filhas do seu patrão!
DONA MARIA
Do seu patrão? Ah! então não é o senhor Raposo?
O COMENDADOR
Que Raposo, nem meio Raposo! Eu sou o Comendador Andrade, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia! — O senhor Jorge está dormindo, disse a senhora.
DONA MARIA
Sim, senhor.
O COMENDADOR
Pois bem; quando acordar, diga-lhe que eu aqui estive, e o ponho no olho da rua! Que apareça para fazermos as contas!
DONA MARIA
Atenda, senhor Comendador!
O COMENDADOR
A nada atendo! A casa Andrade, Gomes & Companhia não pode ter empregados que se embriagam e passam a noite no xadrez! Era o que faltava! (Sai arrebatadamente).

CENA V

Jorge, Dona Maria.

(Na alcova, Dona Maria sai)
JORGE (abre um olho, depois o outro, olha em volta de si, certifica-se que está em sua casa, dirige à Dona Maria um sorriso de agradecimento, solta um longo suspiro, e exclama com voz rouca e sumida)
Como eu me diverti!

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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