quinta-feira, novembro 21, 2024

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Aluísio AzevedoContos, Crônicas e Poesias

Músculos e Nervos, Conto de Aluísio Azevedo

 

Músculos e Nervos

Terminava a primeira parte do espetáculo, quando D. Olímpia entrou no circo, pelo braço do pai.

Havia grande enchente. O público vibrava ainda sob a impressão do último trabalho exibido, que devia ter sido maravilhoso, porque o entusiasmo explodia por toda a platéia e de todos os lados gritavam ferozmente: “Scot! À cena Scot!” Dois sujeitos de libré azul com alamares dourados conduziam para o interior do teatro um cavalo que acabava de servir. Muitos espectadores, de chapéu no alto da cabeça, estavam de pé e batiam com a bengala nas costas das cadeiras; as cocotes pareciam loucas e soltavam guinchos, que ninguém entendia; das galerias trovejava um barulho infernal, e, por entre aquela descarga atroadora, só o nome do idolatrado acrobata sobressaía, exclamado com delírio por mil vozes.

– Scot! Scot!

Olímpia sentiu-se aturdida; o pai, no íntimo, arrependia-se de lhe ter feito a vontade, consentindo em levá-la ao circo, mas o médico recomendara tanto que não a contrariassem… e ela havia mostrado tanto empenho no capricho de ir aquela noite ao Politeama…

De repente, um grito uníssono partiu da multidão. Estalaram as palmas com mais ímpetos; choveram chapéus; arremessaram-se leques e ramalhetes, Scot havia reaparecido.

– Bravo! Bravo, Scot!

E os aplausos recrudesceram ainda.

O ginasta, que entrara de carreira, parou em meio da arena, aprumou o corpo, sacudiu a cabeleira anelada, e, voltando-se para a direita e para a esquerda, atirava beijos, sorrindo, no meio daquela tempestade gloriosa.

Depois de agradecer, estalou graciosamente os dedos e retirou-se de costas, a dar cambalhotas no ar.

Desencadeou-se de novo a fúria dos seus admiradores, e ele teve de voltar à cena ainda uma vez, mais outra, cada vez mais triunfante.

Olímpia, entretanto, com a cabeça pendida para a frente, o olhar fito, os lábios entreabertos, dir-se-ia hipnotizada, tal era a sua imobilidade. O pai tentou chamá-la à conversa; ela respondeu por monossílabos.

– Queres… vamos embora.

– Não.

Na segunda parte do espetáculo, a moça parecia divertir-se. Não despregava a vista de Scot, a quem cabia a melhor parte dos trabalhos da noite.

O mais famoso era a sorte dos vôos. Consistia em dependurar-se ele de um trapézio muito alto, deixar-se arrebatar pelo espaço e, em meio do trajeto, soltar as mãos, dar uma cambalhota e ir agarrar-se a um outro trapézio que o esperava do lado oposto.

Cada um destes saltos levantava sempre uma explosão de bravos.

Scot havia feito já; por duas vezes, o seu vôo arriscado; faltava-lhe o último e o mais perigoso. Diferençava este dos primeiros em que o acrobata, em vez de lançar-se de frente, tinha de ir de costas e voltar-se no ar, para alcançar o trapézio fronteiro.

O público palpitava ansioso, até que Scot afinal assomou no alto trampolim armado nas torrinhas, junto ao teto.

Cavou-se logo um fundo silêncio nos espectadores. Os corações batiam com sobressalto; todos os olhos estavam cravados na esbelta figura do artista, que, lá muito em cima, parecia, nas suas roupas justas de meia, a estátua de uma divindade olímpica. Destacava-se-lhe bem o largo peito, hercúleo, guardado pelos grossos braços nus, em contraste com os rins estreitos, mais estreitos que as suas nervosas coxas, cujos músculos de aço se encapelavam ao menor movimento do corpo.

Com uma das mãos ele segurava o trapézio, enquanto com a outra limpava o suor da testa. Depois, tranqüilamente, sem o menor abalo, prendeu o lenço à sua cinta bordada e de lantejoulas e deu volta ao corpo.

Ouvia-se a respiração ofegante do público.

Scot sacudiu o braço do trapézio, experimentando-o, puxou-o afinal contra o colo e deixou-se arrebatar de costas.

Em meio do circo desprendeu-se, gritou: “Hop!” deu uma volta no ar e lançou-se de braços estendidos para o outro trapézio.

Mas, o vôo fora mal calculado, e o acrobata não encontrou onde agarrar-se.

Um terrível bramido, como de cem tigres a que rasgassem a um só tempo o coração, ecoou por todo o teatro. Viu-se a bela figura de Scot, um instante solta no espaço, virar para baixo a cabeça e cair na arena, estatelada, com as pernas abertas.

O recinto do circo encheu-se logo. Nos camarotes mulheres desmaiaram, em gritos; algumas pessoas fugiam espavoridas, como se houvesse um incêndio; outras jaziam pálidas, a boca aberta e a voz gelada na garganta. Ninguém mais se entendia; nas torrinhas passavam uns por cima dos outros, numa avidez aterrada, disputando ver se conseguiam distinguir o acrobata.

Este, todavia, sem acordo e quase sem vida, agonizava por terra, a vomitar sangue.

Olímpia, lívida, trêmula, estonteada, quando deu por si, achou-se, sem saber como, ao lado do moribundo. Ajoelhou-se no chão, tomou-lhe a cabeça no regaço, e vergou-se toda sobre ele, procurando sentir nas faces frias o derradeiro calor daquele belo corpo escultural e másculo. E, desatinada, ofegante, apalpava-lhe o peito, o rosto, a brônzea carne dos braços, e, com um grito de extrema agonia, molhava a boca no sangue que ele expelia pela boca.

Scot teve um estremecimento geral de corpo, contraiu-se, vergou a cabeça para trás, volveu para a moça os seus límpidos olhos comovidos, agora turvados pela morte, soltou o gemido derradeiro.

E o corpo do acrobata escapou das mãos finas de Olímpia, inanimado.

 

   

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