quinta-feira, março 28, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasOlavo Bilac

A civilização, Conto de Olavo Bilac

A civilização

Uma noite, toda a família, reunida em torno da grande mesa da sala de jantar, passava calmamente o serão. Otávio, inclinado sobre as páginas de um livro, contemplava as gravuras, e lia com interesse as linhas, em que se narravam longas viagens arriscadas, por terras e mares, na África, na Ásia e nas regiões geladas dos polos.
De repente, o menino levantou os olhos do livro, e perguntou:
— Papai, que quer dizer “civilização”?
— Por que perguntas isso, Otávio?
— Por que está escrito neste livro que os exploradores da Ásia, da África e dos polos têm o propósito de levar a civilização a essas regiões… então os homens que lá vivem não são homens como nós?
— São homens como nós, meu filho, mas não são civilizados como nós somos…
E, com paciência e carinho, o pai de Otávio começou a explicar-lhe o que é a civilização:
— A civilização, que é a difusão das riquezas materiais, intelectuais e morais, não pode nunca, sem um longo trabalho de reforma paciente, tomar conta de um país. Para que um povo tenha civilização, é necessário que o moroso passar dos séculos vá aperfeiçoando o caráter desse povo. Assim se a terra brasileira é hoje próspera e forte, foi necessário para isso o esforço coletivo e anônimo das gerações que se tem sucedido. Tu, que nasceste em plena civilização, gozando os benefícios que o trabalho dos teus antepassados preparou, concentra o teu espírito, e, contemplando o presente e lembrando o passado, compara-os, admirando o que foi esse lento progresso. Lembra-te, primeiro, da antiga bruteza deste solo: as selvas espessas e impenetráveis sucediam-se, como enormes muralhas; os rios, largos e acachoeirados, opunham novas barreiras ao passo humano; toda a natureza se mostrava concertada para repelir outros habitantes que não fossem os que ela já possuía, rudes e selvagens como ela. Esses viviam vagando, sem pouso certo, em constantes guerras; quando entravam na vida sedentária, a sua habitação era um agrupamento informe de ocas[i] de barro e madeira tosca, cercadas de trincheiras de espiques de palmeiras. E o que era a vida social desses tempos, diziam-no claramente as caveiras dos inimigos mortos em combate, espetadas nas caiçaras. Compara esses tempos ao tempo de agora! Vê como a terra brasileira está coberta de uma população de dezoito milhões de homens; o esforço humano venceu a hostilidade da natureza. As florestas abriram-se; desvendou-se o mistério das serras; as pontes, arrojadas de margem a margem, dominaram os rios; as feras recuaram; e o arado rasgando vitoriosamente a terra, deixou-a submissa e amiga. Abre agora um mapa, e vê como as estradas de ferro serpeiam, transpondo as águas, furando os montes, servindo os centros rurais, parando de espaço a espaço, ao pé de uma cidade, para logo correr de novo pelos campos, em busca de outras… De extremo a extremo do país, a civilização estendeu essa rede prodigiosa, que é como a ramificação de uma árvore imensa: dos troncos centrais partem os galhos, dos galhos partem as ramadas, e de ano em ano troncos novos se fixam no solo, expandidos em linhas várias, que vão de quilômetro em quilômetro ocupando todas as zonas povoadas ou por povoar. É por essa imensa combinação de canais que circula a atividade do trabalho, como pelas artérias e pelas veias do corpo humano circula o sangue que mantém a nutrição do organismo. E repara agora como, acompanhando as locomotivas, que voam pelos trilhos, se estendem os fios telegráficos, constantemente vibrando, conduzindo a eletricidade invisível e poderosa, que transmite o pensamento, e que congrega num mesmo ideal de ordem, de disciplina, de submissão ao governo da lei todos os cérebros… E observa agora o conforto da gente que trabalha. A sua habitação já não é a rude taba do selvagem, nem a feia senzala dos escravos, onde em promiscuidade imunda os deserdados da fortuna penavam e morriam. A senzala desapareceu, como desapareceu a oca. Limpa e arejada, a habitação atual do lavrador, do trabalhador livre, sorri, como a morada da paz e da fartura. Quando, ao romper da clara manhã, o trabalhador deixa casa, para ir mourejar, sabe que deixa acomodada e feliz a família: e, voltando a cabeça, para com um olhar amigo abençoar os filhos que da porta o veem partir, ele sabe, avistando a fumaça que coroa a chaminé doméstica, que ali não falta o pão, como não falta sossego… agora, vê que multidão de cidades há espalhadas pela tua terra, meu filho!… Umas, postas à beira-mar, dominam as águas contidas pelos cais, vendo balançarem-se aos seus pés os navios, em cujos mastros as bandeiras de todos países da terra flutuam. Outras, emergem risonhas e barulhentas do seio fecundo das matas. Outras, agarradas aos flancos das serras, são as primeiras a receber a luz do sol, e parecem estar celebrando, com o clamor dos seus sinos, com o estrépito das máquinas das suas fábricas, a glória do homem! E, enquanto os homens vão para o trabalho, as crianças, logo às primeiras horas do dia, partem para a escola…
— A Escola também é fruto da civilização, papai? — perguntou Otávio, que ouvia tudo aquilo com uma atenção religiosa, fitando no pai os seus grandes olhos inteligentes e curiosos.
— Também, meu filho! E a Escola de hoje já não é o que era antigamente, no início da civilização. A Escola já não é um lugar de tristeza e martírio: é um prolongamento da casa da família. O mestre na apela para o castigo corporal, para a dor física, como para os únicos meios de formar a alma da criança: apela para o exemplo, para o carinho, para o afetuoso conselho que convence e comove. E, nas salas claras, diante dos mapas, diante dos livros, as crianças já não bocejam, acabrunhadas pelo tédio: sente-se bem, na atenção com que elas ouvem as lições, o desabrochar da sua inteligência na alegria, que é a saúde moral, e na vontade de saber, que é o elemento principal da educação. E aí tens o que é a vida de hoje em tua Pátria, meu filho! E aí tens o que é “civilização”! Lembra-te de novo do tempo em que as tribos viviam por aqui, nuas e sem leis, e do tempo em que somente os braços dos pobres cativos exploravam a terra, — e mede a extraordinária extensão do progresso que temos conquistado!
— E esse progresso é completo, papai?
— Não. O progresso humano é incessante e infindável. O trabalho do homem não para. No meio das imperfeições e das injustiças que ainda há nas sociedades civilizadas, esse trabalho é a garantia de um futuro cada vez melhor. O esforço coletivo, animado pelo amor e pela bondade, há de um dia nivelar todos os homens, e há de assentar no seio do planeta que habitamos a felicidade completa! Tu, que amas a terra em que nascestes, aprende, reconhecendo o valor do que os teus avós já fizeram, a sacrificar o teu próprio bem ao bem comum, para que os teus filhos e os teus netos possam abençoar a tua memória, como abençoas a memória dos que te deram a civilização!

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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