quinta-feira, novembro 21, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasEdgar Allan Poe

A máscara da Morte Vermelha, Conto de Edgar Allan Poe

 

Havia muito tempo que a Morte Vermelha despovoava o país. Nunca se vira uma peste tão fatal! tão horrorosa! A sua encarnação era o sangue, a vermelhidão e a hediondez do sangue! Os seus sintomas dores agudas, uma vertigem súbita, depois um gotejamento abundante pelos poros e a dissolução do corpo. As manchas vermelhas que cobriam a vítima, principalmente no rosto, proscreviam-na da humanidade, privando-a de todos os socorros e de todas as simpatias. Invasão, progresso e resultado da doença, tudo isso era questão de meia hora.

Mas o príncipe Próspero era feliz, intrépido e sagaz. Quando viu os seus domínios meio despovoados, convocou uma turba de amigos vigorosos e alegre, escolhidos entre os cavalheiros e damas da corte e retirou-se com eles a uma das suas abadias fortificadas. Esta abadia era um palácio magnífico, edificado pelo príncipe, um gosto excêntrico e grandioso, rodeado por um muro espesso e alto, com portas de ferro.

Uma vez lá dentro, os cortesãos soldaram solidamente as fechaduras a fim de se protegerem contra as violências do desespero exterior. A abadia foi abundantemente abastecida. Graças a estas precauções, os cortesãos podiam desafiar o contágio. O mundo exterior que se arranjasse como pudesse. Entretanto, não valia apenas pensar nisso. O príncipe providenciara todos os divertimentos passíveis. Havia jograis, improvisadores, dançarinos, músicos, o bom e o belo sob todas as formas; e havia vinho. Lá dentro todas essas belas vantagens e a segurança ainda por cima, lá fora a Morte Vermelha.

No fim de cinco ou seis metes de retiro, enquanto o flagelo assolava o reino com maior raiva, o príncipe Próspero presenteou os seus mil amigos com um baile de máscaras de rara ostentação.

Que quadro voluptuoso o daquela mascarada! Mas primeiro deixai-me descrever-vos o recinto do baile; sete salas consecutivas, uma série imperial! Em muitos palácios estas sequência de salões formam longas perspectivas em linha reta, quando as portas estão abertas de par em par; de sorte que a vista mergulha sem obstáculo desde a primeira até á ultima. Aqui o caso era diferente como se devia esperar da paixão do duque pelo extraordinário e pelo bizarro. As salas eram dispostas tão irregularmente que o olhar não podia abranger senão uma de cada vez. De espaço a espaço, havia um desvio brusco e cada esquina apresentava um aspecto novo. No meio de cada parede, tanto do lado direito como do esquerdo, abria-se uma janela gótica, alta e estreita, para um corredor fechado, que seguia as sinuosidades dos aposentos. Estas janelas eram feitas de vidros coloridos, em harmonia com o tom dominante das decorações da sala a que pertenciam. A que ocupava a extremidade oriental, por exemplo, sendo guarnecida de azul, tinha as janelas de azul profundo. A segunda era adornada de púrpura e as janelas igualmente purpúreas. A terceira, inteiramente verde, tinha as janelas verdes. A quarta, ornada cor de laranja, recebia a luz por uma janela alaranjada. A quinta era branca. A sexta de violeta.

A sétima era tenebrosamente amortalhada em tapeçarias de velado negro, que revestiam os tetos e as paredes, caindo em pregas pesadas sobre um tapete do mesmo estofo e da mesma cor. Mas neste aposento, a cor das janelas não correspondia à decoração: os vidros eram um vermelho intenso cor de sangue.

Não havia lustres nem candelabros, nem lâmpadas, nem velas, nem luz de qualidade algum naquele longe séquito de salas, Mas nos corredores que as circundavam, justamente defronte de cada janela, erguia-se um tripé enorme com um braseiro resplandecente, cujos raios, passando através dos vidros coloridos, iam projetar-se sobre os ornamentos de ouro espelhados com profusão par aqui e por acolá, iluminando as salas de um modo maravilhoso e produzindo uma multidão de aspectos cintilantes e fantásticos. Mas no aposento negro, a luz do braseiro refletindo sobre os cortinados sombrios, através dos vidros sanguinolentos, era espantosamente sinistra e dava à fisionomia dos imprudentes que ali entravam um aspecto de tal modo estranho, que poucos pares se sentiam com coragem de pôr os pés no seu mágico recinto.

Era também naquela sala que se via, encostado à parede ocidental, um gigantesco relógio de ébano. O seu pendido balançava-se com um tic-tac surdo, carregado, monótono; e quando o ponteiro dos minutos acabava o circuito do mostrador, ao soar das horas, sabia do interior da máquina um som claro, estrepitoso, profundo e excessivamente musical; mas com nota tão particular e uma energia tamanha, que de hora a hora os músicos calavam insensivelmente os instrumentos para ouvir a música da hora. Então os valsistas cessavam forçosamente as suas atividades; uma comoção singular perturbava momentaneamente a alegria da sociedade. Enquanto vibrava o carrilhão, notava-se que os mais loucos empalideciam e os mais serenos passavam a mão pela fronte, como que imersos numa meditação ou num sonho delirante. Contudo, apenas se esvaecia o eco da última badalada, circulava a hilaridade por toda a assembleia; os músicos olhavam uns para os outros, sorrindo dos seus nervos e da sua loucura e prometiam-se mutuamente, em voz baixa, de não fazer caso do toque seguinte; mas passados os sessenta minutos, que compreendiam os três mil e seiscentos segundos da hora passada, vinha um novo repique do relógio fatal e com ele a mesma perturbação, o mesmo tremor, os mesmos devaneios.

Apesar disso, a orgia estiva alegre e magnífica. O duque tinha um gosto particular e era entendido como ninguém em cores e em efeitos, desprezando completamente o decoro da moda: os seus planos eram temerários, selvagens, e as suas concepções brilhavam com bárbaro esplendor. Muita gente tê-lo-ia julgado louco. Os cortesãos sentiam que ele não o era; mas era preciso ouvi-lo, vê-lo, para ter a certeza disso.

Ele próprio havia presidido à ornamentação dos sete salões para aquela grande festa; e o estilo dos costumes fora prescrito pelo seu gosto pessoal. As concepções eram por certo grotescas, deslumbrantes, magníficas, sobretudo picantes e fantásticas; muito semelhantes às que se viram mais tarde no Hernani. Figuras verdadeiramente arabescas, absurdamente equipadas, desproporcionalmente arranjadas. Fantasias monstruosas, como a loucura. Havia de tudo; o belo, o licencioso, o bizarro em grande quantidade, um pouco de terrível e repugnante em profusão. Em suma, era uma multidão de sonhos, pavoneando-se em todos os sentidos e tomando as edites dos aposentos. Ter-se-ia dito que eram eles que executavam a música com os pés e que as árias estranhas da orquestra eram o eco dos seus passos.

De vez em quando ouvia-se soar relógio da casa de veludo. Então, durante um momento todos estacavam, calava-se tudo, exceto a voz do carrilhão. Os sonhos ficavam inertes, paralisados nas suas posições. Mas os suas desvaneciam-se num instante… Apenas se perdiam os últimos ecos, circulava por toda a parte uma hilaridade ligeira e mal contida. E a música recomeçava, e os sonhos reviviam e giravam de um para outro lado mais alegremente que nunca, refletindo a luz das janelas, através das guies jorrava a irradiação dos tripés. Contudo, já nenhum mascarado ousava aventurar-se no aposento negro do ocidente, porque a noite avançava e através das vidraças cor de sangue afluía uma luz mais vermelha; e a escuridão dos cortinados fúnebres era cada vez mais horrorosa; e para o temerário que punha os pés sobre o tapete o relógio de ébano tinha um Carrilhão ainda mais pesado, mais solene e mais enérgico, para os mascarados que redemoinhavam nas salas longínquas.

Quanto às outras salas essas regurgitavam de gente, exuberante de vida e de entusiasmo. E a festa redemoinhava sempre, quando o relógio de ébano começou enfim a soar a meia noite. Então, como das outras vezes, a música cessou; suspenderam-se as danças e produziu-se por todas as partes uma imobilidade ansiosa. Mas o timbre do relógio tinha agora de soar doze badaladas; por isso, maior número de pensamentos ocorreu às meditações dos que pensavam entre aquela turba animada. Foi talvez também por isso que, antes de se afogar no silêncio o eco da última hora, muitas pessoas tiveram tempo de notar a presença de um mascarado, que ali não havia sido percebido. E a nova daquele intruso tendo-se espalhado, elevou-se de todos os lados na assembleia um murmúrio significativo, primeiro de espanto e de desaprovação, depois de medo, de horror e de repugnância!

Era necessário que a aparição fosse deveras extraordinária, para causar semelhante sensação numa assembleia de fantasmas tais como a que acabei de descrever. A liberdade carnavalesca daquela noite era na verdade quase ilimitada; mas o personagem em questão havia ultrapassado a extravagância de um Herodes e passando além dos limites (contudo benévolos) do decoro imposto pelo príncipe.

O coração, mesmo o dos mais levianos, tem certas fibras que não se deixam tocar insensivelmente; mesmo para os mais depravados, para aqueles que consideram igualmente a vida e a morte como mera brincadeira, há coisas com as quais não se pode brincar. Toda a sociedade pereceu sentir profundamente o mau gosto e a inconveniência da conduta e do costume do estrangeiro. A máscara, que lhe escondia o rosto, assemelhava tão perfeitamente a fisionomia de um cadáver rígido que a análise mais minuciosa não teria podido descobrir o artifício. Contudo, os loucos alegres que compunham a assembleia, teriam talvez suportado ou mesmo aprovado aquela brincadeira medonha, se o mascarado não tivesse ido adotar o tipo da Morte Vermelha. Trazia os fatos todos salpicados de sangue e a sua fronte espaçosa, assim como todas as feições da sua fisionomia estavam manchadas do espantoso escarlate.

Quando os olhos do príncipe Próspero caíram sobre o espectro (que passeava de um para o outro lado no meio dos valsistas, com um movimento moroso, solene e enfático, como que para representar melhor o seu papel) viram-no primeiro estremecer convulsivamente de terror ou de repugnância; mas um segundo depois, a sua fisionomia ruborizou-se de cólera: — Quem ousa —perguntou com uma voz enrouquecida, voltando-se pira os cortesãos que o rodeavam — quem ousa insultar-nos com esta ironia blasfema? Prendam-no já e tirem-lhe a máscara, a fim de sabermos quem havemos de enfocar no alto da torre, ao nascer do sol!

O príncipe Próspero achava-se no aposento do oriente azul, quando pronunciou aquelas palavras, que retumbaram fortes e claras através dos sete salões. Primeiro, quando ele falou, houve no grupo dos cortesãos pálidos, que o cercavam, um ligeiro movimento para a frente, na direção do intruso, esteve durante um instante quase ao seu alcance e que agora se aproximava cada vez mais do príncipe, com um passo firme e majestoso. Mas a audácia insensata do mascarado tinha inspirado a toda sociedade um terror indefinível; e no meio de tanta gente, não houve ninguém que ousasse deitar-lhe a mão; do sorte que, não achando o mínimo obstáculo, o espectro passou a dois passos do príncipe, enquanto toda a assembleia, como que obedecendo a um só movimento, recuava do centro da sala para as paredes, permitindo-o continuar o seu caminho sem interrupção, com o mesmo passo solene e cadencioso que o tinha ligo caracterizado, do quarto azul para o quarto purpúreo; do quarto purpúreo p para o verde; do verde para o laranja; deste para o violeta, sem que ninguém fizesse um movimenta para o deter.

Então o príncipe Próspero, desesperado e vergonhoso da sua covardia de um minuto, atravessou precipitadamente as seis salas (sem que ninguém o seguisse, porque um terror mortal se havia apoderado de todo o mundo) brandindo um punhal nu, e aproximou-se a três ou quatro pés do fantasma; este, tendo chegado à extremidade da sala de veludo, voltou-se bruscamente para aquele que o perseguia. Ouviu-se um grito agudo; o punhal relampeijou escorregando sobre o tapete fúnebre, onde o príncipe Próspero caiu morto um minuto depois.

Invocando a coragem do desespero, os mascarados precipitaram-se em chusma no aposento; e agarrando o desconhecido, que se conservava reto e imóvel como uma grande estátua, na sombra do relógio de ébano, sentiram-se tomados de um terror inominável, só veem que sob a mortalha e sob a máscara cadavérica que tinham agarrado com tanto furor, não havia nenhuma forma palpável.

Reconheceram então a presença da Morte Vermelha, que penetrara na guarda como um ladrão noturno. Todos os convivas caíram uns após outros nas salas da orgia, inundadas agora de sangue; e cada um morreu no local em que caíra.

E a vida do relógio de ébano extinguiu-se como e do último daqueles seres alegres; apagaram-se as chamas dos tripés, e as trevas, a ruína e a Morte Vermelha estabeleceram ali o domínio ilimitado.

 

   

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