quinta-feira, novembro 21, 2024

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Aluísio AzevedoContos, Crônicas e Poesias

Aos Vinte Anos, Conto de Aluísio Azevedo

 

Aos Vinte Anos

Abri minha janela sobre a chácara. Um bom cheiro de resedás e laranjeiras entrou-me pelo quarto, de camaradagem com o sol, tão confundidos que parecia que era o sol que estava recendendo daquele modo. Vinham ébrios de Abril. Os canteiros riam pela boca vermelha das rosas ; as verduras cantavam, e a república das asas papeava, saltitando, em conflito com a república das folhas. Borboletas doidejavam, como pétalas vivas de flores animadas que se desprendessem da haste.

Tomei a minha xícara de café quente e acendi um cigarro, disposto à leitura dos jornais do dia. Mas, ao levantar os olhos para certo lado da vizinhança, dei com os de alguém que me fitava ; fiz com a cabeça um cumprimento quase involuntário, e fui deste bem pago, porque recebi outro com os juros de um sorriso ; e, ou porque aquele sorriso era fresco e perfumado como a manhã daquele Abril, ou porque aquela manhã era alegre e animadora como o sorriso que dasabotoou nos lábios da minah vizinha, o certo foi que neste dia escrevi os meus melhores versos e no seguinte conversei a respeito destes com a pessoa que os inspirou.

Chamava-se Ester, e era bonita. Delgada sem ser magra ; morena, sem ser trigueira ; afável, sem ser vulgar : uns olhos que falavam todos os caprichosos dialetos da ternura ; uma boquinha que era um beijo feito de duas pétalas ; uns dentes melhores que as jóias mais valiosas de Golconda ; cabelos mais lindos do que aqueles com que Eva escondeu o seu primeiro pudor no paraíso.

Fiquei fascinado. Ester enleou-me todo nas teias da sua formosura, penetrando-me até ao fundo da alma com os irresistíveis tentáculos dos seus dezesseis anos. Desde então conversamos todos os dias, de janela contra janela. Disse-me que era solteira, e eu jureu que seríamos um do outro.

Perguntei-lhe uma vez se me amava, e ela, sorrindo, atirou-me com um bogari que nesse momento trazia pendente dos lábios.

Aí ! Sonhei com a minha Ester, bonita e pura, noites e noites seguidas. Idealizei toda uma existência de felicidade ao lado daquela meiga criatura adorável ; até que um dia, já não podendo resistit ao desejo de vê-la mais de perto, aproveitei-me de uma casa à sua contígua, que estava para alugar, e consegui, galgando o muro do terraço, cair-lhe aos pés, humilde e apaixonado.

– Ui ! Que veio o senhor fazer aqui ? perguntou-me trêmula, empalidecendo.

– Dizer-te que te amo loucamente e que não sei continuar a viver sem ti ! suplicar-te que me apresente a que devo pedir a tua mão, e que marques um dia para o casamento, ou então que me emprestes um revólver e me deixes meter aqui mesmo duas balas nos miolos !

Ela, em vez de responder, tratou de tirar-se do meu alcance e fugiu para a porta do terraço.

– Então ?… Nada respondes ?… inquiri no fim de alguns instantes.

– Vá-se embora, criatura !

– « Não me amas ?

– Não digo que não ; ao contrário, o senhor é o primeiro rapaz de quem eu gosto, mas vá-se embora, por amor de Deus !

– Quem dispõe de tua mão ?

– Quem dispõe de mim é meu tutor…

– Onde está ele ? Quem é ? Como se chama ?

– Chama-se José Bento Furtado. É capitalista, comendador, e deve estar agora na praça do comércio.

– Preciso falar-lhe.

– Se é para pedir-me em casamento, declaro-lhe que perde o seu tempo.

– Por quê ?

– Meu tutor não quer que eu case antes dos vinte anos e já decidiu com quem há de ser.

– Já ? ! Com quem é ?

– Com ele mesmo.

– Com ele ? Oh ! E que idade tem seu tutor ?

– Cinqüenta anos.

– Jesus ! E a senhora consente ?…

– Que remédio ! Sou órfã, sabe ? De pai e mãe… Teria ficado ao desamparo desde pequenina se não fosse aquele santo homem.

– É seu parente ?

– Não, é meu benfeitor.

– E a senhora ama-o ?…

– Como filha sou louca por ele.

– Mas esse amor, longe de satisfazer a um noivo, é pelo contrário um sério obstáculo para o casamento… A senhora vai fazer a sua desgraça e a do pobre homem !

– Ora ! O outro amor virá depois…

– Duvido !

– Virá à força de dedicação por parte dele e de reconhecimento por minha parte.

– Acho tudo isso imoral e ridículo, permita que lho diga !

– Não estamos de acordo.

– E se eu me entender com ele ? Se lhe pedir que me dê, suplicar, de joelhos, se preciso for ?… Pode ser que o homem, bom, como a senhora diz que é, se compadeça de mim, ou de nós, e…

– É inútil ! Ele só tem uma preocupação na vida : ser meu marido !

– Fujamos então !

– Deus me livre ! Estou certa de que com isso causaria a morte do meu benfeitor !

– Devo, nesse caso, perder todas as esperanças de… ?

– Não ! Deve esperar com paciência. Pode bem ser que ele mude ainda de idéia, ou, quem sabe ? Pode ser que morra antes de realizar o seu projeto…

– E acha a senhora que esperarei, sabe Deus por quanto tempo ! Sem sucumbir à violência da minha paixão ?…

– O verdadeiro amor a tudo resiste, quando mais ao tempo ! Tenha fé e constância é só o que lhe digo. E adeus.

– Pois adeus !

– Não vale zangar-se. Trepe de novo ao muro e retire-se. Vou buscar-lhe uma cadeira.

– Obrigado. Não é preciso. Faço todo o gosto em cair, se me escorregar a mão ! Quem me dera até que morresse da queda, aqui mesmo !

– Deixe-se de tolices ! Vá !

Saí ; saí ridiculamente, trepando-me pelo muro, como um macaco, e levando o desalento no coração. „Ÿ Ah ! maldito tutor dos diabos ! Velho gaiteiro e libertino ! Ignóbil maluco, que acabava de transformar em fel todo o encanto e toda a poesia da minha existência ! „Ÿ A vontade que eu sentia era de matá-lo ; era de vingar-me ferozmente da terrível agonia que aquele monstro me ferrara no coração !

– Mas não as perdes, miserável ! Deixa estar ! Prometia eu com os meus botões.

Não pude comer, nem dormir, durante muitos dias. Entretanto, a minha adorável vizinha falava-me sempre, sorria-me, atirava-me flores, recitava os meus versos e conversava-me sobre o nosso amor. Eu estava cada vez mais apaixonado.

Resolvi destruir o obstáculo da minha felicidade. Resolvi dar cabo do tutor de Ester.

Já o conhecia de vista ; muita vez encontramo-nos à volta do espetáculo, em caminho de casa. Ora a rua em que habitava o miserável era escusa e sombria… Não havia que hesitar : comprei um revólver de seis tiros e as competentes balas.

– E há de ser amanhã mesmo ! jurei comigo.

E deliberei passar o resto desse dia a familiarizar-me com a arma no fundo da chácara ; mas logo às primeiras detonações os vizinhos protestaram ; interveio a polícia, e eu tive de resignar-me a tomar um bode da Tijuca e ir continuar o meu sinistro exercício no hotel Jordão.

Ficou, pois, transferido o terrível desígnio para mais tarde. Eram alguns dias de vida que eu concedia ao desgraçado.

No fim de uma semana estava apto a disparar sem receio de perder a pontaria. Voltei para o meu cômodo de rapaz solteiro ; acendi um charuto ; estirei-me no canapé e dispus-me a esperar pela hora.

– Mas, pensei já à noite, quem sabe se Ester não exagerou a cousa ?… Ela é um pouquinho imaginosa… Pode ser que, se eu falasse ao tutor de certo modo… Hein ? Sim ! É bem possível que o homem se convencesse e… Em todo o caso, que diabo, nada perderia eu em tentar !… Seria até muito digno de minha parte…

– Está dito ! resolvi, enterrando a cabeça entre os travesseiros. Amanhã procuro-o ; faço-lhe o pedido com todas as formalidades ; se o estúpido negar „Ÿ insisto, falo, discuto ; e, se ele, ainda assim, não ceder, então bem „Ÿ Zás ! Morreu ! Acabou-se !

No dia imediato, de casaca e gravata branca, entrava eu na sala de visitas do meu homem.

Era domingo, e apesar de uma hora da tarde, ouvi barulho de louça lá dentro.

Mandei o meu cartão. Meia hora depois apareceu-me o velhote, de rodaque branco, chinelas, sem colete, palitando os dentes.

A gravidade do meu trajo desconcertou-o um tanto. Pediu-me desculpa por me receber tão à frescata, ofereceu-me uma cadeira e perguntou-me ao que devia a honra daquela visita.

Que, lhe parecia, tratava-se de cousa séria…

– Do que há de mais sério, senhor comendador Furtado ! Trata-se da minha felicidade ! Do meu futuro ! Trata-se da minha própria vida !…

– Tenha a bondade de pôr os pontos nos ii…

– Venho pedir-lhe a mão de sua filha…

– Filha ?

– Quer dizer : sua pupila…

– Pupila !…

– Sim, sua adorável pupila, a quem amo, a quem idolatro e por quem sou correspondido com igual ardor ! Se ela não o declarou ainda a V.S.a é porque receia com isso contrariá-lo ; creia, porém, senhor comendador, que…

– Mas, perdão, eu não tenho pupila nenhuma !

– Como ? E D. Ester ?…

– Ester ? !…

– Sim ! A encantadora, a minha divina Ester ! Ah ! Ei-la ! É essa que aí chega ! exclamei, vendo que a minha estremecida vizinha surgiu na saleta contígua.

– Esta ? !… balbuciou o comendador, quando ela entrou na sala, « mas esta é minha mulher !…

– ? !…

 

   

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