Orações, Conto de João do Rio
Orações
– Que está você a vender?
– Orações, sim senhor.
– Novas?
– Uma nova, sim – a oração dos nove.
Era num canto de rua, por uma tarde de chuva. O pobre garoto, muito magro, com o pescoço muito comprido, sobraçava o maço de orações, a sorrir.
– Mas, criatura, a oração dos nove foi desmoralizada!
– E agora é que se vende mais. Olhe, eu hoje vendi quatrocentos folhetos. Só de oração dos nove, trezentos e vinte cinco.
Eu acredito nos prodígios. É uma opinião individual mas definitiva. Se a oração dos nove, depois de assustar toda a cidade e de incomodar o arcebispo, ainda continuava com um tão grande número de crentes, era porque tinha prodigiosas virtudes. Comprei a oração e estuguei o passo. Que é afinal uma oração? É um levantamento da alma a Deus com o desejo de o servir e gozar, e S. João de Damasco já a definia um pedido de coisas convenientes, com medo de que os fiéis pedissem também inconveniências. Aquele menino magro, naquela esquina de rua, era um dos insignificantes agentes desse tremendo micróbio da alma.
Si I’on en croit les savants
Pour qui toute la Nature
N’est qu’un bouillon de culture
Mortel aux pauvres vivants.
Quantas orações andam por aí impressas em folhetinhos maus,vendidas nas grandes livrarias e nos alfarrabistas, exportadas para a província em grossos maços, ou simplesmente manuscritas, de mão em mão, amarradas ao pescoço dos mortais em forma de breve! Há nessa estranha literatura edições raras, exemplares únicos que se compram a peso de ouro; orações árabes dos negros muçulmins, cuja tradução não se vende nem por cinqüenta mil réis; orações de pragas africanas, para dizer três vezes com um obi na boca; orações para todas as coisas possíveis e impossíveis. O homem é o animal que acredita – principalmente no absurdo. Levei muito tempo a colecionar essas súplicas bizarras. Há mais de mil: de S. Bento, de Santa Luzia, de Santa Helena, Monserrate, S. João Batista, Milagre de Jesus Cristo, Maria Eterna, Santa Bárbara, Menino Deus, Santa Catarina, Senhora do Socorro, Santa Teresa, S. Antônio, S. Jorge, Nossa Senhora da Guia, S. Marcos, S. Benedito, Santo Sepulcro, Nossa Senhora do Rosário, Magnificat, Anjo Custódio, S. Lourenço, S. Joaquim, S. Estevão, Bom Parto, Anunciação para defumar a casa, Santa Filomena, Conceição, S. Roque, S. Sebastião, S. Anastácio, S. Simão, Menino Deus contra o sol e o mar salgado, Maria Madalena, Dores, S. Pedro e S. Paulo, S. Emídio, S. Tiago pelos agonizantes, Sonhos de Nossa Senhora, Juízo Divinal, Perdão Eterno, Senhor dos Passos, S. Cosme e S. Damião, Nossa Senhora da Glória, que sei eu? Há até orações a santos que o Papa desconhece e nunca foram canonizados, como a oração de S. Gurmim, boa para a dor de calos, e a de S. Puiúna, infalível nas nevralgias. Os homens vivem no mistério das palavras conciliadoras.
Antes de nascer tem logo a oração do Bom Parto, em que se suplica à Virgem, apelando para o nascimento de Jesus, um bom sucesso. Toda a mulher que trouxer consigo esta oração no pescoço, rezando todos os dias 7 ave-marias, e uma salve-rainha, 7 dias antes de parir, terá sempre junto a seu leito a Virgem Santíssima do Bom Parto.
Acompanham-na a oração para a dentição e a de Nossa Senhora dos Remédios, logo depois de nascido. Quando já fala, decora a oração para ao deitar na cama: “Nesta cama me deito, desta cama me levanto, a Virgem Nossa Senhora me cubra com o seu manto. Se eu coberto com ele for não terei medo nem pavor, nem coisa que deste ou outro mundo for” e a oração para levantar da cama, que se pronuncia mesmo ao ruminar os mais horrendos delitos.
Depois começam os contratos extravagantes, as rezas covardes em que se lisonjeia os santos para obter deles altos favores e até clamorosas maldades. Têm a forma de padre-nossos, são às vezes assinadas por homenzinhos que as precedem de palavras contando o milagre do seu achado. Não há em todo esse baixo mundo de crença uma oração inteiramente altruística ou desfeita dos egoísmos terrenos. Só duas existem defendendo apenas a Igreja – a de S. Pedro e S. Paulo e a de S. Miguel, que por sinal começa neste violento estilo:
Ó arcanjo S. Miguel, meu poderoso protetor, a quem Deus onipotente encarregou a defesa geral de todos os homens, apesar de terem o Anjo da Guarda, e que sois capitão dos nove casos angélicos, cuja prerrogativa me animo a suplicar-vos que me perdoeis o atrevimento com que vos falo apontando-vos a relaxação, atrevimento, altivez e desenvoltura, falta de religião e vícios de que estão possuídos os corações cristãos…
As outras pedem pelo menos o céu, e estão neste caso modesto a do Rosário e a de São Benedito. Os autores, porém, prudentemente, numa nota à parte, comunicam aos crentes os bens de tais rezas:
Quem usar desta oração e rezar com viva fé, ao menos uma vez por semana, não será mordido por cão danado; se for à guerra não morrerá nem será vencido, não se afogará nem morrerá queimado, sua casa estará em paz, tudo lhe irá bem, os invejosos, os maus olhos, os mal intencionados, nem os que usam de maléficos e feitiçarias lhe farão dano algum.
E ainda por cima, se rezar umas ave-marias, terá indulgências.
As outras são verdadeiros requerimentos ou cartas de empenho.
O sujeito reza como vai ao ministro do Interior pedir um lugar de guarda-civil. A bajulação é quase idêntica. Diante do altar, a humanidade trata de viver da mesma maneira por que vive diante dos césares, dos senhores feudais ou do chefe de polícia.
Ó incomparável Senhora da Conceição Aparecida, mãe de meu Deus, Rainha dos Anjos, Advogada dos Pecadores. Refúgio e Consolação dos Aflitos e dos Atribulados ó Virgem Santíssima cheia de bondade, lançai sobre nós um olhar favorável.
E como um poeta sem emprego diante de um oligarca estadual:
Lembrai-vos, Clementíssima Mãe Aparecida, não constar de todos que a vós têm recorrido e implorado vossa singular proteção, fosse por vós algum abandonado. Animado por esta confiança, a vós recorro e vos tomo de hoje para sempre por minha mãe, minha protetora, minha consolação, meu guia…
Algumas, talvez duvidando do poder dos santos no ócio perpétuo do paraíso, vão diretamente a Deus, levando-os como simples advogados. Há, por exemplo, a oração de São Elesbão e Santa Efigênia reunidas não sei por quê. Pois bem. A oração começa assim:
Atendei, ó Deus onipotente, às nossas súplicas, e porque nos confessar réus de muitos pecados, permiti que sejamos absolvidos deles pelas intercessões dos gloriosos mártires S. Elesbão e Santa Efigênia e que o precioso sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo fiquemos lavado e relavado das nossas culpas; limpo e puro mais do que quando nascemos.
Esta petição é um modelo de lisonjearia, de adulação, de humildade postiça, de engrossamento ao velho potentado de todos os tempos, infinitamente multiplicado nesta democrática época de potentados! É o supra-sumo do rés-do-chão, é a flor perfeita da maneira de pedir!
Não são, entretanto, Santa Efigênia e São Elesbão os únicos atirados ao secundário papel de advogados, S. Jerônimo, advogado contra os tremores subterrâneos, também o é, tendo como compensação um hino.
Jerônimo santo, máximo penitente,
Rogai por nós a Deus eficazmente.
Jerônimo santo, sábio e forte,
Assiste-nos agora e na hora da morte.
E S. Simão, que livra do raio, não faz outra coisa senão pedir a Deus que fulmine apenas os pára-raios, e Santa Bárbara, coitada, logo que começa a trovejar tem que pedir a Deus menos barulho para não ouvir este hino fantástico:
Salve, virgem gloriosa
E Bárbara generosa
Do paraíso fresca rosa
Lírio de castidade
Salve ó virgem toda formosa
Lavada na fonte da castidade.
Mas as orações são antes de tudo um meio de remediar o mal. Que faz a oração de São Luís Gonzaga, praticada pelas meninas do Rio desde o tempo em que a Rua Teófilo Otoni era musicalmente a Rua das Violas? Remedeia os males de amor. Quando uma rapariga cai de joelhos e soluça:
Ó Luis santo, adorado de angélicos costumes, eu, indigníssima devota vossa, vos recomendo singularmente a castidade da minha alma e do meu corpo. Rogo por vossa angélica pureza que intercedais por mim ante o cordeiro imaculado Cristo Jesus e sua mãe Santíssima Virgem e que me preserveis de todo o passado grave, não permitindo que eu saia manchada com alguma nódoa de impureza…
Podeis ter a certeza, ó mortais, que a tentação anda no coração da donzela de tal forma que S. Luís, apesar de angélico e de santo, chegará fatalmente tarde para a salvar. E assim uma velha senhora solteira que recitar convictamente a oração de S. Lourenço:
Onipotente Deus, que ao Vosso bem-aventurado mártir S. Lourenço destes esforço para triunfar dos incêndios e dos seus tormentos, concedei que se extinga em nós o fogo…
Ah! Deus de bondade! esta pobre senhora, assim velha e assim solteira, está muito mal!
S. Luis e S. Lourenço, entretanto, gozam da relativa liberdade de vir quando querem. Santo Onofre porém, pequeno e barbadinho, vive estrangulado no cós das saias das senhoras para ouvir todas as manhãs esta suprema ironia súplice:
Meu glorioso Santo Onofre bispo, confessor de meu senhor Jesus Cristo, em Roma fostes aos pés do padre santo vos ajoelhar, pedistes pão para as solteiras, pão para as casadas, pão para as viúvas, pão para as donzelas. Pedi para mim também que sou sua inquilina. Meu glorioso Santo Onofre, vos peço que me deis comida para comer, roupa para vestir, dinheiro para gastar e graça para vos servir. Amém!
E Santo Onofre não protesta, não grita, não foge, como S. Silvestre, educado na humildade evangélica, tolera este lamentável pedido:
Valha-me o senhor S. Silvestre, pelas três camisas que veste, no ano de trinta e sete, matastes e feristes e abrandastes os corações dos mouros, as bocas das serpentes. Assim eu abrandarei o coração dos meus inimigos que venham ajoelhar-se aos meus pés, porque Deus que é Deus pode e acaba com tudo que quer, traga teu coração debaixo de teu pé esquerdo…
Que diz o venerável Santo a esse coração sem concordância pronominal metido miseravelmente debaixo de um pé? Talvez nem saiba a mísera crendice, e ande lá por cima no azul, esquecido da maldade humana…As almas, apesar de benditas, porém, já por aqui andaram, já sentiram o amor, o ciúme e o medo, e a oração que as incensa é também velhaca e cheia de sandices:
Minhas almas santas benditas, aquelas que são do mesmo senhor Jesus Cristo, por aquelas que morreram enforcadas, por aquelas três almas que morreram degoladas, por aquelas três almas que morreram a ferro frio, juntas todas três, todas seis a todas nove, para darem três pancadas no coração dos inimigos, que eles ficarão humildes a mim debaixo de paz e consolação, a ponto de terem olhos e não me ver, pernas e não me alcançarem, braços e não me agarrarem – para sempre e sem fim.
Os homens, à solta, no recato das alcovas deliram calmamente. Há gente que antes de sair reza a oração de S. Jorge, para não ser ofendida pelos seus inimigos, e a de Santa Catarina para alcançar o perdão dos pecados; há senhoras que aspergem os cantos da casa com água benta, dizendo a oração da bênção das casas, que consta de 382 palavras, e a oração de Santo Anastácio contra os demônios; há seres pensantes que trazem ao pescoço a oração de S. Roberto contra os feitiços, oração que, segundo o editor, estava junto a uma “milagrosa carta, achada em um lugar três léguas distante de S. Marcos, escrita com letras de ouro e pela mão de Deus Nosso Senhor, Filho da Virgem Maria”!
É pois natural que as almas não se ofendam com um mau pedido e que S. Marcos – pobre santo! sorria quando ouvia à meia-noite esta tremenda oração brava, que lembra as cenas de enfeitiçamento medievo:
Chamo S. Marcos e S. Manços e seu confidente o anjo mau em meu auxílio para se apoderar do meu espírito e vida, juntamente com a pessoa que desejo fazer o mal, ou bem e com o dedo polegar da mão esquerda faço três vezes o Sinal da Cruz e com uma faca de ponta espetada na porta da rua ou mesa, com um lenço ou guardanapo bem alvo direi as seguintes palavras: Cristo morreu, Cristo sofreu, Cristo padeceu: assim peço-vos meu glorioso São Marcos e São Manços que sofra e padeça os maiores tormentos e torturas deste mundo a pessoa que eu quero para mim e pegando na faca com toda a fé e coragem que me dá esta Oração darei quatro golpes na porta, ou mesa e pela quarta vez chamarei São Marcos e São Manços e o anjo mau, para me dar força e coragem de dizer: “Credo em Cruz” em círculo onde se acha a faca! Amém.”
Oh! o poder da palavra pronunciada misteriosamente! Os homens de todos os países, de todas as terras têm-lhe um terror sagrado. Essas orações ainda guardam um sentido mais ou menos claro. A maior parte porém é apenas um estranho jogo de disparates, uma trapalhada alucinante. Há uma oração contra o sol, que ao lê-la sente a gente a vertigem do desequilíbrio:
Deus quando pelo mundo andou muito sol e calor apanhou, encontrou com Nossa Senhora com que o sol se tiraria com um guardanapo de olhos e copo d’água fria. Sim, como falo verdade torna o sol a seu lugar, vai esta senhora pelo mar abaixo com o copinho de água fria, o mal que ela tem no corpo e na cabeça tire de Deus e da Virgem Maria.
É exatamente a maneira rítmica, o disparate deduzido dos literatos do Hospício e até hoje, se eu percebi que tais palavras são contra o calor, não me foi possível ainda saber o que quer dizer esta formidável oração do mar sagrado:
Mar sagrado, eu te venho salvar, a tua água te venho pedir para fortuna por Deus para minha casa levar; para que me dê ouro para guardar e prata para gastar, cobre para dar aos pobres.
Como exemplo de estilo desvairado há, entretanto, outras quase tão lindas como as poesias nefelibatas, pela sua dolorosa e obtusa ingenuidade. Está neste caso “O Perdão Eterno.”
S. José que caminhava com a Virgem Maria
Tanto caminha de noite como de dia
Abre a porta porteiro
Que aqui está a Virgem Maria
Não quis parir na cama
Nem na cortina.
Pariu na manjedoura
Onde o bento boi comia.
Desceram os anjos dos céus, cantando Ave Maria
Subiu para o céu rezando Santa Maria.
O eterno lhe perguntou, como ficou a parida?
Ficou coberto de ouro o seu bento filho
E o berço em que ele embalava era de ouro e latão
Aqui se acaba esta santa oração.
Quem esta oração rezar 7 sexta-feira, da paixão,
E outras tantas carnais,
Tem cem anos de perdão,
Se for seu pai, sua mãe, mais toda a sua geração.
Há na Ilíada um trecho muito citado e rico de verdades. Homero fala das orações e diz “As orações são filhas do grande Zeus, filho de Cronos. Capengas, zarolhas, feiarronas ocupam-se em seguir a fatalidade. A fatalidade é robusta e ágil. Vai muito adiante fazendo aos homens um mal que as orações remedeiam.” É destino do homem rezar, pedir o auxílio do desconhecido para o bem e para o mal, é sina deste pobre animal, mais carregado de trabalhos que qualquer outro bicho da terra ou do mar, ter medo e desconfiar das próprias forças. A fatalidade o vai conduzindo por caminhos que são despenhadeiros às vezes e campos de risos raramente. O homem chora, ergue os olhos para o azul do céu, a menor das suas ilusões povoa-o de forças invisíveis e fala, e pede, e suplica. Que importa que diga tolices ou frases lapidares, horrores ou pensamentos suaves? É preciso remediar a fatalidade.
E é por isso que enquanto existir na terra um farrapo de humanidade, esse farrapo será um moinho de orações.
É por isso, talvez, que os vendedores de orações acabam mais ou menos supersticiosos dessa superstição teimosa que acredita apesar de tudo; é por isso que um pobrezinho vendedor dessas fantasias do pavor ignorante não sai de casa sem recitar à estrela dos pastores estas precavidas frases:
Desta casa me
aparto em boa
paz boa viagem.
Deus adiante, a
bela cruz atrás eu no meio, altos e
montes para mim sejam. Oremos
bocas de cães e lobos sejam fecha-
das, tenham olhos e não me vejam,
tenham pernas e não me sigam
tenham boca e não me falem,
tenham braços
e não me pe-
guem, tão guar-
dado me vejam
como a Virgem
Maria guardou
o seu amado
filho desde as
portas de Be-
lém até Jeru-
salém. –
Amén…