sexta-feira, novembro 22, 2024

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Alcântara MachadoContos, Crônicas e Poesias

O Filósofo Platão, Conto de Alcântara Machado

Extraído do livro Laranja da China

O Filósofo Platão

(Senhor Platão Soares)

Fechou a porta da rua. Deu dois passos. E se lembrou de que havia fechado com uma volta só. Voltou. Deu outra volta. Então se lembrou de que havia esquecido a carta de apresentação para o diretor do Serviço Sanitário de São Paulo. Deu uma volta na chave. Nada. É verdade: deu mais uma.

– Nhana! Nhana! Nhana!

Nhana apareceu sem meias no alto da escada.

– Estou vendo tudo.

– Ora vá amolar o boi! Que é que você quer?

– Na gaveta do criado-mudo tem uma carta. Dentro de um envelope da Câmara dos Deputados. Você me traga por favor. Não. Eu mesmo vou buscar. Prefiro.

– Como queira.

E foi buscar. Saiu do quarto e parou na sala de jantar.

– Ainda tem geléia ai, Nhana?

– No armário debaixo de uma folha de papel.

– Obrigado.

Escolheu cuidadosamente o cálice. Limpou a colherinha no lenço. Nhana ia passando com o ferro de passar. Mas não se conteve.

– Platão, Platão, você não vai falar com o homem, Platão?

– Calma. Muita calma. Glorinha entregou o ordenado?

Nhana sacudiu a cabeça:

– Sim senhor!

Fingiu que não compreendeu. Raspado o fundo do cálice lavou meticulosamente as mãos. E enxugou sem pressa. Dedo por dedo. Abriu a porta. Fechou. Vinha vindo um bonde a duzentos metros. Esperou. Agora o ônibus. Esperou. Agora um automóvel do lado contrário. Esperou. Olhou bem de um lado. Olhou bem de outro. Certificou-se das condições atmosféricas de nariz para o ar. Marcialmente atravessou a rua.

O poste cintado esperava os bondes com gente em volta. Platão quando ia chegando escorregou numa casca de laranja. Todos olharam. Platão equilibrou-se que nem japonês. Encarou os presentes vitoriosamente. Na lata, seus cretinos. Esfregou a sola do sapato na calçada e foi esperar em outro poste. Chegou de cabeça baixa.

– Boa tarde, Platão.

– O mesmo, Argemiro, como vai você?

– Aqui neste solão esperando o maldito 19 que não chega!

Platão cavou um arzinho risonho. Acendeu um cigarro. Disse sem olhar:

– Eu espero o ônibus da Light.

– Milionário é assim.

Primeiro deu um puxão nos punhos postiços. Depois respondeu:

– Nem tanto…

O19 passou abarrotado. Argemiro não falava. Platão sim de vez em quando:

– Esse é um dos motivos por que eu prefiro o ônibus da Light apesar do preço. Tem sempre lugar. Depois é um Patek.

Mas era só para moer.

Argemiro deu adeusinho e aboletou-se à larga num 19 vazio. Então Platão soltou um suspiro e pongou o 13 que vinha atrás.

Ficou no estribo. Agarrado no balaustre. Imaginando desastres medonhos. Por exemplo: cabeçada num poste. Escapando do primeiro no segundo. Impossível evitar. Era fatal. Uma sacudidela do bonde e pronto. Miolos à mostra. E será que a Nhana casaria de novo?

– O senhor dá licença?

– Toda.

Não tinha visto o lugar. Pois a mulher viu. Que danada. Toda a gente passava na frente dele. Triste sina. Tomava cocaína. Ora que bobagem.

– Ô Seu Platãozinho!

A voz do Argemiro. Enfiou o rosto dentro do bonde.

– Ô seu pândego!

O cavalheiro do balaústre foi amável:

– Parece que é com o senhor.

– Olá, Argemiro, como vai você?

– Te gozando, Platãozinho querido!

Resolveu a situação descendo.

– Não tem nada de extraordinário3 Argemiro. Não precisava lazer tanto escândalo. Homessa! Então eu sou obrigado a andar de ônibus só? E ainda por cima da Light? E não tendo dinheiro trocado no bolso? Homessa agora! Homessa agora!

– Até outra vez, seu bocó!

Profunda humilhação com o sol assando as costas.

Mas não é que tinha de descer ali mesmo? Praça da República, Rua do Ipiranga, Serviço Sanitário. Esta agora é de primeiríssima ordem. Argemiro sem querer fez um favor. Um grande? Um grandérrimo.

Para a satisfação consigo mesmo ser completa só faltava abrir o guarda-sol. Você não quer abrir. desgraçado? Você abre, desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Abre nada. Nunca viu, seu italianinho de borra? Guarda-sol, guarda-sol, não me provoque que é pior. Desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Platão heroicamente fez mais três tentativas. Qual o quê. Foi andando. Batia duro com a ponteira na calçada de quadrados. De vingança. Se duvidarem muito as costas já estão fumegando. Depois asfalto foi feito ES-PE-CI-AL-MEN-TE para aumentar o calor da gente. Platão parou. Concentrou toda a sua habilidade na ponta dos dedos. É agora. Não e não. Vamos ver se vai com jeito. Guarda-solzinho de meu coração, abra, sim meu bem? Com delicadeza se faz tudo. Você não quer mesmo abrir, meu amorzinho? Está bem. Está bem. Paciência. Fica para outra vez. Você volta pro cabide. Cabide é o braço. Que cousa mais engraçada.

Rua do Ipiranga. Êta zona perigosa. Platão não tirava os olhos das venezianas. Só mulatas. Êta zona estragada.

– Entra, cheiroso!

– Sai, fedida!

Que resposta mais na hora, Nossa Senhora. É longe como o diabo esse tal de Serviço Sanitário. Pensando bem.

– Boa tarde, Seu Platão, como vai o senhor? Ó Dona Eurídice, como vai passando a senho… ora que se fomente!

Olhou para trás. Não ouviu. Que ouvisse. Parou diante da placa dourada. Sem saber se entrava ou não. Não será melhor não? Tanta escada para subir, meu Deus.

O tição fardado chegou na porta contando dinheiro.

– O doutor diretor já terá chegado?

– Parece que ainda não chegou, não senhor.

Aí resolveu subir.

– O doutor diretor ainda não chegou?

O cabeça-chata custou para responder.

– Chegou, sim senhor. Quer falar com ele?

– Ah, chegou?

O cabeça-chata papou uma pastilha de hortelã-pimenta e falou:

– Agora é que eu estou reparando… o Seu Platão Soares… Sim senhor, Seu Platão. Desta vez o senhor teve sorte mesmo: encontrou o homem. Vá se sentando que o bicho hoje atende.

Platão deu uma espiada na sala.

– Xi! Tem uns dez antes de mim.

– Paciência, não é?

Platão se abanava com o chapéu-coco. Triste. Triste. Triste.

– Que é que você está chupando?

– Eu? Eunãoestouchupandonadanãosenhor!

Platão deu um balanço na cabeça.

– Sabe de uma cousa? Aai!.. . Eu volto amanhã…

– O senhor dá licença de um aparte, Seu Platão? Eu se fosse o senhor não deixava para amanhã não. O senhor já veio aqui umas dez vezes?

– Não tem importância. Eu volto amanhã.

– Admiro o senhor, Seu Platão. O senhor é um FI-LÓ-SO-FO, Seu Platão, um grande FI-LÓ-SO-FO!

– Até amanhã.

– Se Deus quiser.

Desceu a escada devagarzinho. Tirando a sorte. Pé direito: volto. Pé esquerdo: não volto. Foi descendo. Volto, não volto, volto, não volto, vol…. to, não vol… to, vol… to! Parou. Virou-se. Mediu a escada. Virou-se. Olhou a rua. É verdade: e o degrau da soleira da porta? Mais um não-volto. Mais um. Porém para chegar até ele justamente um passo: volto. Ai está. Azar. O que se chama azar. Platão retesou os músculos armando o pulo. Deu. De costas na calçada. A mocinha que ia chegando com a velhinha suspendeu o chapéu. A velhinha suspendeu o guarda-sol. O chofer do outro lado da rua suspendeu o olhar. Platão Soares finalmente suspendeu o corpo. Ficou tudo suspenso. Até que Platão muito digno pegou o chapéu. Agradeceu. Ia pegando o guarda-sol. A velhinha quis fechá-lo primeiro.

– Não, minha senhora! Prefiro assim mesmo aberto, por favor. Muito agradecido. Muito agradecido.

De guarda-sol em punho deu uns tapinhas nas calças. Depois atravessou a rua. Parou diante do chofer. Cousa mais interessante ver mudar um pneumático.

E não demorou muito.

– Eu se fosse o senhor levantava um pouquinho mais o macaco, não acredita?

 

   

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