O Dia das Visitas, Conto de João do Rio
O Dia das Visitas
A força de policia é aumentada. Quatro ou cinco guardas contêm a multidão ao lado do porteiro, que distribui os cartões. A onda dos visitantes cresce a cada momento, impaciente e tumultuosa. São 11 horas da manhã. O sol queima. Há no ar uma poeira sufocadora. O saguão está cheio, a calçada está cheia. Do outro lado da rua, doceiros, homens de refrescos, vendedores de frutas estabeleceram as caixas e as latas e mercadejam em alta voz.
Nas soleiras das portas, mulheres gordas à espera, criancinhas choramingas têm o semblante desolado e triste, mas há também sujeitos alegres, peralvilhos de calça balão mastigando tangerinas e rindo; há curiosos olhando a cena, como no espetáculo, e soldados, soldados da brigada, que passeiam gingando, com os tacões altos e o quepe do lado, por cima da pastinha; dois turcos vendem imagens de santos, botões, canivetes e fósforos; um italiano, que finge de cego, instala o realejo, e o filho começa a remoer velhos trechos de ópera, dolorosamente angustiosos. De vez em quando passa uma carroça ou um enterro, alastrando a rua de poeira. Mais ao longe, trabalham os condenados da correção na nova fachada, e cada passo que algum deles dá é logo acompanhado por dois policiais de carabinas embaladas.
O sol é esmagador, pesa como chumbo. Todos esses semblantes têm qualquer coisa de revoltado e de tímido, de desafio e medo. Percebe-se o terror das pessoas importantes e o desejo secreto de apedrejá-las, essa mistura antagônica que faz o respeito da ralé.
À porta da detenção, o movimento torna-se cada vez mais difícil e o rumor cresce. Vista de fora, na semi-sombra, a multidão tem um aspecto estranho e uniforme, parece um quadro violentamente espatulado pela mesma mão delirante. Os olhos raiados de sangue, alegres ou chorosos, têm um mesmo desejo – entrar; os corpos, corpos de mulheres, frágeis corpos de crianças, corpos musculosos de homens, uma só vontade – forçar a entrada; e todos os gestos, lentos, dificultosos, presos em encontrões de rancor, exprimem o mesmo anelo, que é o de entrar.
Há pragas, frases violentas, mãos que se agarram às roupas de outros, interjeições furiosas; e de dentro, do mistério do pátio da prisão, vem um clamor formidável e indistinto, que aquece e fustiga ainda mais o desejo de entrar e de ver. O porteiro, um senhor velho de cavaignac branco, distribui os cartões irritado e a suar.
– Não deixem passar sem cartão! Não entra ninguém sem cartão!
E os cartões, sebentos, passam das mãos dos guardas para mãos sôfregas dos visitantes, enquanto na porta de ferro, desesperadamente os que os obtiveram antes procuram entrar todos a um tempo. Um cheiro especial, misto de fartum de negros e de perfumes baratos, de suores de mulheres e de roupa suja, enerva, dá-nos visões de pesadelo, crispações de raiva.
Dentro, o pátio está limpo de serventes. Das janelas da secretaria, alguns funcionários deitam olhares distraídos. Duas filas de criaturas parece ligarem a porta de ferro aos dois portões das galerias. E nessas galerias o espetáculo é medonho. Dias antes, os presos contam as horas, à espera desse instante. Uns querem matar saudades, outros contam com os amigos para mandar vender as suas obras – flores de pão, couraçados de pau; outros escreveram toda a noite cartas anônimas ao chefe de polícia, denunciando companheiros ou inimigos, e anseiam por alguém para as pôr no correio; e todos, absolutamente todos, acicateados pelo egoísmo, esperam os presentes, o fumo, o dinheiro, as prendas, como uma obrigação dos que os vão ver. Os dois portões fecham-se antes de se abrirem os cubículos, e no corredor da grande galeria é um alarido, um desespero de jaula, com gritos, imprecações gargalhadas, perguntas, risos, o pandemônio das vozes, enquanto, como uma matilha de lobos, acuada, agarrando-se aos grossos varões, uns por cima outros, os assassinos, os incendiários, os estupradores, os desordeiros e os inocentes obrigados à infâmia numa confusão, arquejam na ânsia da liberdade. De fora, os visitantes não chegam às vezes a se fazer compreender, esmagados uns nos outros, irritados, sem poder apertar a mão dos amigos. São em geral homens de lenço de seda preta e chapéu mole, adolescentes arrastando as chinelas, mulheres perdidas, velhos trêmulos. No alarido, ouvem-se frases breves – Ó Juca, trouxeste os cigarros? – Ai, meu filho, que saudades do nosso tempo de cubículo! – Sabes quem foi preso ontem? – Vê se me arranjas um habeas com o Benjamim! – Estou aqui já há um mês e três dias! Fala por mim a seu Irineu! Algumas dessas palavras são vociferadas de longe. Os que tiveram a felicidade de chegar primeiro unem as mãos entre os ferros, falam devagar. Há amantes trêmulas, vendo o ciúme nos olhos dos detentos, há pobres esposas, há crianças e há velhos respeitáveis com a face triste, todos os sentimentos escachoando, borbulhando, barulhando naquele vórtice de desgraça.
Na outra galeria estão as mulheres. Essas só são visitadas por homens, os mesmos sujeitos de lencinho preto e calça balão, que às vezes visitam num só dia quatro e cinco amigos na detenção. As conversas são mais calmas. Algumas estão lá por causa dos que as visitam, por ciúme e pancadas. Têm quase todas esse sorriso estereotipado de resignação e amargura, dos infelizes que ainda não mediram a extensão da própria infâmia. Do outro lado, os homens parece estarem ali por obrigação. Só um eu vi, menino ainda, magro, tísico, com um olho afundado em pus, que segurava, como para se aquecer, a mão de uma pequena mulatinha. Ela conversava com outro, sem lhe dar atenção. Afinal, teve um sorriso de piedade.
– E tu, João?
– As voltas com o Zé-Maria. Nem você imagina como eu ando. Estou só esperando que você saia, para tirar um pensamento da cabeça…
E as suas mãos agarravam a mão da outra, num gesto de medo e de paixão.
O clamor continuava, fragorava como um oceano que se debatesse contra os altos muros brancos. O administrador já mandara ordem para dar fim à visita. Ainda havia os serventes e os abastados. De vez em quando, destoando dos casacos-sacos dos malandros, entrava uma sobrecasaca, algum advogado de porta de xadrez, a farejar a diária de petições de habeas-corpus, lambiscando delicadezas aos guardas.
– Há alguns desses sujeitos, dizem-me, que até já estiveram presos. E conheço um que, tendo contratado um habeas-corpus por trinta mil réis, não queria que o administrador soltasse o preso enquanto não o tivesse pago dessa importância.
A nossa atenção voltou-se, porém, para uma austera senhora que descia da secretaria gravemente, com um embrulho debaixo do braço.
– Não conhece? perguntou-me um dos guardas. É missionária protestante. Vem, naturalmente, pedir ao sr. capitão Meira Lima para falar aos presos. Antigamente vinha mais vezes. Ah! o senhor nem imagina o que os detentos faziam com ela. Eram troças, pilhérias, arremedavam-na na bochecha, diziam-lhe desaforos. Por último, sopravam-lhe nos olhos pimenta em pó, através das grades do cubículo. Ela continuou, impassível, a distribuir folhetos da religião, que o pessoal transforma em baralhos.
Tenho aqui um para o senhor. Venha cá. É preciso que ela não veja.
Vamos para o saguão. O guarda desdobra por trás da jarra Tiradentes, de Benedito Machado, um embrulho, e eu vejo valetes, ases e damas admiravelmente pintados em pedaços dos livros de edificação moral. Há mesmo um rei de paus que tem nas costas S. Paulo. E no pátio, a inglesa, na sua obra regeneradora, espera com calma que o administrador consinta em mais uma distribuição de folhetos, para o fabrico de futuros baralhos!
O clamor das galerias parecia diminuir, enquanto à porta do pátio havia o mesmo atropelo de pessoas, agora querendo sair. Os protestos prorrompiam entre frases de cólera surda e frases de deboche. Uma rapariga com o filhinho nos braços bradava: – Não volto mais! Não falei ao José. É impossível chegar perto da grade! – Contente-se comigo, dona! – A mulherzinha vinha com sede! – Ó Antônio, vamos tomar uma lambada! – Ih! menino, já quebrei água hoje como quê! E as vozes alçavam-se, cruzavam-se; faziam naquela porta, como a ornamentação da raiva e da sem-vergonhice um baixo-relevo vivo de entrada de penitenciária, enquanto, suando, bufando, com os cartões na mão, aquela gente – mulatos, pretos, italianos, portugueses, fúfias e rufiões, tristes mulheres e trabalhadores de fato endomingado – dava cotoveladas e empurrões, no desejo cada qual de sair em primeiro lugar.
Um sino pôs-se a tocar. Era o fim da visita. Os sons vibravam, duros, como uma ordem. Há sinos que choram, sinos que cantam, sinos que são tristes; há sinos feitos para dobrar a finados, como os há para cantar missas em ações de graça. Aquele sino era um aguilhão. O pátio esvaziava. A tropa partia, tropa desoladora, amiga do vício e do crime.
Foi então que eu vi aparecer, carregada de embrulhos, com a coifa branca a ondular as duas grandes asas, a figura de bondade da irmã Paula. O guarda tirara o boné, cheio de um carinhoso respeito. Os malandros e os desgraçados, ainda à porta, tinham nos olhos uma expressão de timidez e de alegria.
– Bonjour, meu filho, fez a irmã com um gesto cansado. O Sr. administrador? O guarda disse qualquer coisa, comovido. Ela arrumou embrulhos, enxugou as mãos, subiu as escadas da secretaria. A sua coifa alva parecia uma grande borboleta branca.
– É a única visita que consola os presos, é a única que eles respeitam, murmurava o guarda. Quando ela fala, tão simples e tão meiga, até as pedras parece quererem-lhe bem. Quando Jesus passou por este mundo, devia ter sido assim bom para todos os desgraçados.
De novo a coifa apareceu, borboleta de esperança adejando as grandes asas brancas e, como se fizesse a obra mais natural deste mundo, a irmã Paula disse:
– Vamos ver os desgraçadinhos. Trago-lhes hoje umas coisas. O Sr. administrador é muito bom, permite.
E assim, tocado pela sua presença, a mim me pareceu que o doloroso canto do jardim do crime se transformava no horto das rosas de que fala S. Tomás de Kempis…