terça-feira, dezembro 3, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasJoão do Rio

A Fome Negra, Conto de João do Rio

 

A Fome Negra

De madrugada, escuro ainda, ouviu-se o sinal de acordar. Raros ergueram-se. Tinha havido serão até a meia-noite. Então, o feitor, um homem magro, corcovado, de tamancos e beiços finos, o feitor, que ganha duzentos mil réis e acha a vida um paraíso, o sr. Correia, entrou pelo barracão onde a manada de homens dormia com a roupa suja e ainda empapada do suor da noite passada.

– Eh! lá! rapazes, acorda! Quem não quiser, roda. Eh lá! Fora!

Houve um rebuliço na furna sem ar. Uns sacudiam os outros amedrontados, com os olhos só a brilhar na face cor de ferrugem; outros, prostrados, nada ouviam, com a boca aberta, babando.

– Ó João, olha o café.

– Olha o café e olha o trabalho! Ai, raios me partam! Era capaz de dormir até amanhã.

Mas, já na luz incerta daquele quadrilátero, eles levantavam-se, impelidos pela necessidade como as feras de uma ménagerie ao chicote do domador. Não lavaram o rosto, não descansaram. Ainda estremunhados, sorviam uma água quente, da cor do pó que lhes impregnava a pele, partindo o pão com escaras da mesma fuligem metálica, e poucos eram os que se sentavam, com as pernas em compasso, tristes.

Estávamos na ilha da Conceição, no trecho hoje denominado – a Fome Negra. Há ali um grande depósito de manganês e, do outro lado da pedreira que separa a ilha, um depósito de carvão. Defronte, a algumas braçadas de remo, fica a Ponta da Areia com a Cantareira, as obras do porto fechando um largo trecho coalhado de barcos. Para além, no mar tranqüilo, outras ilhas surgem, onde o trabalho escorcha e esmaga centenas de homens.

Logo depois do café, os pobres seres saem do barracão e vão para a parte norte da ilha, onde a pedreira refulge. Há grandes pilhas de blocos de manganês e montes de piquiri em pó, em lascas finas. No solo, coberto de uma poeira negra com reflexos de bronze, há rails para conduzir os vagonetes do minério até ao lugar da descarga. O manganês, que a lnglaterra cada vez mais compra ao Brasil, vem de Minas até à Marítima em estrada de ferro; daí é conduzido em batelões e saveiros até às ilhas Bárbaras e da Conceição, onde fica em depósito.

Quando chega vapor, de novo removem o pedregulho para os saveiros e de lá para o porão dos navios. Esse trabalho é contínuo, não tem descanso. Os depósitos cheios, sem trabalho de carga para os navios, os trabalhadores atiram-se à pedreira, à rocha viva. Trabalha-se dez horas por dia com pequenos intervalos para as refeições, e ganha-se cinco mil réis. Há, além disso, o desconto da comida, do barracão onde dormem, mil e quinhentos; de modo que o ordenado da totalidade é de oito mil réis, Os homens gananciosos aproveitam então o serviço da noite, que é pago até de manhã por três mil e quinhentos e até meia-noite pela metade disso, tendo naturalmente, o desconto do pão, da carne e do café servido durante o labor,

É uma espécie de gente essa que serve às descargas do carvão e do minério e povoa as ilhas industriais de baía, seres embrutecidos, apanhados a dedo, incapazes de ter idéias. São quase todos portugueses e espanhóis que chegam da aldeia, ingênuos. Alguns saltam da proa do navio para o saveiro do trabalho tremendo, outros aparecem pela Marítima sem saber o que fazer e são arrebanhados pelos agentes. Só têm um instinto: juntar dinheiro, a ambição voraz que os arrebenta de encontro às pedras inutilmente. Uma vez apanhados pelo mecanismo de aços, ferros e carne humana, uma vez utensílio apropriado ao andamento da máquina, tornam-se autômatos com a teimosia de objetos movidos a vapor. Não têm nervos, têm molas; não têm cérebros, têm músculos hipertrofiados. O superintende do serviço berra, de vez em quando:

– Isto é para quem quer! Tudo aqui é livre! As coisas estão muito ruins, sujeitemo-nos. Quem não quiser é livre!

Eles vieram de uma vida de geórgicas paupérrimas. Têm a saudade das vinhas, dos pratos suaves, o pavor de voltar pobres e, o que é mais, ignoram absolutamente a cidade, o Rio; limitam o Brasil às ilhas do trabalho, quando muito aos recantos primitivos de Niterói. Há homens que, anos depois de desembarcar, nunca pisaram no Rio e outros que, quase uma existência na ilha, voltaram para a terra com algum dinheiro e a certeza da morte.

Vivem quase nus. No máximo, uma calça em frangalhos e camisa de meia. Os seus conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro; o dinheiro que a pá levanta para o bem-estar dos capitalistas poderosos; o dinheiro, que os recurva em esforços desesperados, lavados de suor, para que os patrões tenham carros e bem-estar. Dias inteiros de bote, estudando a engrenagem dessa vida esfalfante, saltando nos paióis ardentes navios e nas ilhas inúmeras, esses pobres entes fizeram-me pensar num pesadelo de Wells, a realidade da História dos Tempos Futuros, o pobre a trabalhar para os sindicatos, máquina incapaz de poder viver de outro modo, aproveitada e esgotada. Quando um deles é despedido, com a lenta preparação das palavras sórdidas dos feitores, sente um tão grande vácuo, vê-se de tal forma só, que vai rogar outra vez para que o admitam.

À proporção que eu os interrogava e o sol acendia labaredas por toda a ilha, a minha sentimentalidade ia fenecendo. Parte dos trabalhadores atirou-se à pedreira, rebentando as pedras. As marretas caíam descompassadamente em retintins metálicos nos blocos enormes. Os outros perdiam-se nas rumas de manganês, agarrando os pedregulhos pesados com as mãos. As pás raspavam o chão, o piquiri caía pesadamente nos vagonetes, outros puxavam-nos até a beira d’água, onde as tinas de bronze os esvaziavam nos saveiros.

Durante horas, esse trabalho continuou com uma regularidade alucinante. Não se distinguiam bem os seres das pedras do manganês: o raspar das pás replicava ao bater das marretas, e ninguém conversava, ninguém falava! A certa hora do dia veio a comida. Atiraram-se aos pratos de folha, onde, em água quente, boiavam vagas batatas e vagos pedaços de carne, e um momento só se ouviu o sôfrego sorver e o mastigar esfomeado.

Acerquei-me de um rapaz.

– O teu nome?

– O meu nome para quê? Não digo a ninguém.

Era a desconfiança incutida pelo gerente, que passeava ao lado, abrindo a chaga do lábio num sorriso sórdido.

– Que tal achas a sopa?

– Bem boa. Cá uma pessoa come. O corpo está acostumado, tem três pães por dia e três vezes por semana bacalhau.

Engasgou-se com um osso. Meteu a mão na goela e eu vi que essa negra mão rebentava em sangue, rachava, porejando um líquido amarelado.

– Estás ferido?

– É do trabalho. As mãos racham. Eu estou só há três meses. Ainda não acostumei.

– Vais ficar rico?

Os seus olhos brilhavam de ódio, um ódio de escravo e de animal sovado.

– Até já nem chegam os baús para guardar o ouro. Depois, numa franqueza: ganha-se uma miséria. O trabalho faz-se, o mestre diz que não há…Mas, o dinheiro mal chega, homem, vai-se todo no vinho que se manda buscar.

Era horrendo. Fui para outro e ofereci-lhe uma moeda de prata.

– Isso é para mim?

– E, mas se falares a verdade.

– Ai! que falo, meu senhor…

Tinha um olhar verde, perturbado, um olhar de vício secreto.

– Há quanto tempo aqui?

– Vai para dois anos.

– E a cidade não conheces?

– Nunca lá fui, que a perdição anda pelos ares..

Este também se queixa da falta de dinheiro porque manda buscar sempre outro almoço. Quanto ao trabalho, estão convencidos que neste país não há melhor. Vieram para ganhar dinheiro, é preciso ou morrer ou fazer fortuna. Enquanto falavam, olhavam de soslaio para o Correia e o Correia torcia o cigarro, à espreita, arrastando os sacos no pó carbonífero.

– Deixe que vá tratar do meu serviço, segredavam eles quando o feitor se aproximava. Ai! que não me adianta nada estar a contar-lhe a minha vida.

O trabalho recomeçou. O Correia, cozido ao sol, bamboleava a perna, feliz. Como a vida é banal! Esse Correia é um tipo que existe desde que na sociedade organizada há o intermediário entre o patrão e o servo, Existirá eternamente, vivendo de migalhas de autoridade contra a vida e independência dos companheiros de classe.

Às 2 horas da tarde, nessa ilha negra, onde se armazenam o carvão, o manganês e a pedra, o sol queimava. Vinha do mar, como infestado de luz, um sopro de brasa; ao longe, nas outras ilhas, o trabalho curvava centenas de corpos, a pele ardia, os pobres homens encobreados, com olhos injetados, esfalfavam-se, e mestre Correia, dançarinando o seu passinho:

– Vamos gente! Eh! nada de perder tempo. V. Sa não imagina. Ninguém os prende e a ilha está cheia. Vida boa!

Foram assim até a tarde, parando minutos para logo continuar. Quando escureceu de todo, acenderam-se as candeias e a cena deu no macabro.

Do alto, o céu coruscava, incrustado de estrelas, um vento glacial passava, fogo-fatuando a chama tênue das candeias e, na sombra, sombras vagas, de olhar incendido, raspavam o ferro, arrancando da alma gemidos de esforço. Como se estivesse junto do cabo e um batelão largasse saltei nele com um punhado de homens.

Íamos a um vapor que partia de madrugada. No mar, a treva mais intensa envolvia o steamer, um transporte inglês com a carga especial do minério. O comandante fora ao Casino; alguns boys pouco limpos pendiam da murada com um cozinheiro chinês, de óculos. Uma luz mortiça iluminava o convés. Tudo parecia dormir. O batelão, porém, atracava, fincavam-se as candeias; quatro homens ficavam de um lado, quatro de outro, dirigidos um preto que corria pelas bordas do barco, de tamancos, dando gritos guturais. Os homens nus, suando apesar do vento, começavam a encher enormes tinas de bronze que o braço de ferro levantava num barulho de trovoada, despejava, deixava cair outra vez.

Entre a subida e a descida da tina fatal, eu os ouvia:

– O minério! É o mais pesado de todos os trabalhos. Cada pedra pesa quilos. Depois de se lidar algum tempo com isso, sentem-se os pés e as mãos frios; e o sangue, quando a gente se corta, aparece amarelo… É a morte.

– De que nacionalidade são vocês?

– Portugueses… Na ilha há poucos espanhóis e homens de cor. Somos nós os fortes.

O fraco, deviam dizer; o fraco dessa lenta agonia de rapazes, de velhos, de pais de famílias numerosas.

Para os contentar, perguntei:

– Por que não pedem a diminuição das horas de trabalho?

As pás caíram bruscas. Alguns não compreendiam, outros tinham um risinho de descrença:

– Para que, se quase todos se sujeitam?

Mas, um homem de barbas ruivas, tisnado e velho, trepou pelo monte de pedras e estendeu as mãos:

– Há de chegar o dia, o grande dia!

E rebentou como um doido, aos soluços, diante dos companheiros atônitos.

 

   

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