Uma aposta, Conto de Artur Azevedo
Uma aposta
Se o Simplício Comes não fosse um rapaz do nosso tempo, se não usasse calças brancas, paletó de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria ideia de um desses quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diríamos:
“Ele gostava de Dudu”; tratando-se, porém, do Simplício Comes, empregaremos esta expressão menos familiar: “Ele amava Edviges.”
O seu amor tinha, realmente, alguma coisa de puro e de ideal, que não se compadecia com os costumes de hoje.
Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele nunca lho disse, nunca se atreveu a dizer-lhe, não por timidez ou respeito, mas simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.
Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em família — mas era tão feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado.
Ele não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para que a situação se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda aquela solicitude a um afeto desinteressado.
Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não fosse o do meio soldo e o montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exército que viveu sempre desprotegido, porque não sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplício Gomes, sem fumaças de protetor, e dando a esmola com ares de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo.
Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atenções de família.
O caso é que o Simplício Comes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:
— Aposto que hoje chove!
— Que ideia! O dia está bonito!
— Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda a certeza!
— Não temos!
— Façamos uma aposta!
— Valeu! Se chover eu perco uma caixa de charutos.
— E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre-Dame e cobiçou tanto.
— Quem lhe disse que cobicei?
— Ora, esses olhos não me enganam.
No dia seguinte Dudu recebia a blusa.
A velha costumava dizer com muita ingenuidade:
— Você faz mal em apostas, Simplício! — muito caipora, perde sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!
Conquanto não se atrevesse a falar em casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela ideia de que, quando menos se pensasse, Dudu teria um namorado… um noivo… um marido. E, efetivamente, não se passou muito tempo que os seus receios não se realizassem.
Dudu impressionou-se por um cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente escrevendo-lhe, graças à cumplicidade de um molecote da casa.
Depois de receber três cartas, Dudu contestou, convenceu-se de que as intenções do namorado eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente consultou o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este, que já havia notado as idas e vindas do transeunte suspeito, disfarçou o mais que pôde os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras.
A velha, com toda a sua simplicidade, pediu-lhe que se informasse da idoneidade do pretendente, e o mísero logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.
Foram desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser um pouco genioso.
O Simplício, que não tinha o altruísmo heroico de Cirano de Bergerac, não avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu, e começou a frequentar a casa.
O coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos vistos; perdeu o apetite, ficou macambúzio, fúnebre… Dudu, que tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos, mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente.
Entretanto, o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto era não deixá-la sozinha com o tal Bandeira enquanto não se casassem.
O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só genioso, mas de uma arrogância, de uma empáfia, de um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu.
Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo:
— Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.
— Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho — replicou Dudu, sem se levantar do canapé.
— Já lhe disse que tenho o que fazer! Peço-lhe que vá desde já se habituando a não contrariar as minhas vontades!
Olhe que, depois de casado, hei de sair quantas vezes quiser sem dar satisfações a ninguém
— Bom; não precisa zangar-se.
— Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!
— Faz bem. Adeus. Até quando?
— Até amanhã ou depois.
O Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplício Comes e saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa.
Dudu ficou sentada no canapé, olhando para o chão.
O Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado.
Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro.
Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um crepúsculo esplêndido, e murmurou:
— Vamos ter chuva.
— Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!
— Apostemos!
— Pois apostemos! Eu perco… perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?
— Eu… perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher!
E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)