quinta-feira, novembro 21, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasMário de Andrade

Piá não sofre? Sofre, Conto de Mário de Andrade

Piá não sofre? Sofre

(Os Contos de Belazarte)

Belazarte me contou:
Você inda está lembrado da Teresinha? aquela uma que assassinou dois homens por tabela, os manos Aldo e Tino, e ficou com dois filhos quando o marido foi pra correição?… Parece que o sacrifício do marido tirou o mau-olhado que ela tinha: foi desinfeliz como nenhuma, porém ninguém mais assassinou por causa dela, ninguém mais penou. Só que o Alfredo lá ficou no palácio chique da Penitenciária, ruminando os vinte anos de prisão que a companheira fatalizada tinha feito ele engolir. Injustiça, amargura, desejo… tantas coisas que muito bucho não sabe digerir com paciência, resultado: o Alfredo teve uma dessas indigestões tamanhas de desespero que ficou dos hóspedes mais incômodos da Penitenciária. Ninguém gostava dele, e o amargoso atravessava o tempo do castigo num areião difícil e sem fim de castiguinhos. Estou perdendo tempo com ele.
A Teresinha sofria, coitada! ainda semiboa no corpo e com a pabulagem de muitos querendo intimidades com ela ao menos por uma noite paga. Recusou, de primeiro pensando no Alfredo gostado, em seguida pensando no Alfredo assassino. Estava já no quase, porém vinha sempre aquela ideia do Alfredo saindo da correição com uma faca nova pra destripá-la. E a virtude se conservava num susto frio, sem nenhum gosto de existir. Teresinha voltava pra casa com uma raiva desempregada, que logo descarregava na primeira coisa mais frouxa que ela. Enxergava a mãe morrendo em pé por causa da velhice temporã, pondo cinco minutos pra recolher uma ceroula do coaral, pronto: atirava a trouxa de roupa-suja na velha:
— A senhora é capaz que vai dormir com a ceroula na mão!
Entrava. Podia-se chamar de casa aquilo! Era um rancho de tropeiro onde ninguém não mora, de tão sujo. Dois aspectos de cadeira, a mesa, a cama. No assoalho havia mais um colchão, morado pelas baratas que de noite dançavam na cara da velha o torê natural dos bichinhos desta vida.
No outro quarto ninguém dormia. Ficou feito cozinha dessa família passando muitas vezes dois dias sem fósforo acendido. Porque fósforo aceso quer dizer carvão no fogãozinho portátil e algum desses alimentos de se cozinhar. E muitas vezes não havia alimento de se cozinhar… Mas isso não fazia mal pro dicionário da Teresinha e da mãe, fogareiro não estava ali? E o dicionário delas dera pra aqueles estreitos metros cúbicos de ar mofado o nome estapafúrdio de cozinha.
Nessa espécie de tapera a moça vivia com a mãe e o filhote de sobra. De sobra em todos os sentidos, sim. Sobrava porque afinal amor pra Teresinha, meu Deus! vivendo entre injustiças de toda a sorte, desejando homem pro corpo e não tendo, se esquecendo do Alfredo gostado pelo Alfredo ameaçando e já com morte na consciência… E só tendo na mão consolada pela água pura, ceroulas, calças, meias com mais de sete dias de corpo suado… E além do mais, odiando uns fregueses sempre devendo a semana retrasada… Tudo isso a Teresinha aguentava. E pra tampar duma vez todos os vinhos do amor, inda por cima chegava a peste da sogra amaldiçoada, odiada mas desejada por causa dos dez mil-réis deixados mensalmente ali. A figlia dum cane vinha, emproada porque tinha de seu aí pra uns trinta contos, nem sei, e desbaratava com ela por um nadinha.
Podia ter amor uma mulher já feita, com trinta anos de seca no prazer, corpo cearense e alma ida-se embora desde muito!… E o Paulino, faziam já quase quatro anos, dos oito meses de vida até agora, que não sabia o que era calor de peito com seio, dois braços apertando a gente, uma palavra “figliuolo mio” vinda em cima dessa gostosura, e a mesma boca enfim se aproximando da nossa cara, se ajuntando num chupão leve que faz bulha tão doce, beijo de nossa mãe…
Paulino sobrava naquela casa.
E sobrava tanto mais, que o esperto do maninho mais velho, quando viu que tudo ia mesmo por água a baixo, teve um anjo-da-guarda caridoso que depositou na língua do felizardo o micróbio do tifo. Micróbio foi pra barriguinha dele, agarrou tendo filho e mais filho a milhões por hora, e nem passaram duas noites, havia lá por dentro um footing tal da microbiada marchadeira, que o asfaltinho das tripas se gastou. E o desbatizado foi pro limbo dos pagãos sem culpa. Sobrou Paulino.
É lógico que ele não podia inda saber que estava sobrando assim tanto neste mundo duro, porém sabia muito bem que naquela casa não sobrava nada pra comer. Foi crescendo na fome, a fome era o alimento dele. Sem pôr consciência nos mistérios do corpo, ele acordava assustado. Era o anjo… que anjo-da-guarda! era o anjo da malvadeza que acordava Paulino altas horas pra ele não morrer. O desgraçadinho abria os olhos na escuridão cheirando ruim do quarto, e inda meio que percebia que estava se devorando por dentro. De primeiro ele chorava.
— Stá zito, guaglion!
Que “stá zito” nada! Fome vinha apertando… Paulino se levantava nas pernas de arco, e balanceando chegava afinal junto à cama da mãe. Cama… A cama grande ela vendeu quando esteve uma vez com a corda na garganta por causa do médico pedindo aquilo ou vinte bagarotes pela cura do pé arruinado. Deu os vinte vendendo a cama. Cortou o colchão pelo meio e botou a metade sobre aqueles três caixões. Essa era a cama.
Teresinha acordava da fadiga com a mãozinha do filho batendo na cara dela. Ficava desesperada de raiva. Atirava a mão no escuro, acertasse onde acertasse, nos olhos, na boca-do-estômago, pláa!… Paulino rolava longe com uma vontade legítima de botar a boca no mundo. Porém o corpo lembrava duma feita em que a choradeira fizera o salto do tamanco vir parar mesmo na boca dele, perdia o gosto de berrar. Ficava choramingando tão manso que até embalava o sono da Teresinha. Pequenininho, redondo, encolhido, talqualmente tatuzinho de jardim.
O sofrimento era tanto que acabava desprezando os pinicões da fome, Paulino adormecia de dor. De madrugada, o tempo esfriando acordava o corpo dele outra vez. Meio esquecido, Paulino espantava de se ver dormindo no assoalho, longe do colchão da vó. Estava com uma dorzinha no ombro, outra dorzinha no joelho, outra dorzinha na testa, direito no lugar encostado no chão. Percebia muito pouco as dorzinhas, por causa da dor guaçu do frio. Engatinhava medroso, porque a escureza estava já toda animada com as assombrações da aurora, abrindo e fechando o olho das frestas. Espantava as baratas e se aninhava no calor ilusório dos ossos da avó. Não dormia mais.
Afinal, ali pelas seis horas, já familiarizado com a vida por causa dos padeiros, dos leiteiros, dos homens cheios de comidas que passavam lá longe, um calor custoso nascia no corpo de Paulino. Porém a mãe também já estava acordando com as bulhas da vida. Sentada, vibrando com a sensualidade matinal que bota a gente louco de vontade, a Teresinha quase se arrebentava, apertando os braços contra a peitaria, o ventre e tudo, forçando tanto uma perna contra a outra que sentia uma dor nos rins. Nascia nela esse ódio impaciente e sem destino, que vem da muita virtude conservada a custo de muita miséria, virtude que ela mesma estava certa, mais dia menos dia tinha de se acabar. Procurava o tamanco, dando logo o estrilo com a mãe, “si não sabia que não era mais hora de estar na cama”, que fosse botar água na tina, etc.
Então Paulino, antes das duas mulheres, abandonava o calor nascente do corpo. Ia já rondar a cozinha porque estava chegando o momento mais feliz da vida dele: o pedaço de pão. E que domingo pra Paulino quando, porque um freguês pagou, porque a sogra apareceu, coisa assim, além do pão, bebiam café com açúcar!… Chupava depressa, queimando a língua e os beicinhos brancos, aquela água quente, sublime de gostosa por causa duma pitadinha de café. E saía comer o pão lá fora.
Na frente da casa não, era lá que ficavam a torneira, as tinas e o coaral. As mulheres estavam fazendo suas lavagens de roupa e era ali na piririca: briga e descompostura o tempo todo. Quem pagava era o reinação do Paulino. Acabava sempre com um pão mal comido e algum cocre de inhapa bem no alto do coco, doendo fino.
Deixou de ir para lá. Abria a porta só encostada da cozinha, descia o degrau, ia correcorrendo se rir pra alegria do frio companheiro, por entre os tufos de capim e as primeiras moitas de carrapicho. Esse matinho atrás da casa era a floresta. Ali Paulino curtia as penas sem disfarce. Sentado na terra ou dando com o calcanhar nos olhos dos formigueiros, principiava comendo. De repente quase caía levantando a perninha, ai! do chão, pra matar a saúva ferrada no tornozelinho de bico. Erguia o pão caído e recomeçava o almoço, achando graça no requetreque que a areia ficada no pão, ganzava agora nos dentinhos dele.
Mas não esquecia da saúva não. Pão acabado, surgia, distraindo a fome nova, o guerreiro crila. Procurava uma lasca de pau, ia caçar formigas no matinho. Afinal, matinho não muito pequeno porque dava atrás na várzea, e não havia senão um lembrete de cerca fechando o terreno. Mas nunca Paulino penetrou na várzea que era grande demais pra ele. Lhe bastava aquele matinho gigante, sem planta com nome, onde o sol mais preguiça nunca deixava de entrar.
Graveto em punho lá ia em busca de saúva. As formiguinhas menores, não se importava com elas não. Só arremetia contra saúva. Quando achava uma, perseguia-a paciente, rompendo entre os ramos entrançados dos arbustos, donde muitas vezes voltava com a mão, a perna ardendo por ter relado nalgum mandarová. Trazia a saúva pro largo e levava horas brincando com a desgraçadinha, até a desgraçadinha morrer.
Quando ela morria, o sofrimento recomeçava pra Paulino, era fome. O sol já estava alto, porém Paulino sabia que só depois das fábricas apitarem havia de ter feijão com arroz nos tempos ricos, ou novo pedaço de pão nos tempos felizmente mais raros. Batia uma fome triste nele que outra saúva combatida não conseguia distrair mais. Banzava na desgraça, melancolizado com a repetição do sofrimento cotidiano. Sentava em qualquer coisa, descansando a bochecha na mão, cabeça torcidinha, todo penaroso. Afinal, nalguma sombra rendada, aprendeu a dormir de fome. Adormecia. Sonhava não. As moscas vinham lhe bordando de asas e zumbidos a boquinha aberta, onde um resto de adocicado ficou. Paulino dormindo fecha de repente os beiços caceteados, se mexe, abre um pouco as perninhas encolhidas e mija quente em si.
Sono curto. Acordou muito antes das fábricas apitarem. Mastigou a boca esfomeada, recolheu com a língua os sucos perdidos nos beiços. Requetreque de areia e uma coisinha meia doce no paladar. Tirou com a mão pra ver o que era, eram duas moscas. Moscas sim, porém era meio adocicado. Tornou a botar as moscas na língua, chupou o gostinho delas, engoliu.
Foi assim o princípio dum disfarce da fome por meio de todas as coisas engulíveis do matinho. Não tardou muito e virou “papista” como se diz: trocou a caça das saúvas pelos piqueniques de terra molhada. Comer formiga então…
Junto dos montinhos dos formigueiros encostava a cara no chão com a língua pronta. Quando formiga aparecia, Paulino largava a língua hábil, grudava nela a formiga, e a esfregando no céu-da-boca sentia um redondinho infinitesimal. Punha o redondinho entre os dentes, trincava e engolia o guspe ilusório. E que ventura se topava com alguma correição! De gatinhas, com o fiofó espiando as nuvens, lambia o chão tamanduamente. Apagava uma carreira viva de formiga em três tempos.
Nessa esperança de matar a fome, Paulino foi descendo a coisas nojentas. Isto é, descendo, não. Era incapaz de pôr jerarquia no nojo, e até o último comestível inventado foi formiga. Porém não posso negar que uma vez até uma barata… Agarrou e foi-se embora mastigando, mais inocente que vós, filhos dos nojos. Porém, compreende-se: eram alimentos que não davam sustância nenhuma. Fábrica apitava e o arroz-com-feijão vinha achar Paulino empanturrado de ilusões, sem fome. Pegou aniquilando, escurecendo que nem dia de inverno.
Teresinha não reparava. O buçal da virtude estava já tão gasto que via-se o momento da moça desembestar livre, vida fora. Foi o tempo em que tapa choveu por todas as partes de Paulino cegamente, caísse onde caísse. Quando ela vinha pra casa já escutava a companhia do Fernandez, carroceiro. Era um mancebo de boa tradição, desempenado, meio lerdo, porém com muita energia. Devia de ter vinte-e-cinco anos, se tinha! e se engraçou pela envelhecida, quem quiser saiba por que. Buçal arrebentou. Quando ele pôde carregar a trouxa pra ela, veio até a casa, entrou que nem visita, e Teresinha ofereceu café e consentimento. A velha, sujando a língua com os palavrões mais incompreensíveis, foi dormir na cozinha com Paulino espantado.
Em todo caso a boia melhorou, e o barrigudinho conheceu o segredo da macarronada. Só que tinha muito medo do homem. Fernandez fizera uma festinha pra ele na primeira aparição, e quando saiu do quarto de-manhã e beberam café todos juntos, Paulino confiado foi brincar com a perna comprida do homem. Mas tomou com um safanão que o fez andar de orelha murcha um tempo.
E lógico que a sogra havia de saber daquilo, soube e veio. Teresinha muito fingida falou bom-dia pra ela e a mulatona respondeu com duas pedras na mão. Porém agora Teresinha não carecia mais da outra e refricou, assanhada feito irara. Bateboca tremendo! Paulino nem tinha pernas pra abrir o pala dali, porque a velha apontava pra ele, falando “meu neto” que mais “meu neto” sem parada. E mandava que Teresinha agora se arranjasse, porque não estava pra sustentar cachorrice de italiana acueirada com espanhol. Teresinha secundava gritando que espanhol era muito mais melhor que brasileiro, sabe! sua filha de negro! mãe de assassino! Não careço da senhora, sabe! mulata! mulatona! mãe de assassino!
— Mãe de assassino é tu, sua porca! Tu que fez meu filho sê infeliz, maldiçoada do diabo, carcamana porca!
— Saia já daqui, mãe de assassino! A senhora nunca se amolou com seu neto, agora vem com prosa aí! Leve seu neto se quiser!
— Pois levo mesmo! coitadinho do inocente que não sabe a mãe que tem, sua porca! porca!
Suspendeu Paulino esperneando, e lá se foi batendo salto, ajeitando o xale de domingo, por entre as curiosas raras do meidia. Inda virou, aproveitando a assistência, pra mostrar como era boa:
— Escute! Vocês agora, não pago mais aluguel de casa pra ninguém, ouviu! Protegi você porque era mulher de meu filho desgraçado, mas não tou pra dar pouso pra égua, não!
Mas a Teresinha, louca de ódio, já estava olhando em torno pra encontrar um pau, alguma coisa que matasse a mulatona. Esta achou melhor partir duma vez, triunfante ploque ploque.
Paulino ia ondulando por cima daquelas carnes quentes. Chorava assustado, não tendo mais noção da vida, porque a rua nunca vista, muita gente, aquela mulher estranha e ele sem mãe, sem pão, sem matinho, sem vó… não sabia mais nada! meu Deus! como era desgraçado! Teve um medo pavoroso no corpinho azul. Inda por cima não podia chorar à vontade porque reparara muito bem, a velha tinha um sapatão com salto muito grande, pior que tamanco. Devia de ser tão doído aquele salto batendo no dentinho, rasgando o beiço da gente… E Paulino horrorizado enfiava quase as mãozinhas na boca, inventando até bem artisticamente a função da surdina.
— Pobre de meu neto!
Com a mão grande e bem quente pegou na cabecinha dele, ajeitando-a no pescoço de borracha. Carregado gostoso naqueles braços bons, com o xale dando inda mais quentura pra gente ser feliz… E a velha olhou pra ele com olhos de piedade confortante… Meu Deus! que seria aquilo tão gostoso!… É assomo de ternura, Paulino. A velha apertou-o no peito abraçando, encostou a cara na dele, e depois deu beijos, beijos, revelando pro piá esse mistério maior.
Paulino quis sossegar. Pela primeira vez na vida o conceito de futuro se alargou até o dia seguinte na ideia dele. Paulino sentiu que estava protegido, e no dia seguinte havia de ter café-com-açúcar na certa. Pois a velha não chegara a boca ajuntada bem na cara dele e não dera aquele chupão que barulhava bom? Dera. E a ideia de Paulino se encompridou até o dia seguinte, imaginando um canecão do tamanho da velha, cheinho de café-com-açúcar. Foi se rir pras duas lágrimas piedosas dela, porém bem no meio da gota apareceu uma botina que foi crescendo, foi crescendo e ficou com um tacão do tamanho da velha. Paulino reprincipiou chorando baixo, que nem nas noites em que o acalanto da manha embalava o sono da Teresinha.
— Ara! também agora basta de chorar! Ande um pouco, vamos!
O salto da botina encompridou enormemente e era a chaminé do outro lado da rua. O pranto de Paulino parou, mas parou engasgado de terror. Chegaram.
Esta era uma casa de verdade. Entrava-se no jardinzinho com flor, que até dava vontade de arrancar as sempre-vivas todas, e, subida a escadinha, havia uma sala com dois retratos grandes na parede. Um homem e uma mulher que era a velha. Cadeiras, uma cadeira grande cabendo muita gente nela. Na mesinha do meio um vaso com uma flor cor-de-rosa que nunca murchou. E aquelas toalhinhas brancas nas cadeiras e na mesa, que devia distrair a gente cortando tantas bolotinhas…
O resto da casa assombrou desse mesmo jeito o despatriado. Depois apareceram mais duas moças muito lindas, que sempre viveram de saia azul-marinho e blusa branca. Olharam duras pra ele. Aqueles quatro olhos negros desceram lá do alto e tuque! deram um cocre na alma de Paulino. Ele ficou tonto, sem movimento, grudado no chão.
Daí foi uma discussão terrível. Não sei o que a velha falou, e uma das normalistas respondeu atravessado. A velha asperejou com ela falando no “meu neto”. A outra respondeu gritando e uma tormenta de “meu neto” e “seu neto” relampagueou alto sobre a cabeça de Paulino. A história foi piorando. Quando não teve mais agudos pras três vozes subirem, a velha virou um bofete na filha da frente, e a outra fugindo escapou de levar com a colher bem no coco.
A invenção de Paulino não podia ajuntar mais terrores. E o engraçado é que o terror pela primeira vez despertou mais a inteligência dele. O conceito de futuro que fazia pouco atingira até o dia seguinte, se alongou, se alongou até demais, e Paulino percebeu que entre raivas e maus-tratos havia de passar agora o dia seguinte inteiro e o outro dia seguinte e outro, e nunca mais haviam de parar os dias seguintes assim. É lógico: sem ter a soma dos números, mais de três mil anos de dias seguintes sofridos, se ajuntaram no susto do piá.
— Vá erguer aquela colher!
As metades do arco se moveram ninguém sabe como, Paulino levantou a colher do chão que deu pra velha. Ela guardou a colher e foi lá dentro. A varanda ficou vazia. Estava tudo arranjado, e as sombras da tarde rápida entravam apagando as coisas desconhecidas. Só a mesa do centro inda existia nitidamente, riscada de vermelho e branco. Paulino foi se encostar na perna dela. Tremia de medo. Chiava um cheiro gostoso lá dentro, e da sombra da varanda um barulhinho monótono, tique-taque, regulava as sensações da gente. Paulino sentou no chão. Uma calma grande foi cobrindo o pensamento aniquilado: estava livre do tacão da velha. Ela não era que nem a mãe não. Quando tinha raiva não atirava botina, atirava uma colher levinha, brilhando de prateada. Paulino se encolheu deitado, encostando a cabeça no chão. Estava com um sono enorme de tanto cansaço nos sentimentos. Não havia mais perigo de receber com tamanco no dentinho, a mulatona só atirava aquela colher prateada. E Paulino ignorava se colher doía muito, batendo na gente. Adormeceu bem calmo.
— Levante! que é isso agora! Como esse menino deve ter sofrido, Margot! Olhe a magreira dele!
— Pudera! com a mãe na gandaia, festando dia e noite, você queria o que, então!
— Margot… você sabe bem certo o que quer dizer puta, hein? Eu acho que a gente pode falar que Paulino é filho-da-puta, não?
Se riram.
— Margot!
— Senhora!
— Mande Paulino aqui pra dar comida pra ele!
— Vá lá dentro, menino!
As pernas de arco balançaram mais rápidas. Uma cozinha em que a gente não podia nem se mexer. A velha boa inda puxou o capacho da porta com o pé:
— Sente aí e coma tudo, ouviu!
Era arroz-com-feijão. A carne, Paulino viu com olho comprido ela desaparecer na porta da varanda. Menino de quatro anos não come carne, decerto imaginou a velha, meia em dificuldades sempre com a educação das filhas.
E a vida mudou de misérias pra Paulino, mas continuou a sempre miserável. Boia melhorou muito e não faltava mais, porém Paulino estava sendo perseguido pelos vícios do matinho. Nunca mais a mulatona teve daqueles assomos de ternura do primeiro dia, era uma dessas cujo mecanismo de vida não difere muito do cumprimento do dever. Aquele beijo fora sincero, mas apenas dentro das convenções da tragédia. Tragédia acabara e com ela a ternura também. E no entanto ficara muito em Paulino a saudade dos beijos…
Quis se chegar pras moças porém elas tinham raiva dele, e podendo, beliscavam. Assim mesmo a mais moça, que era uma curiosa do apá virado e nunca tirava as notas de Margot na escola, Nininha, é que tomara pra si dar banho no Paulino. Quando chegava no sábado, o pequeno meio espantado e muito com medo de beliscão, sentia as carícias dum rosto lindo em fogo se esfregando no corpinho dele. Acabava sempre aquilo, a menina com uma raiva bruta, vestindo depressa a camisolinha nele, machucando, “fica direito, peste!” pronto: um beliscão que doía tanto, meu Deus!
Paulino descia a escada da cozinha, ia muito jururu pelo corredorzinho que dava no jardim da frente, puxava com esforço o portão sempre encostado, sentava, punha a mão na bochecha, cabecinha torcida pro lado e ficava ali, vendo o mundo passar.
E assim, entre beliscões e palavras duras que ele não entendia nada, “menino fogueto”, “filho de assassino”, ele também passava feito o mundo: magro escuro terroso, cada vez se aniquilando mais. Mas o que que havia de fazer? Bebia o café e já falavam que fosse comer o pão no quintal senão, porco! sujava a casa toda. Ia pro quintal, e a terra estava tão úmida, era uma tentação danada! Nem ele punha reparo que era uma tentação porque nenhum cocre, nenhuma colherada, o proibira de comer terra. Treque-trrleque, mastigava um bocadinho, engolia, mastigava outro bocadinho, engolia. E ali pelas dez horas sempre, com a pressa das normalistas assombrando a calma da vida, tinha que assentar naquele capacho pinicando, tinha que engolir aquele feijão-com-arroz num fastio impossível…
— Minha Nossa Senhora, esse menino não come! Ói só com que cara ele olha pra comida! Pra que que tu suja a cara de terra desse jeito, hein, seu porcalhão!
Paulino assustava, e o instinto fazia ele engolir em seco esperando a colherada nunca vinda. Porém desta vez a velha tivera uma iluminação no mecanismo:
— Será que!… Você anda comendo terra, não! Deixe ver!
Puxou Paulino pra porta da cozinha, e com aquelas duas mãos enormes, queimando de quentes:
— Abra a boca, menino!
E arregaçava os beiços dele. Terra nos dentinhos, na gengiva.
— Abra a boca, já falei!
E o dedo escancarava a boquinha terrenta, língua aparecendo até a raiz, todinha da cor do barro. A sova que Paulino levou nem se conta! Principiou com o tapa na boca aberta, que até deu um som engraçado, bóo! e não posso falar como acabou de tanta mistura de cocre beliscão palmadas. E palavreado, que afinal pra criancinha é tabefe também.
Então é que principiou o maior martírio de Paulino. Dentro da casa, nenhuma queria que ele ficasse, tinha mesmo que morar no quintal. Antes do pão porém, já vinha uma sova de ameaças, tão dura, palavra-de-honra: Paulino descia a escadinha completamente abobado, sentindo o mundo bater nele. E agora?…
Pão acabou e a terra estava ali toda oferecida chamando. Mas aquelas três beliscadoras não queriam que ele comesse a terra gostosa… Oh tentação pro pobre santantoninho! queria comer e não podia. Podia, mas depois lá vinha de hora em hora o dedão da velha furando a boquinha dele… Como?… Não como?… Fugia da tentação, subia a escadinha, ficava no alto sentado, botando os olhos na parede pra não ver. E a terra sempre chamando ali mesmo, boa, inteirinha dele, cinco degraus fáceis em baixo…
Felizmente não sofreu muito não. Três dias depois, não sei se brincou na porta com os meninos de frente, apareceu tossindo. Tosse aumentou, foi aumentando, e afinal Paulino escutou a velha falar, fula de contrariedade, que era tosse-de-cachorro. Se haviam de levar o menino no médico, em vez, vamos dar pra ele o xarope que dona Emília ensinou. Nem xarope de dona Emília, nem os cinco mil-réis ficados no boticário mais chué do bairro sararam o coitadinho. Tinha mesmo de esperar a doença, de tanto não encontrando mais sonoridade pra tossir, ir-se embora sozinha.
O coitado nem bem sentia a garganta arranhando, já botava as mãozinhas na cabeça, inquieto muito! engolindo apressado pra ver se passava. Ia procurando parede pra encostar, vinha o acesso. Babando, olho babando, nariz babando, boca aberta não sabendo fechar mais, babando numa conta. O coitadinho sentava no lugar onde estava, fosse onde fosse porque senão caía mesmo. Cadeira girava, mesa girava, cheiro de cozinha girava. Paulino enjoado atordoado, quebrado no corpo todo.
— Coitado. Olhe, vá tossir lá fora, você está sujando todo o chão, vá!
Ele arranjava jeito de criar força no medo, ia. Vinha outro acesso, e Paulino deitava, boca beijando a terra mas agora sem nenhuma vontade de comer nada. Um tempo estirado passava. Paulino sempre na mesma posição. Corpo nem doía mais, de tanto abatimento, cabeça não pensando mais, de tanto choque aguentado. Ficava ali, e a umidade da terra ia piorar a tosse e havia de matar Paulino. Mas afinal aparecia uma forcinha, e vontade de levantar. Vai levantando. Vontade de entrar. Mas podia sujar a casa e vinha o beliscão no peitinho dele. E não valia de nada mesmo, porque mandavam ele pra fora outra vez…
Era de-tarde, e os operários passavam naquela porção de bondes… enfim divertia um bocado pelo menos os olhos ramelosos. Paulino foi sentar no portão da frente. A noite caía agitando vida. Um ventinho poento de abril vinha botar a mão na cara da gente, delicado. O sol se agarrando na crista longe da várzea, manchava de vermelho e verde o espaço fatigado. Os grupos de operários passando ficavam quase negros contra a luz. Tudo estava muito claro e preto, incompreensível. Os monstros corriam escuros, com moços dependurados nos estribos, badalando uma polvadeira vermelha na calçada. Gente, mais monstros e os cavalões nas bonitas carroças.
Nesse momento a Teresinha passou. Vinha nuns trinques, só vendo! sapato amarelado e meia roseando uma perna linda mostrada até o joelho. Por cima um vestido azul claro mais lindo que o céu de abril. Por cima a cara da mamãe, que beleza! com aquele cabelo escuro fazendo um birote luzido, e os bandós azulando de napolitano o moreno afogueado pelas cores de Paris.
Paulino se levantou sem saber, com uma burundanga inexplicável de instintos festivos no corpo, “Mamma!” que ele gritou. Teresinha virou chamada, era o figliuolo. Não sei o que despencou na consciência dela, correu ajoelhando a sedinha na calçada, e num transporte, machucando bem delicioso até, apertou Paulino contra os peitos cheios. E Teresinha chorou porque afinal das contas ela também era muito infeliz. Fernandez dera o fora nela, e a indecisa tinha moçado duma vez. Vendo Paulino sujo, aniquiladinho, sentiu toda a infelicidade própria, e meia que desacostumou de repente da vida enfeitada que andava levando, chorou.
Só depois é que sofreu pelo filho, horroroso de magro e mais frágil que a virtude. Decerto estava sofrendo com a mulatona da avó… Um segundo matutou levar Paulino consigo. Porém, escondendo de si mesma o pensamento, era incontestável que Paulino havia de ser um trambolho pau nas pândegas. Então olhou a roupinha dele. De fazenda boa não era, mas enfim sempre servia.
Agarrou nesse disfarce que apagava a consciência, “meu filho está bem tratado”, pra não pensar mais nele nunca mais. Deu um beijo na boquinha molhada de gosma ainda, procurou engolir a lágrima, “figliuolo”, não foi possível, apertou muito, beijou muito. Foi-se embora arranjando o vestido.
Paulino de-pezinho, sem um gesto, sem um movimento, viu afinal lá longe o vestido azul desaparecer. Virou o rostinho. Havia um pedaço de papel de embrulho, todo engordurado, rolando engraçado no chão. Dar três passos pra pegá-lo… Nem valia a pena. Sentou de novo no degrau. As cores da tarde iam cinzando mansas. Paulino encostou a bochecha na palminha da mão e meio enxergando, meio escutando, numa indiferença exausta, ficou assim. Até a gosma escorria da boca aberta na mão dele. Depois pingava na camisolinha. Que era escura pra não sujar.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

 
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