quinta-feira, novembro 21, 2024

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João do Rio

Como se Ouve a Missa do “Galo”, Conto de João do Rio

 

Como se Ouve a Missa do “Galo”

A missa do “galo” não começa precisamente à meia-noite e não tem a obrigação de acabar antes de uma da manhã. A missa só, sem galo, o divino sacrifício de que os casuístas espanhóis do século XIII faziam a anatomia – talvez tivesse em tempos remotos uma hora precisa, exata, confirmada pelo dogma. O galo, porém, varia e canta, ou adiantado ou com atraso. Ora, o chamar a missa do Natal de Cristo missa do galo é ainda um costume latino. Os romanos contavam as horas com uma certa poesia. Logo depois da media nocte, chamavam eles ao tempo gallicinium, hora em que o galo começa a cantar. A missa realizada, assim, após a media nocte, ficou sendo a missa do galo, e é ainda o velho e desusado gallicínium que se recorda quando os sacerdotes levantam a hóstia nos altares, e de capoeira em capoeira, sonoro e glorioso, se propaga o diálogo dos galos: Cristo nasceu! Onde? Em Belém…

Eu estava exatamente defronte da igreja de Santana, dispondo de um automóvel possante. Era a mais que alegre hora da meia-noite que alguns temperamentos românticos ainda julgam sinistra. Aquele trecho da cidade tinha um aspecto festivo, um estranho aspecto de anormalidade. Das ruas laterais vindo em fila famílias da Cidade Nova, primeiro as crianças, depois as mocinhas, às vezes ladeadas de mancebos amáveis, depois as matronas agasalhadas em fichus; vinham marchando como quem vai para a ceifa, grossos machacares, de chapelão e casaco grosso; vinham gingando negrinhas de vestido gomado; “cabras” de calça bombacha, velhas pretas embrulhadas em xales. Era como uma série de procissões em que as irmandades se separavam segundo as classes. No adro, repleto, havia uma mistura de populaça em festa. Grupos de rapazes berravam graças, bondes paravam despejando gente, vendedores ambulantes apregoavam doces e comestíveis; todos os rostos abriam-se em fraterna alegria, e naquela sarabanda humana, naquele vozear estonteante, uma nota predominava – a do namoro. Os rapazes estavam ali para namorar, para aproveitar a ocasião. Os encontros tinham sido de antemão combinados. Quando um grupo familiar encontrava um rapaz o – oh! seu Antenor! Também por aqui! a resposta: oh! d. Belinha, então também veio! – soavam como quem diz: oh! não faltaste… Havia de resto pares de braço dado, meninas que murmuravam frases ao lado dos mocetões, sob o olhar protetor das mamães…A missa era um alegre pretexto e, se na classe burguesa o namoro tinha uma cor tão suave, nas outras irmandades o entusiasmo era maior. Entrei no templo atrás de um grupo de mocinhos entusiasmados, um dos quais teimava que havia de apertar, enquanto outro, com uma carta de alfinetes, asseverava estar disposto a pregar alguns pares. O grupo ria, a igreja estava repleta, quente, ardendo na nave de humanidade pouco crente, ardendo de doçura superior nas velas dos altares. Mocinhas irrequietas, rindo, abriam passagem; rapazes lamentavelmente espirituosos estabeleciam o arrocho, empurrando o corpo como quem vai dançar o cakewalk e pretalhões de pastinhas, erguendo alto os chapéus de palha, violentavam a massa com os cotovelos para chegar ao altar-mor. No ar parado um sino bateu. Houve uma interjeição prolongada da multidão, ia começar a missa. Era a missa do galo nos bairros…

     

Saí suando, tomei o automóvel, nervoso. Ao lado da máquina, na aglomeração, uma voz de mulher fez de repente:

– Ai!

– Que é? que foi? bradou um vozeirão formidável.

– Cocoricó! cantou um gaiato.

E entre as gargalhadas de mofa escandalosa, o automóvel rodou.

Parei na catedral. A enchente era tão colossal que havia gente até na rua.

O templo ardia em luzes. De fora viam-se os sacerdotes de sobrepeliz dourada, a candelária luminosa, os santos, e toda a igreja vibrava das graves harmonias do órgão, realçadas por um coro abaritonado. A turba tinha outro aspecto. Senhoras de chapéu, cavalheiros sempre com esse amável ar conquistador que o homem se arroga nas festas públicas, de mistura com fuzileiros navais, marinheiros alcoolizados, caixeirinhos do comércio de roupa nova e com os olhos cheios de sono.

Toda essa gente conseguia entrar e sair, fazer como um torvelinho à porta, onde duas senhoras vestidas de negro, esticando uma sacola, diziam maquinalmente: – para a cera! para a cera! Ninguém dava, ninguém se ralava. O sopro de excitação dos sentidos parecia recrudescido pelo sopro musical do órgão. Figuras que saíam da igreja vinham algumas congestas; as que entravam tinham uma violência aguçada no olhar. Na rua, como que farejando, sujeitos iam e vinham entre os grupos de malandros ébrios, de negros de capa no braço com um ar de copeiros de casa rica, de mulheres conversadeiras. Encontro um repórter de jornal.

– Oh! tu também! que pândega, filho! Mas espera…

Indagou com o olhar a rua, sorriu, apertou-me o braço, apressado:

– Até logo.

Dou de frente com um bando de gente de teatro. Uma das atrizes assegura:

– Estou com os braços doendo…

E logo depois, deixando a atriz, encontro o protetor.

– Viste-a por aí? Olha só aquela família com crianças. Só nesta terra! Eu não! Ceei com meus filhos: às dez horas tudo na cama, e às onze deixei de ser pai-de-família.

– Muito bem.

Era a missa do galo na cidade…Que tinha eu? Desgosto? Tristeza? Dor de cabeça? Sei lá! Despedi-me do ex-pai-de-família, tomei de novo o automóvel que logo deslizou pela Rua da Assembléia para cair numa vertiginosa carreira pela Avenida Central.

– Que é aquilo?

– É a missa do convento da Ajuda.

Saltei. A rua estava negra de gente. Os focos elétricos da Avenida mais de sombra enchiam aquele canto – a porta tão triste onde a turba se acotovelava.

Um sujeito valente pisou três ou quatro pés, barafustou. Acompanhei-o. Era a missa lá dentro imersa em tristeza infinda. Até os altares pareciam mais agourentos, até as imagens guardavam na face uma dor mais amarga. E a missa trespassava a alma, porque, enquanto o sacerdote ia e vinha no altar, por trás, na sombra, perpetuamente na sombra, morta, enterrada, perdida para o mundo, a voz das monjas varava o ar como o som de um cristal quebrado, retorcia-se no sacrifício do louvor do deus que nascera de um seio humano, espiralava como uma contorção histérica, soluçava cantando…

Ia mais adiante, mas na minha frente um latagão bocejou:

– Que cacetada!

– É verdade, vamo-nos, respondeu a companheira.

– Ainda temos tempo de ir a Copacabana.

Consultou o relógio e começou a sair, imprimindo tal movimento à massa de gente, que eu, com outros mais, de recuar tanto, me achei de novo na porta triste e humilde.

– Ó José, vamos a Copacabana?

– Anda daí.

Copacabana devia ser divertido. Tomei de novo o automóvel e disse ao chauffeur:

– Para Copacabana.

Naquele delicioso percurso da Avenida Beira-Mar, toda ensopada de luz elétrica, outros automóveis de toldo arriado, outros carros, outras conduções corriam na mesma direção. Homens espapaçados nas almofadas davam vivas, mulheres de grandes chapéus estralejavam risos, era uma estrepitosa e inédita corrida para Cítera. Quando, no fim da avenida, os automóveis seguiram pelas antigas ruas, cada encontro de bonde era uma catástrofe. Os tramways, apesar de comboiarem três carros, iam com gente até aos tejadilhos, e essa gente furiosa, numa fúria que lembrava bem a vertigem de Dionísios, berrava, apostrofava, atirava bengaladas num despejo de corpos e de conveniências. Entretanto, pelas mesmas ruas, a corrida aumentava e era uma disparada louca entre vociferações, sons de corneta, tren-ten-tens de bondes, estalar de chicote. Quando passamos o túnel num fracasso de metralha e demos nos campos de Copacabana, a velocidade foi vertiginosa, e era apenas vagamente que se divisavam, fugindo à sanha dos fon-fons, ao estrépito das rodas, a linha de fiéis da redondeza marginando o capinzal e, à esquerda, num diadema de estrelas, a iluminação da Igrejinha. Recostei-me. O automóvel saltava como um orango ébrio, no piso mau. De repente fez uma curva e entrou numa rua cheia de gente, de carros, de outros automóveis. Estávamos no grande sítio.

– É aqui?

– É.

Cerca de três mil pessoas – pessoas de todas as classes, desde a mais alta e a mais rica à mais pobre e à mais baixa, enchia aquele trecho, subia promontório acima. E o aspecto era edificante. Grupos de rapazes apostavam em altos berros subir à igreja pela rocha; mulheres em desvario galgavam a correr por outro lado, patinhando a lama viscosa. Todos os trajes, todas as cores se confundiam num amálgama formidável, todos os temperamentos, todas as taras, todos os excessos, todas as perversões se entrelaçavam. Quis notar o elemento predominante. Num trecho havia mais pretas com soldados. Adiante logo, o domínio era de gente de serviço braçal, um pouco mais longe a tropa se fazia de rapazelhos do comércio e, se dávamos um passo, outro grupo de mocinhas com senhores conquistadores se nos antolhava. Todo esse pessoal gritava.

Logo na subida encontrei um meninote engolindo uns restos de vinho do Porto pelo gargalo da garrafa. Em meio do caminho um grupo do Clube dos Democráticos, de guarda-chuva branco e preto, tocava guitarras e assobios.

De todos os lados partiam cantos de galo. Os cocoricós clássicos vinham finos, grossos, roufenhos, em falsete: – Cocoricó! Cocoricô!

–Já ouviste cantar o galo?

– Pois hoje não é a missa dele?

– Cocoricó! pega ele pra capar!

– Pega!

A igrejinha estava toda iluminada exteriormente à luz elétrica. Defronte de sua fachada lateral haviam armado um botequim. A turba arfava aí, presa entre a bodega e o templo. Quando eu passei, porém, a bodega fora devorada e bebida. Os caixeiros tinham trepado para os balcões no desejo de apreciar a cena. Fiz um violento esforço para entrar na igreja. À porta havia uma verdadeira luta e dentro ninguém se podia mexer. Divisei apenas como indicação humilde do dia – um presepe no lado esquerdo, um presepe com pano de fundo representando fielmente um trecho de Cascadura, e estava assim embebido, quando de repente estalou o rolo, o rolo rápido e habitual. Um sujeito apanhara uma bengalada, levantara o guarda-chuva, uma menina gritara: – nunca mais venho à missa! E no roldão da turba medrosa, de novo caí na ladeira, ouvindo os cocoricós, as chufas, as graças sórdidas:

– Pega pra capar! Cocoricó! Já ouviste o galo?

No céu cor de chumbo, ameaçador de temporais, espocavam girândolas de foguetes. E todo aquele trecho, mais aquecido, mais feroz, mais cheio de gente redobrava de deboche, de frenesi pândego, de loucura, quebrando copos, cantando, assobiando, praguejando, ganindo.

Atirei-me dentro do automóvel, exausto. A máquina disparou outra vez, lutando agora contra a massa dos carros, dos automóveis, dos tramways que chegavam.

– Onde é a Lapa do Desterro?

– Quer ir lá? É uma igreja de gente pobre. E na Lapa.

– Pois vamos lá.

O automóvel quebrou pela Rua da Lapa, parou defronte da velha igreja. Eram duas horas da manhã. Havia à porta a mesma matula de homens endomingados à espera da conquista, a mesma sarabanda de sirigaitas. Entrei. O tapete do templo, velho, esfarripado, tinha por cima, em alguns trechos, folhas de mangueira. No altar-mor, dos lados, entre panos azuis, ardiam dois bicos auer, e aquela luz azul como transfigurava o rebátulo, os acessórios, os ouros despolidos. A concorrência era menor, na nave, mulheres de xale formavam roda conversando. Andei por ali tristemente. Ao sair, porém, vi de joelhos um homem.

De joelhos? Na missa do galo? Deus! Quem seria aquele pobre coitado? Aproximei-me. Era um rapaz – teria no máximo vinte anos. Ao lado o seu chapelão de coco repousava junto à grossa bengala. No seu corpo ajustava-se demais um grosso fato de inverno aldeão. De mãos postas, a face ingênua voltada para o altar, esse ser, numa noite báquica, era tão anormal, tão extraordinário, que eu cheguei bem perto, olhei bem, fui ao ponto de curvar-me para lhe espiar os olhos. O pobre sobressaltou-se.

– Meu senhor!

– Que está você a fazer aí?

– Que estava? Ah? perdão…Estava a rezar, estava a pedir ao Menino Deus que dê saúdinha aos pais lá na terra e que me proteja.

– Donde é você?

– Saberá V. Sa que do Douro, sim senhor.

Falava de joelhos, a sorrir para mim; pobre alma ingênua e pura de aldeia, pobre alma que se ia putrefazer na grande cidade, único coração que adorara Deus entre as dez mil pessoas vistas por mim!

Oh! Tive um ímpeto, o desejo de abraçá-lo, a sensação de quem, após uma longa desilusão, sente viva no abismo fundo a flor maravilhosa. Mas já em torno se fazia roda de ociosos, já um sujeito surgira com um riso de troça.

– Pois faz muito bem. Adeus.

– Adeus, meu senhor!

– E continuou – ó coisa incrível! – de joelhos, voltado para Deus, lembrando a sua aldeia, lembrando os paizinhos, pedindo o bem – enquanto pela cidade inteira as ceatas e as pândegas desencadeavam os ímpetos desaçaimados…

 

   

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