Divórcio, Conto de Guy de Maupassant
Divórcio
O Dr. Bontran, célebre advogado parisiense, que há dez anos separa os casais que não se combinam, abriu a porta do seu consultório e afastou-se para deixar passar o novo cliente. Era um homem alto e ruborizado! barrigudo, expansivo e vigoroso. — Sente-se, disse o advogado. — O cliente sentou-se e depois de tossir um pouco:
— Venho pedir-lhe, doutor, que faça o meu divórcio. Sou um antigo advogado, tenho trinta e sete anos. Tive um casamento muito infeliz. Meu caso é especial e as queixas que tenho contra minha mulher são de natureza particular. Mas, começo pelo princípio. Casei-me de maneira muito estranha. Eis o que me aconteceu, doutor.
Como disse, era advogado em Rouen; não passava necessidade, mas ganhava pouco e era obrigado a certas economias, o que, na minha idade, é um tanto desagradável. Como advogado, lia cuidadosamente os anúncios dos jornais, as ofertas e procuras, as correspondências etc., e mais de uma vez tive ocasião de arranjar para meus clientes alguns casamentos vantajosos. Um dia, leio o seguinte: “Moça bonita, bem educada, desposaria homem honrado, trazendo-lhe dois milhões e quinhentos mil francos de dote.”
Justamente nesse dia eu jantava com dois amigos, um outro advogado e um industrial. Falamos sobre casamentos, eu me referi à moça dos dois milhões e quinhentos mil francos. O advogado vira excelentes matrimônios contratadas em idênticas situações, e acrescentou:
— Por que não pegas a oportunidade? Não seria nada mau, heim? Possuir dois milhões e quinhentos mil francos.
Rimos, falamos noutra coisa. Uma hora depois, entrei em casa. Estava frio naquela noite. Eu morava numa casa velha, muito úmida. Ao colocar a mão no corrimão de ferro da escada, senti um estremecimento gelado no braço. A parede estava ainda mais fria, e todos aqueles gélidos tremores pareciam juntar-se no meu peito, enchendo-me de angústia, de tristeza e apatia. Murmurei: Arre! se ou tivesse aqueles dois milhos e quinhentos mil!
Meu quarto era lúgubre, a cama grande, um armário, uma cômoda, uma penteadeira, sem lareira. Roupas sobre as cadeiras, papéis no chão. Pus-me a cantarolar. Ao deitar-me, pus-me a pensar na mulher, de um modo genérico. Pensei tanto, que custei a dormi.
No dia seguinte, ao abrir os olhos, de madrugada, lembrei-me que precisava estar às oito horas em Darnétal, para um caso importante. Era preciso levantar-me às seis, e nevava! Puxa! se eu tivesse aqueles dos milhões e quinhentos mil!
Voltei ao cartório às dez horas. Que cheiro de papéis velhos, de roupas usadas, camisas, cabelos, peles, peles de inverno, mal lavadas, tudo isso esquentando-a dezoito graus! Almocei, como sempre, uma costeleta queimada e um pedaço de queijo. Depois pus-me a trabalhar. Foi aí que pensei seriamente, pela primeira vez, na moça dos dois milhões e quinhentos mil. Quem seria? Por que não escrever? Por que não saber? Enfim, doutor, vou encurtar o relato. Durante quinze dias essa ideia me obcecou, me torturou. Todos os meus aborrecimentozinhos e pequenas misérias de todos os dias picaram-me, como agulhadas, e cada um desses sofrimentos me fazia logo pensar na moça dos dois milhões e quinhentos mil francos. Imaginei sua história. Quando se deseja uma coisa, doutor, imagina-se que ela seja tal como se quer. É claro que não era muito natural que uma moça de boa família, com um dote daqueles, procurasse um marido pelos jornais. No entanto, era bem provável que ela fosse honrada e infeliz.
Sonhei… Uma moça, filha natural de um novo-rico e de uma criada de quarto, tendo herdado de repente do pai, soubera ao mesmo tempo o desdouro do seu nascimento, e para não o ter que revelar a algum homem que a amasse, apelava para os desconhecidos por um meio muito comum. Minha suposição era estúpida. Entretanto, a ela me agarrei. Nós, advogados, nunca deveríamos ler romances, doutor, mas eu lia. Escrevi, pois, em nome de um cliente imaginário, e esperei. Cinco dias depois, às três horas da tarde, trabalhava no meu escritório quando me anunciaram a srta. Chantefrise. Apareceu-me uma mulher de uns trinta anos, um pouco alta, morena, ar embaraçado.
— Sente, senhorita. — Ela sentou-se e murmurou:
— Sou eu, doutor.
— Mas não tenho a honra de conhecê-la.
— A moça a quem o sr. escreveu.
— Para um casamento?
— Sim, senhor.
— Ah! muito bem!
— Vim em pessoa, porque essas coisas a gente trata melhor pessoalmente.
— Concordo, senhorita. Então, deseja casar-se?
— Sim, senhor.
— Tem família? — Ela hesitou, abaixou os olhos e balbuciou:
— Não, senhor… minha mãe… e meu pai… morreram.
Estremeci. Então eu adivinhara! e uma simpatia despertou bruscamente em meu coração pela pobre criatura. Não insisti, para não lhe ferir a sensibilidade, e acrescentei:
— Então possui uma fortuna considerável? — Ela respondeu, dessa vez sem hesitar:
— Oh! sim senhor.
Olhava-a com grande atenção, e, para dizer a verdade, não me desagradava, embora fosse já um pouco madura, mais do que eu pensara. Era uma moça bonita, o tipo da mulher dominadora.
E tive a ideia de representar uma pequena comédia de sentimento, de me apaixonar por ela, de suplantar o meu cliente imaginário, quando me assegurasse de que o dote não era ilusório. Falei-lhe do meu cliente, que descrevi como um homem triste, muito honrado, um pouco doente. Ela disse com veemência:
— Oh! doutor, eu gosto de gente com saúde!
— A senhorita vai vê-lo, aliás, mas não antes de três ou quatro dias, pois ele embarcou ontem, para a Inglaterra.
— Que pena! exclamou ela.
— Tem pressa de voltar para sua cidade?
— Nenhuma.
— Então fique aqui. Esforçar-me-ei por ajudá-la a fazer passar o tempo.
— O senhor é muito amável, doutor.
— Está no hotel? — Ela disse o nome do melhor hotel de Rouen.
— Então, senhora, permite ao seu futuro advogado que a convide para jantar, hoje? — Ela pareceu hesitar, inquieta, indecisa; depois, resolveu-se:
— Está bem, doutor.
— Vou buscá-la às sete horas.
— Está bem.
— Então, até logo mais, senhorita?
— Sim, senhor. Até logo mais. — E acompanhei-a até a porta.
Às sete horas, cheguei ao hotel. Ela se vestira toda para mim e recebeu-me muito graciosa. Levei-a para jantar num restaurante onde era conhecido, e pedi um jantar perturbador. Uma hora depois, estávamos muito amigos, e ela me contou seu caso. Filha de uma grande senhora seduzida por um cavalheiro importante, fora educada em casa de uns camponeses. Agora estava rica, pois herdara grandes quantias de seu pai e de sua mãe, cujos nomes não diria jamais. Seria inútil pedir-lhe que dissesse, inútil suplicar, não os diria. Como eu não fazia questão nenhuma de saber, perguntei-lhe sobre a sua fortuna. Falou disso como mulher prática, segura do si mesma, certa dos algarismos, dos títulos, dos juros, das rendas e das aplicações do dinheiro. Sua competência, nessa matéria, deu-me logo grande confiança nela, e tornei-me galante, com certas reservas; mas mostrei-lhe claramente que me interessava.
Ofereci-lhe champanhe, e eu também bebi, o que me confundiu um pouco as ideias. Senti claramente que ia tornar-me atrevido e tive medo, medo de mim, medo dela, medo que ficasse um tanto comovida e sucumbisse. Para acalmar-me, recomecei a falar-lhe do dote, que era preciso demonstrar de maneira firme, pois que meu cliente era homem de negócios. Ela respondeu com alegria:
— Oh! eu sei. Trouxe aqui todas as provas.
— Estão no hotel? Pode mostrá-las?
— Pois não!
— Hoje mesmo?
— Está bem.
Isso me salvava. Paguei a conta, e fomos para o hotel. De fato, trouxera todos os títulos. No podia duvidar, aIi estavam, eu os pegava e os lia. Isso me pôs tal alegria no coração que senti imediatamente um violento desejo de beijá-la.
Era um desejo casto, desejo de homem feliz. E beijei-a. Uma vez, duas, dez… tanto que… a champanhe ajudando… sucumbi. O melhor, não… ela sucumbiu.
Ah! doutor! como fiquei, depois daquilo! e ela, então! Chorava como uma louca! suplicando-me que não a traísse, que não a perdesse. Prometi-lhe tudo o que ela quis, e saí num estado de espírito lamentável.
Que fazer? abusara da minha cliente. Isso não seria nada se eu tivesse de fato um cliente pare ela, mas não tinha. O cliente ere eu, o cliente ingênuo, o cliente enganado, enganado por si mesmo! Que situação! Poderia abandoná-la, é verdade. Mas o dote o belo dote, o bom dote, palpável, seguro! Além disso, teria o direito de deixar aquela pobre moça, depois de a haver seduzido? Mas quantos aborrecimentos mais tarde!… Que pouca segurança com uma mulher que sucumbia assim!…
Passei horrível noite de indecisão, torturado de remorsos, devastado de receios, sacudido por todos os escrúpulos. Mas, pela manhã, minha razão se esclareceu. Vesti-me com cuidado e apresentei-me, às onze horas, no hotel. Vendo-me, ela enrubesceu até os olhos. Disse-lhe:
— Senhorita, só me resta fazer uma coisa para reparar o mal. Peço sua mão em casamento. Ela balbuciou:
— Está bem, eu lhe dou. Casamo-nos.
Tudo foi uma maravilha durante seis meses. Passei adiante o cartório, vivia das rendas, e na verdade não tinha nenhuma reclamação a fazer de minha mulher. No entanto, notei aos poucos que, de quando em quando, ela saía e demorava fora de casa. Era sempre em dias fixos, numa semana era na terça-feira, na outra era na sexta. Acreditei-me enganado, o segui-a.
Era uma terça-feira. Ela saiu a pé a uma hora, desceu a rua da República, virou à direita pela rua que segue o palácio arquiepiscopal, tomou a rua da Ponte Grande até o Sena, seguiu o cais até a Ponte de Pedra, atravessou o rio. A partir desse momento, pareceu inquieta, virando-se com frequência, olhando para todos os que passavam. Como eu me disfarçara em carvoeiro, não me reconheceu.
Enfim, entrou na estação da margem esquerda; já não tinha mais dúvida, seu amante ia chegar pelo trem de uma hora e quarenta e cinco. Escondi-me atrás de um caminhão e esperei. Um apito… um alvoroço de passageiros… Ela se aproxima, corre, segura nos braços uma menininha de três anos, que uma gorda camponesa acompanha, e beija-a com paixão. Depois vira-se, observa outra criança, menor, menina ou menino, carregado por outra camponesa, atira-se a ela, abraça-a com violência, e segue, acompanhada pelos dois garotinhos e pelas duas amas, em direção à longa, sombria e deserta alameda.
Voltei, transtornado, compreendendo e não compreendendo, não ousando adivinhar. Quando chegou para jantar, atirei-me a ela, gritando:
— Que crianças são aquelas?
— Quais crianças?
— Aquelas que você esperou no trem de Santo-Severo?
Ela soltou um grito e desmaiou.
Quando voltou a si, confessou-me, num dilúvio de lágrimas, que tinha quatro filhos. Sim, doutor, dois para a terça-feira — duas meninas — e dois para a sexta-feira — dois meninos. E era aquela — que vergonha! a origem da sua fortuna. Os quatro pais!…
Foi assim que ela constituiu o dote.
Agora, doutor, que me aconselha?
O advogado respondeu gravemente:
— Reconheça seus filhos, senhor.
Publicado originalmente na revista “Fon-Fon”, em sua edição de 5 de dezembro de 1953. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)