domingo, novembro 24, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasMário de Andrade

Túmulo, túmulo, túmulo, Conto de Mário de Andrade

Túmulo, túmulo, túmulo

(Os Contos de Belazarte)

Belazarte me contou:
Caso triste foi o que sucedeu lá em casa mesmo… Eu sempre falo que a gente deve ser enérgico, nunca desanimar, que se entregar é covardia, porém quando a coisa desanda mesmo não tem vontade, não tem paciência que faça desgraça parar.
Um tempo andei mais endinheirado, com emprego bom e inda por cima arranjando sempre uns biscates por aí, que me deixavam viver à larga. Dinheiro faz cócega em bolso de brasileiro, enquanto não se gasta não há meios de sossegar, pois imaginei ter um criado só pra mim. Achava gostoso esses pedaços de cinema: o dono vai saindo, vem o criado com chapéu e bengala na mão, “Prudêncio, hoje não boio em casa, querendo sair, pode. ‘Té logo”. “’Té logo, seu Belazarte.”
Veio um criado mas eu não simpatizava com ele não. Sei lá se percebeu? uma noite pediu a conta e dei graças. Levei uns pares de dias assim, até que indo ver uns terrenos longe, estava no mesmo banco do bonde um tiziu extraordinário de simpático. Que olhos sossegados! você não imagina. Adoçavam tudo que nem verso de Rilke. Desci matutando, vi os terrenos, peguei o bonde que voltava. Instinto é uma curiosidade: quando o condutor veio cobrar a passagem e percebi que era o mesmo da ida, tive a certeza que o negrinho havia de estar no carro. Olhei para trás, pois não é que estava mesmo! Encontrei os olhos dele, dito e feito: senti uma doçura por dentro uma calma lenta, pensei: está aí, disso é que você carece pra criado. Mudei de banco e meio juruviá puxei conversa:
— Me diga uma coisa, você não sabe por acaso de algum moço que queira ser meu criado? Mas quero brasileiro e preto.
Riu manso, apalpando a vista com a pálpebra. Me olhou, respondendo com voz silenciosa, essa mesma de gente que não pensa nem viveu passado:
— Tem eu, sim senhor. O senhor querendo…
— Eu, eu quero sim, por que não havia de querer? Quanto você pede? Etc. E ele entrou pro meu serviço.
Quando indaguei o nome dele, falou que chamava Ellis.
Ellis era preto, já disse… Mas uma boniteza de pretura como nunca eu tinha visto assim. Como linhas até que não era essas coisas, meio nhato, porém aquela cor elevava o meu criado a tipo-de-beleza da raça tizia. Com dezenove anos sem nem um poucadico de barba, a epiderme de Ellis era um esplendor. Não brilhava mas não brilhava nada mesmo! Nem que ele estivesse trabalhando pesado, suor corria, ficava o risco da gota feito rastinho de lesma e só. Bastava que lavasse a cara, pronto: voltava o preto opaco outra vez. Era doce, aveludado o preto de Ellis… A gente se punha matutando que havia de ser bom passar a mão naquela cor humilde, mão que andou todo o dia apertando passe-bem de muito branco emproado e filho-da-mãe. Ellis trazia o cabelo sempre bem roçado, arredondando o coco. Pixaim fininho, tão fofo que era ver piri de beira-rio. Beiço, não se percebia, negro também. Só mesmo o olhar amarelado, cor de ólio de babosa, é que descansava no meio daquela igualdade perfeita. E verdade que os dentes eram brancos, mas isso raramente se enxergava, porque Ellis tinha um sorriso apenas entreaberto. Estava muito igualado com o movimento da miséria pra andar mostrando gengiva a cada passo. A gente tinha impressão de que nada o espantava mais, e que Ellis via tudo preto, do mesmo preto exato da epiderme.
Como criado, manda a justiça contar que ele não foi inteiramente o que a gente está acostumado a chamar de criado bom. Não é que fosse ruim não, porém tinha seus carnegões, moleza chegou ali, parou. Limpava bem as coisas mas levava uma vida pra limpar esta janela. E depois deu de sair muito, não tinha noite que ficasse em casa. Mas no sentido de criado moral, Ellis foi sublime. De inteira confiança, discreto, e sobretudo amigo. Quando eu asperejava com ele, escutava tudo num desaponto que só vendo. Sei que eu desbaratava, ia desbaratando, ia ficando sem assunto pra desbaratar, meio com dó daquele tão humilde que, a gente percebia, não tinha feito nada por mal. Acabava sendo eu mesmo a discutir comigo:
— Sei bem que de tanto lavar copo vem um dia em que um escapole da mão…
Está bom, veja se não quebra mais, ouviu?
— Sei, seu Belazarte.
E ficava esperando, jururu que fazia dó. Eu é que encafifava. Com aquele olho-de-pomba me seguindo, arrulhando pelo meu corpo numa bulha penarosa de carinho batido, eu nem sabia o que fazer. Pegava numa gravata, reparando que tinha pegado nela só pra gesticular, largava da gravata, arranja cabelo, arranja não-sei-o-quê, acabava sempre descobrindo poeira na roupa, uma mancha, qualquer coisa assim:
— Ellis, me limpe isto.
Ele vinha chegando meio encolhido e limpava. Então olho-de-babosa pousava em minha justiça, tremendo:
— Está bom assim, seu Belazarte?
— Está. Pode ir.
Ia. Porém ficava rondando. Mesmo que fosse lá no andar térreo trabalhar, me levava no pensamento, ia imaginando um jeito de me agradar. E não tinha mais parada nos agradinhos discretos enquanto eu não ria pra ele. Então gengiva aparecia. Quando chegava de noite já sabe, vinha pedindo pra ir no cinema, eu tinha pena, deixava. E quantas vezes ainda não acabei dando dinheiro pro cinema!
Nesse andar é lógico que eu mesmo estava fazendo arte de ficar sem criado. Foi o que sucedeu. Ellis tomou conta de mim duma vez. Piorar, piorou não, mas já estava difícil de dizer quem era o criado de nós dois. Sim, porque, afinal das contas quem que é o criado? quem serve ou quem não pode mais passar sem o serviço, digo mais, sem a companhia do outro?
— Ellis, você já sabe ler?… Uhm… acho que vou ensinar francês pra você, porque se um dia eu for pra Europa, não vou sem você.
— Se seu Belazarte for, eu vou também.
Sempre com o mesmo respeito. Às vezes eu chegava em casa sorumbático, moído com a trabalheira do dia, Ellis não falava nada, nem vinha com amolação, porém não arredava pé de mim, descobrindo o que eu queria pra fazer. Foi uma dessas vezes que escutei ele falando no portão pra um companheiro:
— Hoje não, seu Belazarte carece de mim.
Até achei graça. E principiei verificando que aquilo não tinha jeito mais, Ellis não trabalhava. Estava tomando um lugar muito grande em minha vida. Pois então vamos fazer alguma coisa pelo futuro dele, decidi. Entramos os dois numa explicação que me abateu, por causa dos sentimentos desencontrados que me percorreram. Ellis me confessou que pensava mesmo em ser chofer, mas não tinha dinheiro pra tirar a carta. Tive ciúmes, palavra. Secretamente eu achava que ele devia só pensar em ser meu criado. Mas venci o sentimento besta e falei que isso era o de menos, porque eu emprestava os cobres. Só que não pude vencer a fraqueza e, com pretexto de esclarecer, ajuntei:
— Você pense bem, decida e volte me falar. Chofer é bom, dá bem, só que é ofício perigoso e já tem muito chofer por aí.
Muitas vezes a gente imagina que faz um giro e faz mas é um jirau. Enfim, tudo isso é com você. Já falei que ajudo, ajudo.
Foi então que ele me confessou que precisava ganhar mais porque estava com vontade de casar.
— Ellis, mas que idade você tem, Ellis!
— Dezanove, sim senhor.
— Puxa! e você já quer casar!
Deu aquele sorriso entreaberto, sossegado:
— Gente pobre carece casar cedo, seu Belazarte, senão vira que nem cachorro sem dono.
Não entendi logo a comparação. Ellis esclareceu:
— Pois é: cachorro sem dono não vive comendo lixo dos outros?… Meio que me despeitava também, isso do Ellis gostar de mais outra pessoa que do patrão, porém já sei me livrar com facilidade destes egoísmos. Perguntei quem era a moça.
— É tizia que nem eu mesmo, seu Belazarte. Se chama Dora. Encabulou, tocando na namorada. Falei mais uma vez pra ele pensar bem no que ia fazer e me comunicasse.
Dias depois ele veio:
— Seu Belazarte… andei matutando no que o senhor me falou, semana atrás…
— Resolveu?
— Pois então a gente pode fazer uma coisa: espero o dia-dos-anos do senhor e depois saio.
Tive um despeito machucando. Decerto fui duro:
— Está bom, Ellis.
Não se mexeu. Depois de algum tempo, muito baixinho:
— Seu Belazarte…
— O que é.
— Mas… seu Belazarte… eu quero sair por bem da casa do senhor… até a Dora me falou que… me falou que decerto o senhor aceitava ser nosso padrinho…
Custou ele falar de tanta comoção. Olhei pra ele. O ólio de babosa destilava duas lágrimas negras no pretume liso. Me comovi também.
— Sai por bem, é lógico! Não tenho queixa nenhuma de você.
— Quando o senhor quiser alguma coisa, me chame que eu venho fazer. O senhor foi muito bom para mim…
— Não fui bom, Ellis, fui como devia porque você também foi direito.
Botei a mão no ombro dele pra sossegar o comovido soluçante, estava engasgado, o pobre!… Sem se esperar, rápido, virou a cara de lado, encolheu o ombro, beijou minha mão, partiu fechando a porta.
Já me sentava outra vez, pensando naquele beijo que fazia a minha mão tão recompensada por toda a humanidade, a porta abriu de leve. E ele, não se mostrando:
— Seu Belazarte, o senhor não falou que aceitava…
Até me ri.
— Aceito, Ellis! Quando que você casa?
— Se arranjar licença logo, caso no 8 de dezembro, sim senhor, dia da Virgem Maria.
Não me logrou, porém logrou a Virgem Maria. Saiu de casa dias depois do meu aniversário, e nem bem dona República fez anos, casou com a Dora, num dia claro que parecia querer durar a vida inteira. Cheguei do casamento com uma felicidade artística dentro de mim. Você não imagina que coisa mais bonita Ellis e Dora juntos! Mulatinha lisa, lisa, cor de ouro, isto é, cor de ólio de babosa, cor dos olhos de Ellis! E nos olhos então todo esse pretume impossível que o medo põe na cor do mato à noite. Você decerto que já reparou: a gente vê uns olhos de menina boa e jura: “Palavra que nunca vi olho tão preto”, vai ver? quando muito olho é cor de fumo de Mapingui. É o receio da gente que bota escureza temível nos olhos desses nossos pecados… Que gostosa a Dora!
Era uma pretarana de cabelo acolchoado e corpo de potranquinha independente. Tinha um jeito de não-querer, muito fiteiro, um dengue meio fatigado oscilando na brisa, tinha uma fineza de S espichado, que fazia ela parecer maior do que era, uma graça flexível… Nem sei bem o que é que o corpo dela tinha, só sei que espantava tanto o desejo da gente, que desejo ficava de boca aberta, extasiado, sem gesto, deixando respeitosamente ela passar por entre toda a cristandade… Dora linda!
Ellis desapareceu uns meses e me esqueci dele. A vida é tão bondosa que nunca senti falta de ninguém. Reapareceu. Foi engraçado até. Me levantei tarde, desci pra beber meu mate, Ellis no hol, encerando.
— Bom-dia, seu Belazarte.
— Ué! que que você está fazendo aqui!
— Dona Mariquinha me chamou pra limpar a casa.
— Mas você não está trabalhando então!
— Trabalho, sim senhor, mas a vida anda mesmo dura, seu Belazarte, a gente carece de ir pegando o que acha.
A fúria de casar borrara os sonhos do chofer. Vivia de pedreiro. Mamãe encontrou com ele e se lembrou de dar esse dinheiro semanal pro mendigo quase. Um Ellis esmolambado, todo sujo de cal. Dora andava com muito enjoo, coisa do filho vindo. Não trabalhava mais. Ellis com pouco serviço. Estava magro e bem mais feio. De repente uma semana não apareceu. Que é, que não é, afinal veio uma conhecida contar que Ellis tinha adoecido de resfriado, estava tossindo muito, aparecendo uns caroços do lado da cara. Quando vi ele até assustei, era um caroção medonho, parecendo abscesso. Foi no dentista, não sei… dentista andou engambelando Ellis um sem-fim de tempo, começou aparecendo novo caroço do outro lado da cara. Mamãe imaginou que era anemia. Mandamos Ellis no médico de casa, com recomendação. Resultado: estava fraquíssimo do peito e se não tomasse cuidado, bom!
Calvário começou. Ele não sabia bem o que havia de fazer, eu também não podia estar recolhendo dois em casa. Inda mais doentes! Vacas magras também estavam pastando no meu campo nesse tempo… Foi uma tristeza. Ellis andou de cá pra lá, fazendo tudo e não fazendo nada. Mandou buscar a mãe, que vivia numa chacrinha emprestada em Botucatu, foram morar todos juntos na lonjura da Casa Verde, diz que pra criar galinha e por causa do ar bom. Não arranjaram nada com as galinhas nem com os ares. Vieram pra cidade outra vez. Foram morar perto de casa, num porão, depois eu vi o porão, que coisa! Todos morando no buraco de tatu, Ellis, Dora, a mãe dele e mais dois gafanhotinhos concebidos de passagem.
Ellis voltara pra pedreiro, encerava nossa casa e outras que arranjamos, andou consertando esgotos, depois na Companhia de Gás… Não tinha parada, emagrecendo, não se descobriu remédio que acabasse inteiramente com os caroços.
Meio rindo, meio sério, nem eram bem sete da manhã, um dia apareceu contando que era pai. Vinha participar e:
— Seu Belazarte, vinha também saber se o senhor queria ser padrinho do tiziu, o senhor já está servindo de meu tudo mesmo.
Falei que sim, meio sem gostar nem desgostar, estava já me acostumando. Dei vinte mil-réis. Mamãe, que era a madrinha, andou indo lá no porão deles, arranjando roupas de lã pro desgraçadinho novo.
Nem semana depois, chego em casa e mamãe me conta que Dora tinha adoecido. Pedi pra ela ir lá outra vez, ela foi. Mandamos médico. Dora piorou do dia pra noite, e morreu quem a gente menos imaginava que morresse. Número um.
Agora sim, e a criança? É verdade que a mãe do Ellis tinha inda filho de peito, desmamou o safadinho que já estava errando língua portuguesa, e o leite dela foi mudando de porão.
O dia do batizado, sofri um desses desgostos, fatigantes pra mim que vivo reparando nas coisas. Primeiro quis que o menino se chamasse Benedito, nome abençoado de todos os escravos sinceros, porém a mãe do Ellis resmungou que a gente não devia desrespeitar vontade de morto, que Dora queria que o filho chamasse Armando ou Luís Carlos. Então pus autoridade na questão e cedendo um pouco também, acabamos carimbando o desgraçadinho com o título de Luís.
Havia muita lembrança de Dora naquilo tudo, há só dois dias que ela adormecera. Fizemos logo o batizado porque o menino estava muito aniquiladinho.
Engraçado o Ellis… Até hoje não me arrisco a entender bem qual era o sentimento dele pela Dora. Quando veio me comunicar a morte da pobre, até parecia que eu gostava mais dela, com este meu jeito de ficar logo num pasmo danado, sucedendo coisa triste.
— Dora morreu, seu Belazarte.
— Morreu, Ellis!
Nem posto explicar com quanto sentimento gritei. Ellis também não estava sossegado não, mas parecia mais incapacidade de sofrer que tristeza verdadeira. O amarelão dos olhos ficara rodeado dum branco vazio. Dora ia fazer falta física pra ele, como é que havia de ser agora com os desejos? Isso é que está me parecendo foi o sofrimento perguntado do Ellis. E pra decidir duma vez a indecisão, ele vinha pra mim cuja amizade compensava. E seria mesmo por amizade? Aqui nem a gente pode saber mais, de tanto que os interesses se misturavam no gesto, e determinavam a fuga de Ellis pra junto de mim. Eu era amigo dele, não tinha dúvida, porém numa ocasião como aquela não é muito de amigo que a gente precisa não, é mais de pessoa que saiba as coisas. Eu sabia as coisas, e havia de arranjar um jeito de acomodar a interrogação.
…e quem diz que na amizade também não existe esse interesse de ajutório?… Existe, só que mais bonito que no amor, porque interesse está longe do corpo, é mistério da vida silenciosa espiritual.
Depois, amor… É inútil os pernósticos estarem inventando coisas atrapalhadas pra encherem o amor de trezentas auroras-boreais ou caem no domínio da amizade, que também pode existir entre bigode e seios, ou então principiam sutilizando os gestos físicos do amor, caem na bandalheira. Observando, feito eu, amor de sem-educação, a gente percebe mesmo que nele não tem metafísica: uma escolha proveniente do sentimento que a babosa recebe dum corpo estranho, e em seguida furrum-fum-fum. A força do amor é que ele pode ser ao mesmo tempo amizade. Mas tudo o que existe de bonito nele, não vem dele não, vem da amizade grudada nele. Amor quando enxerga defeito no objeto amado, cega: “Não faz mal!” Mas o amigo sente: “Eu perdoo você.” Isso é que é sublime no amigo, essa repartição contínua de si mesmo, coisa humana profundamente, que faz a gente viver duplicado, se repartindo num casal de espíritos amantes que vão, feito passarinhos de voo baixo, pairando rente ao chão sem tocar nele…
Dora era corpo só. E uma bondade inconsciente. Eu não tinha corpo mas era protetor. E principalmente era o que sabia as coisas. Desta vez amor não se uniu com amizade: o amor foi pra Dora, a amizade pra mim. Natural que o Ellis procedesse dessa forma, sendo um frouxo.
Batizado fatigante. Não paga a pena a gente imaginar que todos somos iguais, besteira! Mamãe, por causa da muita religião, imagina que somos. Inventou de convidar Ellis, mãe e tutti quanti pra comer um doce em nossa casa, vieram. Foi um ridículo oprimente pra nós os superiores, e deprimente pra eles os desinfelizes. Estavam esquerdos, cheios de mãos, não sabendo pegar na xicra. E eu então! Qualquer gesto que a gente faz, pegar no pão, na bolacha, pronto: já é diferente por classe da maneira, igualzinha muitas vezes, com que o pobre pega nessas coisas. Parece lição. A gente fica temendo rebaixar o outro e também já não sabe pegar na xicra mais. Custei pra inventar umas frases engraçadas, depois reparei que não tinham graça nenhuma por causa da Dora se dependurando nelas, não deixando a graça rir. De repente fui-me embora.
Não levou nem semana, o desgraçadinho pegou mirrando mais, mirrando e esticou. Número dois.
Ellis nem pôde tratar do enterro. Não é que estivesse penando muito, mas o caroço tinha dado de crescer no lado esquerdo agora. Na véspera tivera uma vertigem, ninguém sabe por que, junto do filho morrendo. Foi pra cama com febrão de quarenta-e-um no corpo tremido.
Era a tuberculose galopante que, sem nenhum respeito pelas regras da cidade, estava fazendo cento-e-vinte por hora na raia daquele peito apertado. Quando Ellis soube, virou meu filho duma vez. Mandava contar tudo pra mim. Mas não sei por que delicadeza sublime, por que invenção de amizade, descobriu que não me dou bem com a tísica. O certo é que nunca me mandou pedir pra ir vê-lo. Fui. Fui, também uma vez só, de passagem, falando que estava na hora de ir pro trabalho. Mas não deixei faltar nada pra ele. Nada do que eu podia dar, está claro, leite de vacas magras.
Durou três meses, nem isso, onze semanas em que me parece foi feliz. Sim, porque virara criança, e talvez pela primeira vez na vida, inventava essas pequenas faceirices com que a gente negaceia o amor daqueles por quem se sabe amado. Mantimento, remédios, roupa, tudo minha mãe é que providenciava pra ele, conforme desejo meu. Pois de supetão vinha um pedido engraçado, que Ellis queria comer sopa da minha casa, que se eu não podia mandar pra ele uma meia igualzinha àquela que usara no batizado do desgraçadinho, com lista amarela, outra roxa até em cima… Uma feita mandou pedir de emprestado a almofada que eu tinha no meu estúdio e que, ele mandou dizer, até já estava bem velha. E lógico que almofada foi, porém dadinha duma vez.
Da minha parte era tudo agora gestos mecânicos de protetor, meu Deus! como a vida esperada se mecaniza… Não sei… Ellis creio que não, mas eu já fazia muito que estava acostumado a sentir Ellis morto. E aquela espera da morte já pra mim era bem uma morte longa, um andar na gandaia dentro da morte, que não me dava mais que uma saudade cômoda do passado. Era amigo dele, juro, mas Ellis estava morto, e com a morte não se tem direito de contar na vida viva. Ele, isso eu soube depois, ele sim, estava vivendo essa morte já chegada, numa contemplação sublime do passado, única realidade pra ele. Dora tinha sido uma função. A vida prática não fora senão comer, dormir, trabalhar. No que se agarraria aquele morto em férias? Em mim, é lógico. Isso eu soube depois…
Levava o dia falando no amigo, pensando no amigo. E todas aquelas faceirices de pedidos e vontadinhas de criança, não passavam de jeitos de se recordar mais objetivamente de mim. De se aproximar de mim, que não ia vê-lo.
Cheguei em casa pra almoçar, a mãe do Ellis viera dizer que ele estava me chamando, não gostei nada. Se agora ele principiava pedindo mais isso, eu que tenho um bruto horror de tísica… Enfim mandei a criada lá, que depois do almoço ia.
Quando cheguei na porta, os uivos da mãe dele me deram a notícia inesperada. Sim, inesperada, porque já estava acostumado a ficar esperando e perdera a noção de que o esperado havia mesmo de vir. Entrei. Estavam uma italianona vermelha de tanto choro por tabela e dois tizius fumando.
— Morreu!
— Ahm, su Beladzarte, tanto que o povero está chamando o sinhore!
— Mas já morreu, é!
— Que esperandza! desde manhãzinha está cham…
— Onde ele está?
Um dos tizius.
— Está lá dentro, sim senhor.
Jogou o cigarro e foi mostrando caminho. Segui atrás. Pulei por cima dos uivos saindo duma furna que nunca viu dia, e lá numa sala mais larga, com entrada em arco sem porta dando pro quintal interior, num canto invisível, chorava uma vela, era ali. Ellis vasquejava com as borlas dos caroços dependurados pros lados, medonho de magro. Estava morrendo desde manhã, sempre chamando por mim.
— Mas por que não me avisaram!
Eram não sei quantas vezes que agarravam a vela nas mãos dele já em cruz, pra sempre fantasiadas de morte. De repente soluço parava. O moribundo engolia em seco e pegava me chamando outra vez. Afinal parara de chamar fazia mais de hora. Parece que a coisa estava chegando. Falei baixo, sem querer, me acomodando com o silêncio da morte:
— Ellis… ôh Ellis!
Nada. Só o respiro serrando na madeira seca da garganta. Os outros me olhavam, esperando o bem que eu ia fazer pro coitado. Até parecia que o importante ali era eu. Insisti, lutando com a amizade da morte, mais uniforme que a minha. Com mentira e tudo, até me parece que eu insistia mais pra vencer a predominância da morte, e aqueles assistentes não me verem perder numa luta. Botei a mão na testa morna de Ellis, havia de me sentir.
— Ellis! sou eu, Ellis!… Sossegue que já cheguei, ouviu! Estou juntinho de você, ouviu!… Ellis!
O soluço parou.
— Pronto! Ansim que está fatchendo desde de manhán, ô povero!,.. Tira áa vela, Maria!
— Deixe a vela, ôh Ellis!
Ellis abriu as pálpebras, principiou abrindo, parecia que não parava mais de as abrir. Ficaram escancaradas, mas ólio de babosa não vê que escorrendo mais! pupilas fixas, retas, frechando o teto preto. Pus minha cara onde elas me focalizassem.
— Estou aqui, Ellis! Não tenha medo! você está me enxergando, hein!
— Está sim, seu Belazarte. Viu! desde manhã que está de olho fechado. Ele queria muito be… bem o senhor! também… também o senhor tem sido muito bom pro coitado… de meu filho, ai!… aaai! meu filho está morrendo, ahn! ahn! ahn!…
— Ellis! você está precisando de alguma coisa, hein! Eu faço!
A gelatina me recebia sem brilhar. As pálpebras foram cerrando um bocado.
Instintivamente apressei a fala, pra que os olhos inda recebessem meu carinho:
— Eu faço tudo pra você! não quero que te falte nada, ouviu bem! Os olhos se esconderam de todo com muita calma.
— Meu filho morreu! ai, ai!… Aaai!…
Tive um momento de desespero porque Ellis não dava sinal de me sentir. Insisti mais, ajoelhando junto da cama.
— Ora, o que é isso, Ellis!… — ahan… só falava no senhor, ahn… ontem mesmo disse pra mim, ahan, que, ahn, melhorando cavava um poço… fundo, aáin… pra enterrar todos os mi… micróbios pra despois, pedir pra morar, ahn… no porão da casa do senhor… aai!
— Levem ela! não vale a pena ele estar escutando esse choro!
Transportaram os uivos. Estaria escutando ainda? Insisti numa esperança exacerbada pela anedota da negra, sem querer, perverso, voz pura, doce de carícia:
— Ellis! você não me responde mesmo! Abriu um pouco os olhos outra vez. Me via!
…foi tão humilde que nem teve o egoísmo de sustentar contra mim a indiferença da morte. O olhar dele teve uma palpitação franca pra mim. Ellis me obedecia ainda com esse olhar. Fosse por amizade, fosse por servilismo, obedeceu. Isso me fez confundir extraordinariamente com os manejos da vida, a morte dele.
Desapareceu mistério, fatalidade, tudo o que havia de grandioso nela. Foi uma morte familiar. Foi uma morte nossa, entre amigos, direitinho aquele dia em que resolvemos, meu aniversário passado, ele ir buscar o casamento e a choferagem de ganhar mais.
Cerrava os olhos calmo. Pesei a mão no corpo dele pra que me sentisse bem. Ao menos assim, Ellis ficava seguro de que tinha ao pé dele o amigo que sabia as coisas. Então não o deixaria sofrer. Porque sabia as coisas…
Número três.
 

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

 
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