O Macaco Azul, Conto de Aluísio Azevedo
O Macaco Azul
Ontem, mexendo nos meus papéis velhos, encontrei a seguinte carta:
Caro Senhor.
Escrevo estas palavras possuído do maior desespero. Cada vez menos esperança tenho de alcançar o meu sonho dourado. – O seu macaco azul não me sai um instante do pensamento! É horrível! Nem um verso!
Do amigo infeliz
PAULINO
Não parece um disparate este bilhete?
Pois não é. Ouçam o caso e verão!
Uma noite – isto vai há um bom par de anos – conversava eu com o Artur Barreiros no largo da Mãe do Bispo, a respeito dos últimos versos então publicados pelo conselheiro Otaviano Rosa, quando um sujeito de fraque cor de café com leite, veio a pouco e pouco, aproximando-se de nós e deixou-se ficar a pequena distância, com a mão no queixo, ouvindo atentamente o que conversávamos.
– O Otaviano, sentenciou o Barreiros, o Otaviano faz magníficos versos, lá isso ninguém lhe pode negar! mas, tem paciência! o Otaviano não é poeta!
Eu sustentava precisamente o contrário afiançando que o aplaudido Otaviano fazia maus versos, tendo aliás uma verdadeira alma de poeta, e poeta inspirado.
O Barreiros replicou, acumulando em abono da sua opinião uma infinidade de argumentos de que já me não lembro.
Eu trepliquei firme, citando os alexandrinos errados do conselheiro.
O Barreiros não se deu por vencido e exigiu que eu lhe apontasse alguém no Brasi4 que soubesse arquitetar alexandrinos melhor que S. Ex.ª.
Eu respondi com esta frase esmagadora:
– Quem? Tu!
E acrescentei, dando um piparote na aba do chapéu e segurando o meu contendor, com ambas as mãos pela gola do fraque:
– Queres que te fale com franqueza?… Isto de fazer versos inspirados e bem feitos; ou, por outra: isto de ser ou não ser poeta, depende única e exclusivamente de uma cousa muito simples…
– O que é?
É ter o segredo da poesia! Se o sujeito está senhor do segredo da poesia, faz, brincando, a quantidade de versos que entender, e todos bons, corretos, fáceis, harmoniosos; e, se o sujeito não tem o segredo, escusa de quebrar a cabeça pode ir cuidar de outro ofício, porque com as musas não arranjará nada que preste! Não és do meu parecer?
– Sim, nesse ponto estamos de pleno acordo, conveio o Barreiros. Tudo está em possuir o segredo!…
E, tomando uma expressão de orgulho concentrado, rematou, abaixando a cabeça e olhando-me por cima das lunetas: – Segredo que qualquer um de nós dois conhece melhor que as palmas da própria mão!…
– Segredo que eu me prezo de possuir, como até hoje ninguém o conseguiu, declarei convicto.
E com esta frase me despedi e separei-me do Artur. Ele tomou para os lados de Botafogo, onde morava, e eu desci pela rua Guarda Velha.
Mal dera sozinho alguns passos, o tal sujeito de fraque cor de café com leite aproximou-se de mim, tocou-me no ombro, e disse-me com suma delicadeza:
– Perdão, cavalheiro! Queria desculpar interrompê-lo. Sei que vai estranhar o que lhe vou dizer, mas…
– Estou às suas ordens. Pode falar.
– É que ainda há pouco quando o senhor conversava com o seu amigo, afirmou a respeito da poesia certa cousa que muito e muito me interessa… Desejo que me explique…
Bonito! pensei eu. É algum parente ou algum admirador do conselheiro Otaviano, que vem tomar-me uma satisfação. Bem feito! Quem me manda a mim ter a língua tão comprida?…
– Entremos aqui no jardim da fábrica, propôs o meu interlocutor; tomaremos um copo de cerveja enquanto o senhor far-me-á o obséquio de esclarecer o ponto em questão.
O tom destas palavras tranqüilizou-me em parte. Concordei e fomos assentar-nos em volta de uma mesinha de ferro, defronte de dois chopes, por baixo de um pequeno grupo de palmeiras.
– O senhor, principiou o sujeito, depois de tomar dois goles do seu copo, declarou ainda há pouco que possui o segredo da poesia… Não é verdade?
Eu olhei para ele muito sério, sem conseguir perceber onde diabo queria o homem chegar.
Não é verdade? insistiu com empenho. Nega que ainda há pouco declarou possuir o segredo dos poetas?
– Gracejo!… Foi puro gracejo de minha parte… respondi, sorrindo modestamente. Aquilo foi para mexer com o Barreiros, que – aqui para nós – na prosa é um purista, mas que a respeito de poesia, não sabe distinguir um alexandrino de um decassílabo. Tanto ele como eu nunca fizemos versos; creia!
– Ó senhor! por quem é não negue! fale com franqueza!
– Mas juro-lhe que estou confessando a verdade…
– Não seja egoísta!
E o homem chegou a sua cadeira para junto de mim e segurou-me uma das mãos.
– Diga! suplicou ele, diga por amor de Deus qual é o tal segredo; e conte que, desde esse momento, o senhor terá em mim o seu amigo mais reconhecido e devotado!
– Mas, meu caro senhor, juro-lhe que…
O tipo interrompeu-me, tapando-me a boca com a mão, e exclamou deveras comovido:
– Ah! Se o senhor soubesse; se o senhor pudesse imaginar quanto tenho até hoje sofrido por causa disto!
– Disto o quê? A poesia?
– É verdade! Desde que me entendo, procuro a todo o instante fazer versos!… Mas qual! em vão consumo nessa luta de todos os dias os meus melhores esforços e as minhas mais profundas concentrações!… É inútil! Todavia, creia, senhor, o meu maior desejo, toda a ambição de minha alma, foi sempre, como hoje ainda, compor alguns versos, poucos que fossem, fracos muito embora; mas, com um milhão de raios! que fossem versos! e que rimassem! e que estivessem metrificados! e que dissessem alguma cousa!
– E nunca até hoje o conseguiu?… interroguei sinceramente pasmo.
– Nunca! Nunca! Se o metro não sai mau, é a idéia que não presta; e se a idéia é mais ou menos aceitável, em vão procuro a rima! A rima não chega nem à mão de Deus Padre! Ah! tem sido uma campanha! uma campanha sem tréguas! Não me farto de ler os mestres; sei de cor o compêndio do Castilho; trago na algibeira o Dicionário de consoantes; e não consigo um soneto, uma estrofe, uma quadra! Foi por isso que pensei cá comigo: “Quem sabe se haverá algum mistério, algum segredo, nisto de fazer versos?… algum segredo, de cuja posse dependa em rigor a faculdade de ser poeta?…” Ah! e o que não daria eu para alcançar semelhante segredo?… Matutava nisto justamente, quando o senhor, conversando com o seu amigo, afirmou que o segredo existe com efeito, e melhor ainda, que o senhor o possui, podendo por conseguinte transmiti-lo adiante!
– Perdão! Perdão! O senhor está enganado, eu…
– Oh! não negue! Não negue por quem é! O senhor tem fechada na mão a minha felicidade! Se não quer que eu enlouqueça confie-me o segredo! Peço-lhe! Suplico-lhe! Dou-lhe em troca a minha vida, se a exige!
– Mas, meu Deus! o senhor está completamente iludido… Não existe semelhante cousa!… Juro-lhe que não existe!
– Não seja mau! Não insista em recusar um obséquio que lhe custa tão pouco e que vale tanto para mim! Bem sei que há de prezar muito o seu segredo mas dou-lhe minha palavra de honra que me conservarei digno dele até à morte! Vamos! declare! fale! diga logo o que é, ou nunca mais o largarei! nunca mais o deixarei tranqüilo! Diga ou serei eternamente a sua sombra!
– Ora esta! Como quer que lhe diga que não sei de semelhante segredo?!
– Não mo negue por tudo o que o seu coração mais ama neste mundo!
– O senhor tomou a nuvem por Juno! Não compreendeu o sentido de minhas palavras!
– O segredo! O segredo! O segredo!
Perdi a paciência. Ergui-me e exclamei disposto a fugir:
– Quer saber o que mais?! Vá para o diabo que o carregue!
– Espere, senhor! Espere! Ouça-me por amor de Deus!
– Não me aborreça. Ora bolas!
– Hei de persegui-lo até alcançar o segredo!
* * *
E, como de fato, o tal sujeito acompanhou-me logo com tamanha insistência, que eu, para ver-me livre dele, prometi-lhe afinal que lhe havia de revelar o mistério.
No dia seguinte já lá estava o demônio do homem defronte da minha casa e não me largava a porta.
Para o restaurante, para o trabalho, para o teatro, para toda a parte, acompanhava-me aquele implacável fraque cor de café com leite, a pedir-me o segredo por todos os modos, de viva voz, por escrito e até por mímica, de longe.
Eu vivia já nervoso, doente com aquela obsessão. Cheguei a pensar em queixar-me à polícia ou empreender uma viagem.
Ocorreu-me porém, uma idéia feliz, e mal a tive disse ao tipo que estava resolvido a confiar-lhe o segredo.
Ele quase perdeu os sentidos de tão contente que ficou. Marcou-me logo uma entrevista em lugar seguro; e, à hora marcada, lá estávamos os dois.
Então que é?… perguntou-me o monstro, esfregando as mãos.
– Uma cousa muito simples, segredei-lhe eu. Para qualquer pessoa fazer bons versos, seja quem for, basta-lhe o seguinte: – Não pensar no macaco azul. – Está satisfeito?
– Não pensar no…
– Macaco azul.
– Macaco azul? O que é macaco azul…?
– Pergunta a quem não lhe sabe responder ao certo. Imagine um grande símio azul ferrete, com as pernas e os braços bem compridos, os olhos pequeninos, os dentes muito brancos, e aí tem o senhor o que é o macaco azul.
– Mas que há de comum entre esse mono e a poesia?…
– Tudo, visto que, enquanto o senhor estiver com a idéia no macaco azul, não pode compor um verso!
– Mas eu nunca pensei em semelhante bicho!…
– Parece-lhe; é que às vezes a gente está com ele na cabeça e não dá por isso.
– Pois hoje mesmo vou fazer a experiência… Ora quero ver se desta vez…
– Faça e verá.
* * *
No dia seguinte, o pobre homem entrou-me pela casa como um raio. Vinha furioso.
– Agora, gritou ele, é que o diabo do bicho não me larga mesmo! É pegar eu na pena, e aí está o maldito a dar-me voltas no miolo!
– Tenha paciência! Espere alerta a ocasião em que ele não lhe venha à idéia e aproveite-a logo para escrever seus versos.
– Ora! Antes o senhor nunca me falasse no tal bicho! Assim, nem só continuo a não fazer versos, como ainda quebro a cabeça de ver se consigo não pensar no demônio do macaco!
* * *
E foi nestas circunstâncias que Paulino me escreveu aquela carta.