Heranças, Conto de Aluísio Azevedo
Heranças
Duro o sobrecenho, a cara franzida e má, trabalhava ele sombriamente à sua secretária, importunado pelo rumor de duas vozes, uma de homem e outra de mulher, que altercavam na sala próxima, num arrastado crescendo de rixa habitual.
– Diabo! resmungou, coçando a cabeça. Já lá estão os dois a brigar! Não me deixam fazer nada!…
O ruído aumentou. Cruzaram-se injúrias mais fortes; ouviram-se punhadas e pontapés nos móveis.
– Que inferno!
E o rapaz arremessou a pena e correu à porta da sala, exclamando desabridamente:
– Então, meu pai! não tenciona acabar com isso?!
– Pois não vês que é tua mãe que me provoca?! berrou o outro apoplético de raiva. Vem ouvir só o que ela me está dizendo, esta peste!
– Ora tenha juízo!…
– Malandro!
– Ouviste?!
– Não faça caso!…
– Especulador!
– É demais!
– Deixe-a lá!…
– Bêbedo! Covarde!
– Covarde?! Pois vou dar-te o pano de amostra da minha covardia, víbora assanhada!
E o homem atirou-se em fúria, de mãos prontas para fechar a mulher dentro das garras. Mas o filho, de um salto, susteve-lhe a carreira e apresou-o energicamente pelo vigoroso dorso, empurrando-o para o quarto onde trabalhava e cuja porta obstruiu com o corpo.
– Deixa-me, ou te arrependerás! bradou o pai, ameaçando-o com o punho cerrado.
– Acalme-se! O senhor já está em idade de ter juízo! Apre!
– Tento na língua! Olha que ainda sou homem para amassar vocês dois numa só pasta!
O filho não fez caso da nova ameaça, deu com ímpeto uma volta à maçaneta da porta e disse ao outro em tom seco:
– O senhor está hoje num dos seus dias, e eu preciso trabalhar, sabe? O melhor é pôr-se ao fresco! Vá dar um giro pela estrada. A lua já nasceu e os caminhos estão secos até à estação…
– Não vou! Ninguém aqui nesta casa tem o direito de mandar-me sair!
– Decerto, mas é melhor que se afaste… No fim de contas sou seu filho e pesa-me ter de faltar-lhe ao respeito para defender minha mãe.
– Chega a tempo esse escrúpulo… Não há que ver!…
– Não puxe palavras! Sinto-me pouco disposto a discutir e tenho muito que fazer!
– Pois não me provocasses! Não te fosses meter onde não eras chamado!
– Não o provoquei, ora esta! Meti-me na sua contenda com minha mãe, para lhe não deixar que batesse nela. Não seria a primeira vez. Sei até onde vai a força do seu gênio!
– Meu gênio! E podes tu falar dele?… Acaso tens tu melhor gênio do que eu?… Não me terás dado porventura as mais belas provas da tua brutalidade e da tua insolência?… Sempre te conheci feroz! Ainda bem pequeno, em um ímpeto de raiva uma vez que no açude te quis constranger a nadar comigo, mordeste-me o braço como um cão! conservo até hoje no corpo o sinal dos teus dentes! olha!
E, em um só tempo, o homem arregaçou até os bíceps as mangas do braço esquerdo, e estendeu-o ereto e nu defronte dos olhos do filho.
Este abaixou a cabeça com tristeza, sem desfranzir o sobrecenho…
– É exato… disse, saí aos meus… Juro-lhe porém que sempre me arrependo das minhas violências, mal as cometo… E se ainda há pouco não interviesse na sua disputa com minha mãe, o senhor tê-la-ia espancado…
– E o que tinhas a ver com isso? Antes dela ser tua mãe, já era minha mulher! Tu lhe deves respeito, mas eu tenho o direito de ser respeitado por ela!
– Bom! Acabou-se! Vá dar um passeio; vá que isso lhe fará bem…
– Não acabou tal! quiseste arrematar a contenda, pois agora é agüentar com ela! Se assim não fosse, escusava eu de estar aqui a trocar palavras contigo; já sabes que posso passar perfeitamente sem te ouvir a voz…
– Mas afinal, onde quer o senhor chegar?
– Quero despejar os meus ressentimentos contra tua mãe e contra ti!
O rapaz sacudiu a cabeça com impaciência, e soprou forte todo o ar dos pulmões, cerrando mais as sobrancelhas.
O outro prosseguiu resfolegando a miúdo:
– Ela, aos teus olhos, será tudo quanto quiseres; para mim é e sempre foi um demônio! uma fúria infernal! uma serpente venenosa!
– Lembro-lhe de novo que sua mulher e minha mãe…
– Sei, e é por isso justamente que não a conheces. Não podes ver nela a verdadeira criatura que nela existe! Todas as mulheres são, para os seus competentes filhos, uns anjos impecáveis; mas se aquele diabo te dissesse uma só parte do que a mim me repete a cada instante, na febre do rancor e da maldade, terias a cabeça em fogo como a minha me escalda neste momento!
– Basta! não quero saber disso!
– Hás de saber! Não aceito imposições!
– Peço-lhe então que se cale, ou se retire.
– Pedes-me? Com que direito? Acaso esperas tu que eu atenda aos teus pedidos? Só pedidos de amigos se tomam em consideração e tu nunca foste meu amigo!
– Se nunca fui seu amigo a culpa não é minha. O amor filial é sempre uma conseqüência do amor dos pais. Não nasce com o filho, é preciso formá-lo. Sei que amo minha mãe…
– Tal mãe, tal filho! Ela declara que me detesta; ele declara que nunca me amou…
– E o senhor?… amou-me algum dia?… No entanto o seu amor de pai devia ter nascido comigo, que sou seu filho. Eu tinha o direito, ao apear-me na vida, de encontrar o seu amor já de pé, à minha espera ao lado dos gemidos de minha mãe parturiente; e foi só o amor materno que me recebeu, e só ele me vigilou o berço. Carícias de pai não me recorda havê-las recebido na idade em que se forma o amor no coração das crianças. Saí dos alugados braços de uma ama para o venal desterro de um internato de segunda ordem, onde bem raras vezes o senhor foi visitar-me. Nesse tempo, confesso-lhe, menos me lembrava das suas feições que das de outros pais que lá iam freqüentemente visitar os filhos mais felizes do que eu, nem sei, com franqueza! até como não cheguei a esquecê-las de todo! Do internato segui logo a trabalhar para um país estranho, onde suas cartas foram tão raras quanto foram as suas visitas ao colégio. Volto à minha terra, entro de novo nesta casa, sou friamente acolhido pelo senhor e, pouco depois, recebo ordem sua para tomar por esposa uma rapariga, que eu mal conhecia; recuso. O senhor insiste. Resisto a pé firme; o senhor opõe-me com empenho uma série de razões pecuniárias, que em nada alteram o meu propósito; e então o senhor ameaça-me, como se eu fora uma criança ou um imbecil, e lança-me à cara todas as brutalidades que lhe vêm à boca; eu pela primeira vez, fico conhecendo o homem que é meu pai: começo a detestá-lo e uma vez por todas, perco-lhe o respeito: insulto-o! Desde esse infeliz momento, toda a indiferença que o senhor tinha por mim transformou-se em ódio, ódio legitimo e mortal. E, de então até hoje, o senhor, apesar dos meus esforços em ser bom filho para minha mãe, não procura disfarçar sequer a profunda aversão que eu lhe inspiro! Não é esta a verdade?
– Sim, é! Eu te odeio, porque o teu proceder para comigo, negando-te a aceitar a esposa, cujo dote vinha salvar tua família da miséria, foi indigno e cruel, em vista da franqueza com que te falei e das súplicas que te fiz!
– Indigno?
– Foi mais: foi degradante, porque foi uma extorsão, foi um roubo!
– Oh!
– Sim, um roubo! Posso prová-lo!
– Não! Não há razões que justifiquem a exigência de tal sacrifício nem há homem de bom senso que se preste a casar pelas conveniências pecuniárias do pai!
– Ah! Eu fui um deles! Como tu, saí do colégio para aprender a ganhar a vida longe de minha terra; ao voltar a esta casa meu pai apontou-me, como te apontei, a mulher com quem devia eu casar. Recalcitrei, como tu recalcitraste; mas o pobre homem trouxe-me para este quarto, que era então o seu gabinete de trabalho, fechou-se comigo e, chorando abriu-me o coração e contou-me a sua vida; disse-me que seu casamento tinha já sido feito em idênticas circunstâncias para salvar meu avô de uma vergonhosa ruína, e pintou-me nua e crua, tal qual como fiz contigo, a sua tristíssima posição. Ele, coitado, tinha aqui em casa uma órfã rica e feia, de quem era tutor, e de cujo dote lançara mão; a maioridade dela estava a bater à porta; ia chegar o momento da prestação de contas e meu pai não tinha com quê. A sua última esperança era o meu casamento com a pupila, essa detestável criatura que foi depois tua mãe. Pois bem! eu, aliás apaixonado por outra mulher, de quem até hoje nunca mais me esqueci; eu não tive ânimo como tu tiveste, miserável, de abandonar meu pai ao desespero e ao opróbrio que o esperavam e sacrifiquei-me por ele. Era o meu dever de filho – cumpri-o. Meu filho, por sua vez, não fez o mesmo a meu favor – lesou-me! É um ladrão!
– Cale-se, por amor de Deus! exclamou o rapaz, sentindo que a cólera, dentro dele a custo reprimida, ameaçava rebentar.
– Não me calarei! Hás de me ouvir!
– Oh! cale-se! cale-se! não me queira fazer mais desgraçado do que sou! Cale-se, ou não responderei por mim!
– Ameaças-me?! bramiu o pai. Não te tenho medo!
O rapaz cerrou os punhos, rilhando os dentes. Tremiam-lhe os músculos da face, tal era o esforço que fazia para conter-se.
E os dois olharam-se, em mudo e ofegante desafio. Pai e filho mediram-se com o mesmo ódio, com a mesma irascibilidade hereditária, com a mesma loucura consangüínea.
Uma palavra mais só uma palavra, bastaria para os lançar um contra o outro.
Mas a porta da sala abriu-se de roldão, e a mãe acudiu, correndo para o filho, a cujo pescoço se agarrou com ímpeto.
– Meu filho, não lhe batas! não lhe batas, implorou a mísera.
– Não lhe tocarei! Obrigado, minha mãe Ele, porém, que saia já da minha presença! Não o posso ver!
– Lembra-te de que ele é teu pai …
– Seu pai, nunca! vociferou o outro. Não é possível que este monstro seja meu filho!
E, espumando de raiva, dirigiu-se à mulher, com o punho fechado e o braço estendido, quase a tocar-lhe no rosto:
– Esse bandido é teu sangue, é só teu sangue! Semelhante traficante nunca poderia ter procedido de mim! Concebeste-o de qualquer cigano ou de qualquer vaqueiro errante!
– Ah! gemeu a mulher em um grito de dor e de revolta, levando ao coração ambas as mãos como se o tiveram apunhalado.
– Rua! berrou o pai. Sai já daqui de minha casa! Bua, miserável!
E atirou-se sobre o filho, para o lançar fora.
Ouviu-se então um bramido de fera assanhada. O rapaz, com um movimento rápido, empolgara-o pela cintura, gritando-lhe feroz:
– Tu é que sairás, infame! Vou despenhar-te pela escada!
E travou-se a luta, irracional e bárbara. Pai e filho eram ambos possantes e destemidos. O rapaz cingia o outro pelos rins e, aos arrancos, procurava arrojá-lo para o corredor. Mas o adversário resistia, e os dois estreitaram-se com mais gana, feitos em um só, em uma só mole ofegante e furiosa, que rodava aos trancos pela casa, levando aos trambolhões o que topava, despedaçando móveis e vidraças, esfregando-se pelas paredes, a rodar sempre fundidos em um infernal abraço de ódio, filho de ódio, de ódio do mesmo sangue.
Afinal fraqueou o mais velho, caindo de joelhos. E o outro, de pé, começou a arrastá-lo penosamente para o lado da escada.
– Hás de sair! Hás de sair!
O arrastado forcejava para resistir ainda, escorando-se no chão com os pés, com as pernas e com os cotovelos; mas, polegada a polegada, ia cedendo. Arfavam como dois touros.
– Larga-me! Larga-me!
– Hás de sair! Hás de sair!
E aproximavam-se do patamar. Já parte do caminho estava vencida. Não tardaria o primeiro degrau. O mais velho, porém, a certa altura do corredor, fez um supremo esforço para erguer a cabeça e, pondo as mãos, suplicou de joelhos, quase sem fôlego:
– Pára aqui por amor de Deus ! Não me leves mais adiante!… Foi até aqui, neste lugar justamente, que eu, nestas mesmas condições, uma noite como esta… arrastei teu avô como me estás arrastando agora!… Não me leves além do que eu o levei!… Não seria justo!… Vingaste-o!… Estamos quites!