Um capricho, Conto de Artur Azevedo
Um capricho
Em Mar de Espanha havia um velho fazendeiro, viúvo que tinha uma filha muito tola, muito mal-educada, e, sobretudo, muito caprichosa. Chamava-se Zulmira.
Um bom rapaz, que era empregado no comércio da localidade, achava-a bonita, e como estivesse apaixonado por ela, não lhe descobria o menor defeito.
Perguntou-lhe uma vez se consentia que ele fosse pedi-la ao pai.
A moça exigiu dois dias para refletir.
Vencido o prazo, respondeu:
— Consinto, sob uma pequena condição.
— Qual?
— Que o seu nome seja impresso.
— Como?
— É um capricho.
— Ah!
— Enquanto não vir o seu nome em letra redonda, não quero que me peça.
— Mas isso é a coisa mais fácil…
— Não tanto como supõe. Note que não se trata da assinatura, mas do seu nome. É preciso que não seja coisa sua.
Epidauro, que assim se chamava o namorado, parecia ter compreendido. Zulmira acrescentou:
— Arranje-se!
E repetiu:
— É um capricho.
Epidauro aceitou, resignado, a singular condição, e foi para casa.
Aí chegado, deitou-se ao comprido na cama, e, contemplando as pontas dos sapatos, começou a imaginar por que meios e modos faria publicar o seu nome.
Depois de meia hora de cogitação, assentou em escrever uma correspondência anônima para certo periódico da
Corte, dando-lhe graciosamente notícias de Mar de Espanha.
Mas o pobre namorado tinha que lutar com duas dificuldades: a primeira é que em Mar de Espanha nada sucedera digno de menção; a segunda estava em como encaixar o seu nome na correspondência.
Afinal conseguiu encher duas tiras de papel de notícias deste jaez!
“Consta-nos que o Reverendíssimo Padre Fulano, vigário desta freguesia, passa para a de tal parte.”
“O Ilmo Sr. Dr. Beltrano, juiz de direito desta comarca, completou anteontem 43 anos de idade. Sua Santidade, que se acha muito bem conservado, reuniu em sua casa alguns amigos.”
“Tem chovido bastante estes últimos dias”, etc.
Entre essas modestas novidades, o correspondente espontâneo, depois de vencer um pequenino escrúpulo, escreveu:
“O nosso amigo Epidauro Pamplona tenciona estabelecer-se por conta própria.”
Devidamente selada e lacrada, a correspondência seguiu, mas…
Mas não foi publicada.
***
O pobre rapaz resolveu tomar um expediente e o trem de ferro.
— À Corte! à Corte! dizia ele consigo; ali, por fás ou por nefas, há de ser impresso o meu nome!
E veio para a Corte.
Da estação central dirigiu-se imediatamente ao escritório de uma folha diária, e formulou graves queixas contra o serviço da estrada de ferro. Rematou dizendo:
— Pode dizer, Sr. redator, que sou eu o informante.
— Mas quem é o senhor? perguntou-lhe o redator, molhando uma pena; o seu nome?
— Epidauro Pamplona.
O jornalista escreveu; o queixoso teve um sorriso de esperança.
— Bem. Se for preciso, cá fica o seu nome.
Queria ver-se livre dele; no dia seguinte, nem mesmo a queixa veio a lume.
Epidauro não desesperou.
Outra folha abriu uma subscrição não sei para que vítimas; publicava todos os dias a relação dos contribuintes.
— Que bela ocasião! murmurou o obscuro Pamplona.
E foi levar cinco mil-réis à redação.
Com tão má letra, porém, assinou, e tão pouco cuidado tiveram na revisão das provas, que saiu:
Epifânio Peixoto 5$000.
Epidauro teve vergonha de pedir errata, e assinou mais 2$000.
Saiu:
“Com a quantia de 2$, que um cavalheiro ontem assinou, perfaz a subscrição tal a quantia de tanto que hoje entregamos, etc.
Está fechada a subscrição.”
***
Uma reflexão de Epidauro:
Oh! Se eu me chamasse José da Silva! Qualquer nome igual que se publicasse, embora não fosse o meu, poderia servir-me! Mas eu sou o único Epidauro Pamplona…
E era.
Daí, talvez, o capricho de Zulmira.
***
Uma folha caricata costumava responder às pessoas que lhe mandavam artigos declarando os respectivos nomes no Expediente.
Epidauro mandou uns versos, e que versos! A resposta dizia: “Sr. E. P. Não seja tolo.”
***
Como último recurso, Epidauro apoderou-se de um queijo de Minas à porta de uma venda e deitou a fugir como quem não pretendia evitar os urbanos, que apareceram logo. O próprio gatuno foi o primeiro a apitar.
Levaram-no para uma estação de polícia. O oficial de serviço ficou muito admirado de que um moço tão bem trajado furtasse um queijo, como um reles larápio.
Estudantadas… refletiu o militar; e, voltando-se para o detido:
— O seu nome?
— Epidauro Pamplona! bradou com triunfo o namorado de Zulmira.
O oficial acendeu um cigarro e disse num tom paternal:
— Está bem, está bem. Sr. Plampona. Vejo que é um moço decente — que cedeu a alguma rapaziada.
Ele quis protestar.
— Eu sei o que isso é! atalhou o oficial. De uma vez em que saí de súcia com uns camaradas meus pela Rua do Ouvidor, tiramos à sorte qual de nós havia de furtar uma lata de goiabada à porta de uma confeitaria. Já lá vão muitos anos.
E noutro tom:
— Vá-se embora, moço, e trate de evitar as más companhias.
— Mas…
— Descanse, o seu nome não será publicado.
Não havia réplica possível; demais, Epidauro era por natureza tímido.
O seu nome, escrito entre os dos vagabundos e ratoneiros, era uma arma poderosíssima que forjava contra os rigores de Zulmira; dir-Ihe-ia:
— Impuseste-me uma condição que bastante me custou a cumprir. Vê o que fez de mim o teu capricho!
***
Quando Epidauro saiu da estação, estava resolvido a tudo!
A matar um homem, se preciso fosse, contanto que lhe publicassem as dezesseis letras do nome!
***
Lembrou-se de prestar exame na Instrução Pública.
O resultado seria publicado no dia seguinte.
E, com efeito, foi: “Houve um reprovado.”
Era ele!
Tudo falhava.
***
Procurou muitos outros meios, o pobre Pamplona, para fazer imprimir o seu nome; mas tantas contrariedades o acompanharam nesse desejo que jamais conseguiu realizá-lo.
Escusado é dizer que nunca se atreveu a matar ninguém.
A última tentativa não foi a menos original.
Epidauro lia sempre nos jornais:
“Durante a semana finda, Sua Majestade, o Imperador foi cumprimentado pelas seguintes pessoas, etc.”
Lembrou-se também de ir cumprimentar Sua Majestade.
— Chego ao paço, pensou ele, dirijo-me ao Imperador, e digo-lhe: — Um humilde súdito vem cumprimentar Vossa
Majestade, — e saio.
Mandou fazer casaca; mas, no dia em que devia ir a Cristóvão, teve febre e caiu de cama.
***
Voltemos a Mar de Espanha:
Zulmira está sentada ao pé do pai. Acaba de contar-lhe a que impôs a Epidauro. O velho fazendeiro ri-se a bandeiras despregadas.
Entra um pajem.
Traz o Jornal do Comércio, que tinha ido buscar à agência de correio.
A moça percorre a folha, e vê, afinal, publicado o nome de Epidauro Pamplona.
— Coitado! murmura tristemente, e passa o jornal ao velho.
— É no obituário:
“Epidauro Pamplona, 23 anos, solteiro, mineiro. — Febre perniciosa.”
O fazendeiro, que é estúpido por excelência, acrescenta:
— Coitado! foi a primeira vez que viu publicado o seu nome.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)