quinta-feira, novembro 21, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasMário de Andrade

Jaburu Malandro, de Mário de Andrade

Jaburu Malandro

(Os Contos de Belazarte)

Belazarte me contou:
Pois é… tem vidas assim, tão bem preparadinhas, sem surpresa… São ver gaveta arranjada, com que facilidade você tira a cueca até no escuro, mesmo que ela esteja no fundo! Mas vem um estabanado, revira tudo, que-dê cueca? — Maria, você não viu a minha cueca listrada de azul? — Está aí mesmo, seu dotoire! — Não está! Já procurei, não está… E é um custo a gente encontrar a cueca. Você se lembra do João? Ara, se lembra! o padeiro que gostava da Rosa, aquela uma que casou com o mulato… Pois quando contei o caso, falei que o João não era homem educado pra estar cultivando males de amor… Sofreu uns pares de dias, até bebeu, se lembra? e encontrou a Carmela que principiou a consolá-lo. Não durou muito se consolou. Os dois passavam uma porção de vinte minutos ali na cerca, falando nessas coisas corriqueiras que alimentam amor de gente pobre.
Ora a Carmela… será que ela gostava mesmo do João? Difícil de saber. Era moça bonita, isso era, desses tipos de italiana que envelhecem muito cedo, isto é, envelhecem não, engordam, ficam chatas, enjoativas. Porém nos dezenove, que gostosura! Forte, um pouco baixa, beiços tão repartidinhos no centro, um trevo encarnado! Cabelo mais preto nem de brasileira! Porém o sublime era a pele, com todos os cambiantes do rosado, desde o róseo-azul do queixo com as veinhas de cá pra lá sapecas, até o rubro esplendor ao lado dos olhos, querendo extravasar pela fronte nos dias de verão brabo. Filha de italiano já se sabe…
Mas Carmela não tinha a ciência das outras moças italianas daqui. Pudera, as outras saíam todo santo dia, frequentavam as oficinas de costura, as mais humildes estavam nos curtumes, na fiação, que acontecia? Se acostumavam com a vida. Não tinha homem que não lhes falasse uma graça ou no mínimo olhasse pra elas daquele jeito que ensina as coisas. Ficavam sabendo logo de tudo e até segredavam imoralidades umas pras outras, nos olhos. Ficavam finas, de tanta grosseria que escutavam. A grosseria vinha, pam! batia nelas. Geralmente caía no chão. Poucas, em comparação ao número delas, muito poucas se abaixavam pra erguer a grosseria. Essas se perdiam, as pobres! Se não casavam na Polícia, o que era uma felicidade rara, davam nas pensões.
Nas outras a grosseria relava apenas, escorregando pro chão. Mas o choque desbastava um pouco essa crosta inútil de inocência que reveste a gente no começo. Ficavam sabendo, se acostumavam facilmente com o manejo da vida e escolhiam depois o rapaz que mais lhes convinha, seleção natural. Casavam e o destino se cumpria. De chiques e aladas, viravam mães anuais; filho na barriga, filho no peitume, filho agarrado na perna. Domingo iam passear na cidade, espandongadas, cabelo caindo na cara. Não tinha importância, não. Os trabalhadores o que queriam era mãe pros oito a doze filhos do destino.
Carmela não. Vizinhava com a padaria em casa própria. O pai afinal tinha seus cobres de tanta ferradura ordinária que passara adiante, e tanta roda e varal consertados. E, fora as duas menores que nem na escola inda iam, o resto eram filhos, meia-dúzia, gente bem macha trabalhando numa conta. Dois casados já. Só um ninguém sabia dele, talvez andasse pelas fazendas… Sei que fora visto uma vez em Botucatu. Era o defeito físico da família. Se o nome dele caía na conversa, a gente só escutava os palavrões que o pai dizia, porca la miséria. Restava a metade de meia-dúzia, menores que Carmela, treze, quatorze e dezesseis anos, que seguiam o caminho bom dos mais velhos.
Assim florescentes, todos imaginaram de comum acordo que Carmela não carecia de trabalhar. Deram um estadão pra ela, bonita! O pai olhava a filha e sentia uma ternura diferente. Pra esvaziar a ternura, comprava uma renda, sapatos de pelica alvinha, fitas, coisas assim.
Padeiro portuga e ferreiro italiano, de tanta vizinhança, ficaram amigos. Quando o Serafino Quaglia viu que a filha pendia pro João, gostou bem. Afinal, padaria instalada e afreguesada não é coisa que a gente despreze numa época destas…
Porém a história é que Carmela, sequestrada assim da vida, apesar de ter na família uma ascendência que a fazia dona em casa, possuía coração que não sabia de nada. O João era simpático, era. Forte, com os longos braços dependurados, e o bigode principiando, não vê que galego larga bigode!…
Carmela gostou do João. Quando pediu pra ele que não bebesse mais, João se comoveu. Principiou sentindo Carmela. As entrevistas na cerca tornaram-se diárias. Precisão não havia, ninguém se opunha, e um entrava na casa do outro sem cerimônia, mas é sempre assim porém… Não carece a gente ser de muitos livros, nem da alta, pra inventar a poesia das coisas, amor sempre despertou inspiração… Ora você há de convir que aqueles encontros na cerca tinham seu encanto. Pra eles e pros outros. Ali estavam mais sós, não tinham irmãos em roda. Pois então podiam passar muitos minutos sem falar nada, que é a melhor maneira de fazer vibrar o sentimento. Os que passavam viam aquele par tão bonito, brincando com a trepadeira, tirando lasca do pau seco… Isso reconciliava a gente com a malvadeza do mundo.
— Sabe!… a Carmela anda namorando com o João!
— Sai daí, você… Vem contar isso pra mim!… Pois se até fui eu que descobri primeiro!
Pam!… Pam!… Pam!… Pam!… Pampampam!… toda a gente correu na esquina pra ver. O carro vinha a passo.
GRANDE CIRCO BAHIA
dos irmão Garcias!
Hoje! Serata de estrea! Cachorros e maccacos sabios!
Irmãos Fô-Hi equilibristas!
Grandes números de actração mundial!
Apresentação de toda a Compania!
Todos os dias novas estreias!
O homem Cobra. Malunga, o elephante sabio!
Terminará a função a grande pantommima
OS SALTHEADORES DA CALABRIA
Três palhaços e o tony Come Mosca
Evohé! Todos ao Grande Circo Bahia! Hoje! (Esquina da rua Guaicurús)
Só 2$000 — Cadeiras a Quatro
Imposto a cargo do respeitável Publico!
Eviva!
O circo Bahia vinha tirar um pouco o bairro da rotina do cinema. Pam! Pam!… Pam!… Lá seguia o carro de anúncio entre desejos. Carmela foi contar pro João que ela ia com os três fratelos. João vai também.
O circo estava cheio. Pipoca! Amendoim torrado!… Batat’assat’ô furrn!… Vozinha amarela: Nugá! nugá! nugá!… Dentadura na escureza: Baleiro!… Balas de coco, chocolate, canela!… E a banda sarapintando de saxofone a noite calma. Estrelas. Foram pras cadeiras, Carmela alumeando de boniteza. O circo não vinha pobre nem nada!
— Todos os números são bons, hein! Eu volto! Você?
Come-Mosca quis espiar a caixa tão grande toda de lantejoulas, verde e amarela, que os araras traziam pro centro do picadeiro, prendeu o pé debaixo dela. Foi uma gargalhada com o berro que ele deu.
— Volto também.
Música. O reposteiro escarlate se abriu. O artista veio correndo lá de dentro, com um malhô todo de lantejoulas, listrado de verde e amarelo. Era o Homem Cobra. Fez o gesto em curva, braços no ar, deformação do antigo beijo pro público… é pena… tradição que já vai se perdendo… Tipo esquisito o Homem Cobra… esguio! esguio. Assim de malhô, então, era ver uma lâmina. Tudo lantejoula menos a cabeça, até as mãos! Feio não era não. Esse gênero de brasileiro quase branco já, bem pálido. Cabelo liso, grosso, rutilando azul. O nariz não é chato mais, mesmo delicado de tão pequeninho. Aliás a gente só via os olhos, puxa! negros, enormes! aumentados pelas olheiras. Tomavam a cara toda. Carmela sentiu uma admiração. E um mal-estar. Pressentimento não era, nem curiosidade… mal-estar.
O número causou sensação. Já pra trepar na caixa só vendo o que o Homem Cobra fez! caiu no tapete, uma perna foi se arrastando caixa arriba, a outra, depois o corpo, direitinho que nem cobra! até que ficou em cima. Parecia que nem tinha osso, de tão deslocado. Fez coisas incríveis! dava nós com as pernas, ficava um embrulhinho em cima da caixa… Palmas de toda a parte. Depois a música parou, era agora! Ergueu o corpo numa curva, barriga pro ar, pés e mãos nos cantos da caixa. Vieram os irmãos Garcias, de casaca, e o Dr. Cerquinho tão conhecido, médico do bairro. — Olha o doutor Cerquinho! — O doutor Cerquinho!… Homem tão bom, consultas a três mil-réis… Quando não podia pagar, não fazia mal, ficava pra outra vez. Os irmãos Garcias puxavam a cabeça do Homem Cobra, houve um estalo no bombo da música e a cabeça pendeu deslocada, balanceando. Trrrrrrrrr… tambor. A cabeça principiou girando. Trrr…
Meu Deus! girava rapidíssimo! Trrrrr… “Chega! Chega!” toda a gente gritavam. Trrrrr… Foi parando. Os irmãos Garcias endireitaram a cabeça dele e o Dr. Cerquinho ajudou. Quando acabaram, o moço levantou meio tonto, se rindo. Foi uma ovação. Não sei quantas vezes ele veio lá de dentro agradecer. Os olhos vinham vindo, vinham vindo, aquele gesto de beijo deformado, partiu. As palmas recomeçavam. Carmela pequititinha, agarrada no João, que calor delicioso pra ele! Virou-se, deu um beijo de olhos nela, francamente, sem-vergonha nenhuma, apesar de tanto pessoal em roda.
— Coitado não?
— Batuta!
No dia seguinte deu-se isto: estavam almoçando quando a porta se abriu, Pietro! Era um ingrato, era tudo o que você quiser, mas era filho. Foi uma festa. Tanto tempo, como é que viera sem avisar! como estava grande! Pois fazem seis anos já!
— Meu pai desculpa…
O velho resmungou, porém o filho estava bem vestido, não era vagabundo, não pense, estudara. Sabia música e viera dirigindo a banda do circo, foi um frio. O velho desembuchou logo o que pensava de gente de circo. Então Pietro meio que zangou-se, estavam muito enganados! olhem: a moça que anda na bola é mulher do equilibrista, a amazona se casara com o Garcia mais velho, Dolores, uma uruguaia. Gente honesta, até os dois japoneses. Todos espantados.
— Meu pai, o senhor vai comigo lá no circo pra ver como todos são direitos. Eu mesmo, se não casei até agora é porque nesta vida, hoje aqui, amanhã não se sabe onde, inda não encontrei moça de minha simpatia. E você, Carmela?
Ela sorriu, baixando o rosto, orgulhosa de já ter encontrado.
— Temos coisa, não? Por que não foram no circo ontem? É!… Pois não vi não! Também estava uma enchente!… Trouxe entrada pra vocês hoje.
Conversa vai, conversa vem, caiu sobre o Homem Cobra. Afinal não é que o número fosse mais importante que os outros não, até os irmãos de Carmela tinham preferido outras artistas, principalmente o de dezesseis, falando sempre que a dançarina, filha-da-mãe! botava o pé mais alto que a cabeça. Os outros tinham gostado mais da pantomima. Porém da pantomima, Carmela só enxergara, só seguira os gestos heroicos, maquinais, do chefe dos salteadores, aquele moreno pálido, esguio, flexível, e os grandes olhos. Quando morreu com o tiro do polícia bersagliere, retorcendo no chão que até parecia de deveras, Carmela teve “uma” dó. Sem saber, estava torcendo pra que os salteadores escapassem.
— O Almeidinha… Está aí! um rapaz excelente! é do norte. Toda a gente gosta dele. Faz todas aquelas maravilhas, você viu como ele representa, pois não tem orgulho nenhum não, pau pra toda obra. Serve de arara sem se incomodar… Até foi convidado pra fazer parte duma companhia dramática, uma feita, em Vitória do Espírito Santo, mas não aceitou. É muito meu amigo…
Carmela fitou o irmão, agradecida.
Afinal, pra encurtar as coisas, você logo imagina que o pai de Pietro foi se acostumando fácil com o ofício do filho. Aquilo dava uma grande ascendência pra ele, sobre a vizinhança… Quando no intervalo, o Pietro veio trazer o Garcia mais velho pra junto da família, venceu o pai. Todo mundo estava olhando pra eles com desejo. Conhecer o dono dum circo tão bom!… já era alguma coisa. O João, esse teve só prazer. Fora companheiro de infância do Pietro, este mais velho. Já combinaram um encontro pro dia seguinte de-tarde. Pietro mostrará tudo lá dentro, João queria ver.
E que Pietro apareça também lá na padaria… Os pais ficariam contentes de ver ele já homem, ah, meu caro, tempo corre!…
No dia seguinte de-tardinha, João já estava meio tonto com as apresentações. Afinal, no picadeiro vazio, foram dar com o Almeidinha assobiando. Endireitava o nó duma corda.
— Boas-tardes. Desculpe, estou com a mão suja.
Sorria. Tinha esse rosto inda mal desenhado das crianças, faltava perfil. Quando se ria, eram notas claras sem preocupação. Distraído, Nossa Senhora! “Meidinha, você me arranja esta meia, a malha fugiu…” Almeidinha puxava a malha da meia, assobiando. “Meidinha, dá comida pro Malunga, faz favor, tenho de ir buscar os bilhetes.” Lá ia o Almeidinha assobiando, dar comida pro Malunga. Então carregar a filhinha da Dolores, dez meses, não havia como ele, a criança adormecia logo com o assobio doce, doce. E conversava tão delicado! João teve um entusiasmo pelo Almeida. E quando, na noite seguinte, o Homem Cobra recebendo aplausos, fez pra ele aquele gesto especial de intimidade, João sentiu-se mais feliz que o rei Dom Carlos. Safado rei dão Carlos…
Carmela tanto falava, Pietro tanto insistiu, que o velho Quaglia recebeu o Almeida em casa mas muito bem. Em dez minutos de conversa, o moço já era estimado por todos. Carmela não pôde ir na cerca, já se vê, tinha visita em casa. João que entrasse, pois não conhecia o Almeida também!
E, vamos falando logo a verdade, o Homem Cobra, assim com aquele jeito indiferente, agarrou tendo uma atenção especial pra Carmela. Ninguém percebia porque, afinal, a Carmela estava quase noiva do João.
Nunca mulher nenhuma tivera uma atenção especial pro Meidinha, Carmela era a primeira. Ele percebeu. Só ele, porque os outros sabiam que ela estava quase noiva do João. E tem coisas que só mesmo entre dois se percebem. Carmela dum momento pra outro, você já sabe o que é a gente se tornar criminoso, ficara hábil. Mesma habilidade no Meidinha, que fazia tudo o que ela fazia primeiro. Até o caso da flor passou despercebido, também quem é que percebe uma sempre-viva destamanho! O certo é que de noite o Homem Cobra trabalhou com ela entre as lantejoulas. Só olho com vontade de ver é que enxerga uma pobre florzinha no meio de tanto brilho artificial.
Era uma hora da madrugada, noite inteiramente adormecida no bairro da Lapa, quando o esguio passou assobiando pela rua. Carmela, não sei que loucura deu nela, acender luz não quis, podiam ver, saltou da cama, e, com o casaquinho de veludo nas costas, entreabriu a janela. Abriu-a. Esperou. O esguio voltava, mãos nos bolsos, assobiando. Vendo Carmela emudeceu. Essas casas de gente meia pobre são tão baixas… Tocou no chapéu passando.
— Psiu…
Se chegou.
— Boa-noite.
— Safa! A senhora ainda não foi dormir!
— Estava. Mas escutei o senhor, e vim.
— Noite muito bonita…
— É.
— Bom, boas-noites.
— Já vai… Fique um pouco…
Ele botara as costas na parede, mãos sempre nos bolsos. Olhava a rua, com vontade de ir-se embora decerto. Carmela é que trabalhou:
— Vi a flor no seu peito.
— Viu?
— Fiquei muito agradecida.
— Ora.
— Por que o senhor botou a flor, hein?… Podiam perceber! Almeida se virou, muito admirado:
— O que tinha que vissem!
— É! tinha muita coisa, sabe!
Ele tirara as mãos dos bolsos. Se encostara de novo na janela, e olhava pro chão, brincando o pé numas folhinhas, a mão descansava ali do peitoril. Carmela já conhecia a doçura das mãos dadas com o João, de manso guardou a do moço entre as ardentes dela. Meidinha encarou-a inteiramente, se riu. Virou-se duma vez e retribuiu o carinho pondo a mão livre sobre as de Carmela.
— As mãos da senhora estão queimando, safa!
E não pararam mais de se olhar e se sorrir. Porém os artistas, mesmo ignorantes de vida, sabem tantas coisas por profissão… não durou muito, Carmela e o Meidinha trocaram o beijo n° 1. Então ele partiu.
Estaria zangada?… Aquela frieza decidiu o João: pedia a moça nessa noite mesmo. Mas, e foi bom senão a história ficava mais feia, não sei o que deu nele de ir falar com ela primeiro. Cerca? era lugar aonde Carmela não chegava desde a quarta-feira. João mandou Sandro chamá-la. Que estava muito ocupada, não podia vir. O que seria!… pois se não tinha feito nada!… resolveu entrar, não era homem pra complicações. Porém a moça nem respondeu aos olhares dele. Pietro é que se divertiu com a rusga, até fez uma caçoadinha. João teve um deslumbramento, gostou. Mas Carmela ficou toda azaranzada. Desenhou um muxoxo de desdém e foi pra dentro. Não sabia bem por quê, porém de repente principiou a chorar. Veio a mãe ralhando com Pietro, onça da vida. E verdade que dona Lina não sabia o que se passara, viu a filha chorando e deu razão à filha. João, quando soube que a namorada estava chorando, teve um pressentimento horrível, pressentimento de que, meu Deus!… pressentimento sem mais nada. Entrou em casa tonto, chegou-se pra janela sem pensamento, e ficou olhando a rua. Cada bonde, carroça que passava, eram vulcões de poeira. Ar se manchando, que nem cara cheia de panos. O jasmineiro da frente, e mesmo do outro lado da rua, por cima do muro, os primeiros galhos das árvores tudo avermelhado. Não vê que Prefeitura se lembra de vir calçar estas ruas! é só asfalto pras ruas vizinhas dos Campos Elíseos… Gente pobre que engula poeira dia inteirinho!
Si jantou, João nem percebeu. Depois caiu uma noite insuportável sem ar. João na janela. Os pais, vendo ele assim, se puseram a amá-lo. Doente não estava, pois então devia de ser algum desgosto… Carmela. Não podia ser outra coisa. Mas o que teria sucedido! E afinal, gente pobre tem também suas delicadezas, perguntaram de lado, o filho respondeu “não”. Consolar não sabiam. Nem tinham de que, ele embirrava negando. Então puseram-se a amar.
É assim que o amor se vinga do desinteresse em que a gente deixa ele. A vida corre tão sossegada, ninguém não bota reparo no amor. Ahn… é assim, é!… esperem que hão de ver!… o amor resmunga. E fica desimportante no lugarzinho que lhe deram. De repente a pessoa amada, filho, mulher, qualquer um, sofre, e é então, quando mais a gente carece de força pra combater o mal, é então que o amor reaparece, incomodativo, tapando caminho, atrapalhando tudo, ajuntando mais dores a esta vida já de si tão difícil de ser vivida.
Assim foi com os pais do João. O filho sofria, isso notava-se bem… Pois careciam de calma, da energia acumulada em anos e anos de trabalheira que endurece a gente… Em vez: viram que uma outra coisa também se fora ajuntando, crescendo sem que eles reparassem, e era enorme agora, guaçu, macota, gigantesca! amavam o João! adoravam o João! Como era engraçado, todo fechadinho, olho fechado, mãozinha fechada, logo depois de nascido!… os choros, noites sem dormir, o primeiro riso enfim, balbucios, primeiro dente, a roupinha de cetineta cor-de-rosa, a Rosa que não quisera casar com ele, e escola, as doenças, as sovas, a primeira comunhão, o trabalho, a bondade, a força, o futebol, os olhos, aqueles braços dependurados, meu Deus! todos os dias: o João!… Se tivessem vivido esse amor dia por dia, se compreende: agora só tinham que amar aquele sofrimento do instante, isso inda cristão aguenta. Mas os dias tinham passado sem que dessem tento do amor, e agora, por uma causa que não sabiam, por causa daqueles cotovelos afincados na janela, daquele queixo dobrando o pulso largo, olhar abrindo pra noite sem resposta, vinha todo aquele amor grande de dias mil multiplicados por mil. Amaram com desespero, desesperados de amor.
Quando João viu os vizinhos partindo pro circo, nem discutiu a verdade do peito: vou também. Pegou no chapéu. Pra mãe ele se riu como se fosse possível enganar mãe.
— Vou pro circo… Divertir um bocado.
Depois do que se passara, ir junto dela também era sem-vergonhice, procurou companheiros na arquibancada.
— Ué! você não vai junto da Carmela?
— Não me amole mais com essa carcamana!
— Brigaram!
— Não me amole, já disse!
Mas ver circo, quem é que podia ver circo num atarantamento daqueles! O Homem Cobra com a sempre-viva no peito. Gestos, olhares inconvenientes não fez nenhum que se apontasse, João porém descobriu tudo. A gente não pode culpar o Meidinha, não sabia que o outro gostava de Carmela. Um moço pode estar sentado junto de uma moça sem ser pra namorar…
Nessa noite o assobio chamou duas pessoas na janela. Bater, arrebentar com aquele chicapiau desengonçado! confesso que o João espiando, matutou nisso. Depois imaginou melhor, Carmela era dona do seu nariz e se tinha que fazer das suas, antes agora! aprendia a ver adonde ia caindo, livra! são todas umas galinhas. E bastava. Foi pra cama aparentemente sossegado. Porém que-dê sono! vinha de supetão aquela vontade de ver, tinha que espiar mesmo. Não podia enxergar bem, parece que se beijavam… oh, que angústia na barriga!…
Afinal foi preciso partir, e o Meidinha andou naquele passo coreográfico dos flexíveis. Ali mesmo na esquina distraiu-se, o assobio contorcido enfiou no ouvido da noite um maxixe acariocado. Carmela… você imagine que noites!
Convenhamos que o costume é lei grande. João mal entredormiu ali pelas três horas, pois às quatro e trinta já estava de pé. Pesava a cabeça, não tem dúvida, mas tinha que trabalhar e trabalhou. Botou o cavalo na carrocinha perfumada com pão novo e tlim… tlrintintim… lá foi numa festança de campainha, tirando um por um os prisioneiros das camas. São cinco horas, padeiro passou.
— É! circo, circo toda noite!… Pois agora não vai mais!
Também agora pouco se amolava que a mãe proibisse espetáculo. Gozar mesmo, só gozou na primeira noite. Depois, um poder de inquietações, de vontades, remorsos, remorsos não, duvidinhas… tomavam todo o tempo do espetáculo e ela não podia mais se divertir.
Dona Lina tinha razão. Quando Carmela apareceu, o irregular do corado, manchas soltas, falavam que isso não é vida que se dê pra uma rapariga de dezenove anos. Pelos olhos ninguém podia pensar isso porque brilhavam mais ainda. Estavam caindo pros lados das faces num requebro doce, descansado, de pessoa feliz. Não digo mais linda, porém, assim, a boniteza de Carmela se… se humanizara. Isso: perdera aquele convencional de pintura, pra adquirir certa violência de malvadez. Não sei se por causa de olhar Carmela, ou por causa da pantomima, a gente se punha matutando sobre os salteadores da Calábria. Não havia razão pra isso, os pais dela eram gente dos arredores de Gênova…
João, outro dia hei de contar o que sentiu e o que sucedeu pra ele, agora só me lembro dele ainda porque foi o primeiro a ver chegar o Almeida de-tardinha. Veio, já se sabe, mãos nos bolsos, assobio no meio da boca, bamboleando saltadinho no passo miúdo de cabra. Tinha pés de borracha na certa, João tremeu de ódio. Pegou no chapéu, foi até muito longe caminhando. O mal não é a gente amar… O mal é a gente vestir a pessoa amada com um despropósito de atributos divinos, que chegam a triplicar às vezes o volume do amor, o que se dá? Uma pessoa natural é fácil da gente substituir por outra natural também, questão de sair uma e entrar outra… Porém a que sai do nosso peito é amor que sofre de gigantismo idealista, e não se acha outra de tanta gordura pra botar logo no lugar. Por isso fica um vazio doendo, doendo… Então a gente anda cada estirão a pé… Aquilo dura bastante tempo, até que o vazio, graças aos ventinhos da boca-da-noite, se encha de pó. Se encha de pó.
Estamos no fim. São engraçadas essas mães… Proíbem circo, obrigam as meninas a ir cedo pra cama, pensam que deitar é dormir. Aliás, esta é mesmo uma das fraquezas mais constantes dos homens… Geralmente nós não visamos o mal, visamos o remédio. Daí trinta por cento de desgraças que podiam ser evitadas, trinta por cento é muito, vinte. Carmela entra na conta. Também como é que dona Lina podia imaginar que quem está numa cama não dorme? não podia. Mas nem bem o assobio vinha vindo pra lá da esquina, já Carmela estava de pé. Beijo principiou. Até quando ela retirava um pouco a cara pro respiro de encher, ele espichava o pescoço, vinha salpicar beijos de guanumbi nos lábios dela. Sempre olhando muito, percorrendo, parecia por curiosidade, a cara dela. Mas os beijos grandes, os beijos engolidos, era a diabinha que dava. Ele se deixava enlambuzar. Mestra e discípulo, não? Aquela inocentinha que não trabalhava nas fábricas, quem que havia de dizer!… Eis a inocência no que dá: não vê que moça aprendida trocava o João pelo Homem Cobra… Se este penetrasse no quarto, creio que nenhum gesto de recusa encontraria no caminho, Carmela estava louca. Só a loucura explica uma loucura dessas. Mas até os desejos se cansam porém, a horas tantas ela sentiu-se exausta de amor. Puseram-se a conversar. Meidinha, mãos nos bolsos, encostara as costas na parede e olhava o chão. Carmela o incomodava com a cobra aderente do abraço, rosto contra rosto. E perdidas, umas frases de intimidade. Ela gemendo:
— Eu gosto tanto de você!
— Eu também.
Engraçado a ambiguidade das respostas elípticas! Gostava de quem? da namorada ou dele mesmo?…
— Você trabalhou hoje?
— Trabalhei. Vamos dar uma pantomima nova. Eu faço o violeiro do Cubatão, venha ver.
— Querido!
Beijo.
— É verdade! não se vê mais o João… É parente de você, é?
— Parente? Deus te livre! deu um muxoxo. Não sei onde anda. Não gosto dele!
Silêncio. Carmela sentiu um instinto vago de arranjar as coisas. Afinal, o caso dela se tornara uma dessas gavetas reviradas, aonde a gente não encontra a cueca mais. Continuou:
— Ele queria casar comigo, mas porém não gosto dele, é bobo. Só com você que hei de casar!
Meidinha estava olhando o chão. Ficou olhando. Depois se virou manso e encarou a bonita. Os olhos dele, grandes, inda mais grandes, engoliram os da moça, contemplava. Contemplava embevecido. Carmela pousou nesses beiços entreabertos o incêndio úmido dos dela. Meidinha agora deixava os olhos caírem duma banda. Abraçados assim de frente, Carmela descansou o queixo no ombro do moço, e respirava sossegada o aroma de vida que vinha subindo da nuca dele. Ele sempre de olhos grandes, mais grandes ainda, caídos dum lado, perdidos na escureza do quarto indiferente.
— A gente há de ser muito feliz, não me incomodo que você trabalhe no circo…
Irei aonde você for. Se papai não quiser, eu fujo. Uhm…
Até conseguiu beijar o pescoço dele atrás. O Meidinha… os lábios dele mexiam, mas não falavam porém. Uma impressão de surpresa vibrou-lhe os músculos da cara de repente. Foi-se esvaindo, não, foi descendo pros beiços que ficaram caídos, com dor. Duramente uma energia lhe ajuntou quase as sobrancelhas. Acalmou. Veio o sorriso. Tirou Carmela do ombro. Na realidade era o primeiro gesto de posse que fazia, segurou a cabeça dela. Contemplou-a. Riu pra ela.
— Vou embora. É muito tarde…
Enlaçou-a. Beijou-lhe a boca ardentemente e tornou a beijar. Carmela sentiu uma felicidade, que se ela fosse dessas lidas nos livros, dava recordação pra vida inteira. Ficou imóvel, vendo ele se afastar. Assobio não se escutou.
No dia seguinte, que-dele o Homem Cobra?
— Vocês não viram o Meidinha, gente!
— Pois não dormiu em casa!
— Não dormiu não!
— Decerto alguma farra…
— Que o que!…
Que-dele o Almeida? Só de-tarde, alguns grupos sabiam na Lapa que o Homem Cobra embarcara não sei pra onde, o Abraão é que contava. Tinham ido juntos, no primeiro bonde “Anastácio” da madrugada. Vendo o outro de mala, indagou:
— Vai viajar!
— Vou.
— Deixa o circo!
— Deixo.
— Pra sempre é!
O Homem Cobra olhara pra ele, parecendo zangado.
— Não tenho que lhe dar satisfações.
Virou a cara pro bairro trepando das Perdizes.
De repente, vocês não imaginam, principiou a assobiar, alegre! um assobio de apito, nunca vi assobiar tão bem! Trabalho na Avenida Tiradentes… fui seguindo ele. Entrou na estação da Sorocabana.
— Era o melhor número do circo…
A essa hora já tivera tempo quente na casa dos Quaglias, Pietro levara a notícia. Carmela abriu uma boca que não tinha; ataque, gente do povo não sabe ter, caiu numa choradeira de desespero, só vendo! descobriram tudo. Não que ela contasse, porém era muito fácil de adivinhar. Soluçava gritando, querendo sair pra rua, chamando pelo Meidinha. Tiveram certeza duma calúnia exagerada, pavorosa, que só o tempo desmentiu. O velho Quaglia perdeu a cabeça duma vez, desancou a filha que não foi vida. Carmela falava berrado que não era o que imaginavam… mas só mesmo quando não teve mais força misturada com a dor, é que o velho parou. Parou pra ficar chorando que nem bezerro. Pietro andava fechando porta, fechando quanta janela encontrava, pra ninguém de fora ouvir, mas boato corre ninguém sabe como, as paredes têm ouvidos… E língua muito leviana, isso é que é. Os rapazes principiaram olhando pra Carmela dum jeito especial, e ficavam se rindo uns pros outros. Até propostas lhe fizeram. E ninguém mais não quis casar com ela. E só se vendo como ela procurava!… Uma verdadeira… nem sei o que!
Até que ficou… não-sei-o-quê de verdade. E sabe inda por cima o que andaram espalhando? Que quem principiou foi o irmão dela mesmo, o tal da dançarina… Porém coisa que não vi, não juro. E falo sempre que não sei.
Só sei que Carmela foi muito infeliz.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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