sexta-feira, novembro 22, 2024

Online Cursos Gratuitos

Canal Online para divulgação de Cursos Gratuitos, Livros, Apostilas e informações úteis para estudantes e professores.

Artur AzevedoContos, Crônicas e Poesias

João Silva, Conto de Artur Azevedo

João Silva

Em casa do Comendador Freitas, na Fábrica das Chitas, andavam todos “intrigados” com aquele flautista misterioso que, em companhia de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses, numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chácara.
Quando digo “todos”, não digo a verdade, porque o vizinho não era completamente estranho à senhorita Sara, filha única do aludido Comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistência e algum interesse.
Conquanto não fosse precisamente um Adônis, esse desconhecido começava a impressionar o seu espírito de moça, até então despreocupado e tranquilo, quando certa manhã os sons maviosos de uma flauta atraíram a sua atenção para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho que, sentado num banco de ferro, sob uma velha latada de maracujás, soprava o sugestivo instrumento de Pã, o mesmo indivíduo cujos olhares a perseguiam na rua ou no teatro.
Dizer que esse encontro não produziu o romanesco efeito com que naturalmente contava o melômano seria faltar à verdade que devo a meus leitores. Não, a senhorita Sara não se contrariou com avistar ali o moço que parecia distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Não quer isto dizer houvesse dentro dela outra coisa mais que uma sensação passageira, mas o caso é que a filha do Comendador Freitas não fez a esse respeito a menor confidência a nenhuma pessoa da casa, e esta reserva era, talvez, o prenúncio de um sentimento mais decisivo.
Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o inquilino da casinha dos fundos.
A coisa não era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando, enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruíra tudo, poupando apenas a latada de maracujás. Pouco a pouco, sozinho, sem o auxílio de ninguém, trabalhando das seis às oito horas da manhã, ele havia ajardinado o terreno, onde já se ostentavam lindíssimas flores.
Às nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as funções de criado de quarto, copeiro, cozinheiro, vinha chamá-lo para almoçar. Depois do almoço ele saía, esperava o bonde, e lá ia para a cidade. Voltava às quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras não. Ao cair da tarde pegava na flauta e saudava o crepúsculo com as suas músicas tristes e saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguém mais o via senão no dia seguinte, de manhã muito cedo, recomeçando a existência da véspera.
Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer modificação aquele gênero de vida, mas não! Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronométrica, e toda a gente em casa do Comendador Freitas perdia-se em conjecturas.
O que havia de mais singular na existência daquele moço era, talvez, o fato de ele não receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era inexplicável.
O Comendador tinha-o na conta de um misantropo, enfezado contra a sociedade: na opinião de D. Andreza, sua esposa, era um viúvo inconsolável. D. Irene, irmã de D. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual a sua opinião, e divergiam todos uns dos outros.
O copeiro quis certificar-se da verdade interrogando o preto velho, mas este a todas as perguntas respondia invariavelmente que sabia de nada. A dar-lhe crédito, ele ignorava até o nome do patrão.
Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso, tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha do Comendador Freitas.
Da janela do seu quarto, a senhorita Sara podia namorá-lo, sem ser vista por ninguém, nem que ninguém suspeitasse, nem mesmo D. Irene, que via mosquitos na lua.
Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do vizinho, e não tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos dela já se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitário, depois de modular na flauta uma enternecedora melopeia, mostrou à senhorita Sara um objeto que tinha na mão, e atirou-o por cima do muro na chácara. Era uma pedra, envolta num pedaço papel, em que vinha uma declaração de amor redigida em termos respeitosos.
A moça, que não era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra.
E durante muito tempo andou a pedra de cá para lá, de lá paca, da chácara para o quintal, do quintal para a chácara, aproximando um do outro aqueles dois corações separados por um muro.
Por um muro? Não! Por uma invencível muralha!
O namorado chamava-se João Silva, como toda a gente; não tinha parentes nem aderentes; era um empregado público paupérrimo, ganhando muito pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mão da senhorita Sara, se esta se sujeitasse a viver tão pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso, desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condições de fortuna ou pelo menos bem encaminhado, e participou a João Silva os seus receios.
Um velho amigo do Comendador, o comandante Pedroso, oficial de Marinha reformado, padrinho de batismo da senhorita Sara, infalível aos domingos na Fábrica das Chitas, havia se comprometido com a família Freitas a indagar e descobrir quem era o flautista.
Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres, levando as mais completas informações acerca do misterioso vizinho, informações que concordavam inteiramente com o que já sabia a senhorita Sara.
— É um empregadinho da Alfândega, disse o comandante com ar desdenhoso; não tem onde cair morto!
Mas acrescentou:
— Um esquisitão, muito metido consigo; entretanto, não é mau rapaz, nem mau funcionário.
Essas informações fizeram com que dali por diante o vizinho deixasse de ser objeto de curiosidade, o que facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade, que a senhorita Sara, aconselhada por João Silva, resolveu dizer tudo à mãe.
D. Andreza, que desejava ser sogra de um príncipe, caiu das nuvens, zangou-se, bateu o pé, chorou, quis ter um ataque de nervos, e intimou a filha a acabar com “essa pouca-vergonha”, pois do contrário o pai mandaria dar uma tunda de pau no tal patife!
D. Irene, a quem D. Andreza transmitiu a confidência que recebera, ficou furiosa, e aconselhou a irmã que contasse tudo ao marido. A outra assim fez.
O Comendador Freitas, para quem a vida de família correra até então sem o menor incidente desagradável, e que não estava, portanto, preparado para essa crise doméstica, perdeu a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em vez de chamar a filha e admoestá-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a esperava em companhia de um homem sem recursos para mantê-la dignamente, esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga, ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe não respondeu, e levou a toleima ao ponto de ir à delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um escândalo com que se regalou a vizinhança.
Esse tratamento desabrido fez com que despertassem na senhorita Sara instintos de revolta, e aquele inocente capricho, que o carinho paterno poderia destruir, transformou-se em paixão indômita e violenta — tão violenta que a moça adoeceu.
Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para Jacarepaguá, onde alugou um sítio.
Foi em Jacarepaguá que o comandante Pedroso, aparecendo um belo domingo em que a convalescente devia fugir de casa — pois o João Silva, por artes do diabo, que só lembram aos namorados, achou meios e modos de se comunicar com ela —, foi em Jacarepaguá, dizíamos, que o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais abastados de São Paulo. O rapaz voltara da Europa e vira, num teatro, a senhorita Freitas. Sabendo que ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o apresentasse à família.
— Esse casamento seria uma felicidade, disse o Comendador; mas, infelizmente, a pequena continua apaixonada pelo flautista; não há meio de lho tirar da cabeça!
— Qual não há meio nem qual carapuça! Você vai logo às do cabo e quer levar tudo à valentona! Deixe-me falar com ela… verá como a decido a aceitar o paulista!
— Você!
— Eu, sim!
— Duvido!
— Não custa nada experimentar. Oh, Santa, vem cá, minha filha! Vamos aí à sala que te quero dar uma palavra!
E voltando-se para os compadres:
— Façam favor de não interromper a nossa conferência!
O padrinho fechou-se na sala com a afilhada, e tão persuasivo foi, que um quarto de hora depois — um quarto de hora apenas! — saíram ambos muito contentes. A senhorita Sara parecia outra!
A estupefação foi geral.
— Conseguiste alguma coisa? — perguntou o pai ao padrinho.
— Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro Linhares, que ficou esperando na estrada.
O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava na cancela, à entrada do sítio.
Imaginem qual foi a surpresa da família vendo João Silva, o flautista!
O Comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; D. Andreza e D. Irene caíram sentadas no canapé, dispondo-se a ter cada uma o seu ataque de nervos; mas o comandante serenou os ânimos, gritando com toda a força dos seus pulmões:
— Este é o senhor Pedro Linhares!
Houve um silêncio tumular, que o recém-chegado cortou com estas palavras:
— Senhor Comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo. Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Santa desde o primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi dever conquistá-la por mim e não pelos meus contos de réis. Por isso, e de combinação com o meu amigo aqui presente…
E apontou para o comandante, que sorriu.
-…Me fiz passar por um pobretão, representando uma comédia cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da vigilância paterna, dona Santa deveria fugir deste sítio em companhia de João Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que é amado, deixa o seu incógnito, e vem pedi-la em casamento.
A moralidade do conto é consoladora para os pobres: quem tem muito dinheiro não confia em si.
 

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

compre-amazon

   

Intitula Cursos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *