sexta-feira, março 29, 2024

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Artur AzevedoContos, Crônicas e Poesias

A filha do patrão, Conto de Artur Azevedo

A filha do patrão

I
O Comendador Ferreira esteve quase a agarrá-lo pelas orelhas e atirá-lo pela escada abaixo com um pontapé bem aplicado. Pois não! um biltre, um farroupilha, um pobre diabo sem eira nem beira, nem ramo de figueira, atrever-se a pedir-lhe a menina em casamento! Era o que faltava! que ele tivesse durante tantos anos a ajuntar dinheiro para encher os bolsos a um valdevinos daquela espécie, dando-lhe a filha ainda por cima, a filha, que era a rapariga mais bonita e mais bem educada de toda a Rua de São Clemente! Boas!
O Comendador Ferreira limitou-se a dar-lhe uma resposta seca e decisiva, um “Não, meu caro senhor”, capaz de desanimar o namorado mais decidido ao emprego de todas as astúcias do coração.
O pobre rapaz saiu atordoado, como se realmente houvesse apanhado o puxão de orelhas e o pontapé, que felizmente não passaram de tímido projeto.
Na rua, sentindo-se ao ar livre, cobrou ânimo e disse aos seus botões: — Pois há de ser minha, custe o que custar! — Voltou-se, e viu numa janela Adosinda, a filha do Comendador, que desesperadamente lhe fazia com a cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos dentes a unha do polegar, que muito claramente queria dizer: — Babau! — e, como eram apenas onze horas, foi dali direitinho espairecer no Derby-Club. Era domingo e havia corridas.
O Comendador Ferreira, mal o rapaz desceu a escada, foi para o quarto da filha, e surpreendeu-a a fazer os tais sinais interrogativos. Dizer que ela não apanhou o puxão de orelhas destinado ao moço, seria faltar à verdade que devo aos pacientes leitores, apanhou-a, coitadinha e naturalmente, a julgar pelo grito estrídulo que deu, exagerou a dor física produzida por aquela grosseira manifestação de cólera paterna. Seguiu-se um diálogo terrível:
— Quem é aquele pelintra?
— Chama-se Borges.
— De onde o conhece você?
— Do Clube Guanabarense… daquela noite em que papai me levou…
— Ele em que se emprega? que faz ele?…
— Faz versos.
— E você não tem vergonha de gostar de um homem que faz versos?
— Não tenho culpa; culpado é o meu coração.
— Este vagabundo algum dia lhe escreveu?
— Escreveu-me uma carta.
— Quem lha trouxe?
— Ninguém. Ele mesmo atirou-a com uma pedra, por esta janela.
— Que lhe dizia ele nesta carta?
— Nada que me ofendesse; queria a minha autorização para pedir-me em casamento.
— Onde está ela?
— Ela quem?
— A carta.
Adosinda, sem dizer uma palavra, tirou a carta do seio. O Comendador abriu-a, leu-a, e guardou-a no bolso.
Depois continuou:
— Você respondeu a isso? A moça gaguejou.
— Não minta!
— Respondi, sim senhor.
— Em que termos?
— Respondi que sim, que me pedisse.
— Pois olhe: proíbo-lhe, percebe? pro-í-bo-lhe que de hoje em diante dê trela a esse peralvilho! Se me constar que ele anda a rondar-me a casa, ou que se corresponde com você, mando desancar-lhe os ossos pelo Benvindo (Benvindo era o cozinheiro do Comendador Ferreira), e a você, minha sirigaita… a você… Não lhe diga nada!…
II
Três dias depois desse diálogo, Adosinda fugiu de casa em companhia do seu Borges, e o rapto foi auxiliado pelo próprio Benvindo, com quem o namorado dividiu um dinheiro ganho nas corridas do Derby. Até hoje ignora o Comendador que o seu fiel cozinheiro contribuísse para tão lastimoso incidente.
O pai ficou possesso, mão não fez escândalo, não foi à polícia, não disse nada nem mesmo aos amigos íntimos; não se queixou, não desabafou, não deixou transparecer o seu profundo desgosto.
E teve razão, porque, passados quatro dias, Adosinda e o Borges, vinham, à noite, ajoelhar-se aos seus pés e pedir-lhe a bênção, como nos dramalhões sentimentais.
III
Para que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o Comendador Ferreira deveria perdoar aos dois namorados, e tratar de casá-los sem perda de tempo; mas infelizmente as coisas não se passaram assim, e a moral, como vão ver, foi sacrificada ao egoísmo.
Com a resolução de quem longamente se preparara para o que desse e viesse, o Comendador tirou do bolso um revólver e apontou-o contra o raptor de sua filha, vociferando:
— Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se não quer que lhe faça saltar os miolos!…
A esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito amor à pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisíveis.
O pai foi fechar a porta, guardou o revólver, e, aproximando-se de Adosinda, que, encostada ao piano, tremia, como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com um carinho que nunca manifestara em ocasiões menos inoportunas.
A moça estava assombrada; esperava pelo menos a maldição paterna; era, desde pequenina, órfã de mãe, e habituara-se às brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço encheram-na de confusão e pasmo. O Comendador foi o primeiro a falar:
— Vês? disse ele, apontando para a porta: vês? O homem por quem abandonaste teu pai é um covarde, um miserável, que foge diante de um cano de um revólver! Não é um homem!…
— Isso ele é, murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas lhe desfaziam a palidez do rosto.
O pai sentou-se no sofá. chamou a filha para perto de si, fê-la sentar-se nos seus joelhos, e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que esquecesse do homem que a raptara, um troca-tintas, um leguelhé que lhe queria o dote, e nada mais; pintou-lhe um futuro de vicissitudes e misérias, longe do pai que a desprezaria se semelhante casamento se realizasse, desse pai que tinha exterioridades de bruto, mas no fundo era o melhor, o mais carinhosos dos pais.
No fim da catequese, a moça parecia convencida de que nos braços de Borges não encontraria realmente toda a felicidade possível; mas…
— Mas agora… é tarde, balbuciou ela; e voltaram-lhe à face as purpurinas rosas de ainda há pouco.
— Não; não é tarde, disse o Comendador; conheces o Manoel, o meu primeiro caixeiro do armazém?
— Conheço: é um enjoado.
— Qual, enjoado! É um rapaz de muito futuro no comércio, um homem de conta, peso e medida! Não descobriu a pólvora, não faz versos, não é janota, mas tem um tino para o negócio, uma perspicácia que o levará longe, hás de ver!
E durante um quarto de hora o Comendador Ferreira gabou as excelências do seu caixeiro Manoel. Adosinda ficou convencida.
A conferência terminou por estas palavras:
— Falo-lhe?
— Fale, papai.
IV
No dia seguinte o Comendador chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:
— Seu Manoel, estou muito contente com os seus serviços.
— Oh! patrão!
— Você é um empregado zeloso, ativo e morigerado; é o modelo dos empregados.
— Oh! patrão!
— Não sou ingrato. Do dia primeiro em diante você é interessado na minha casa: dou-lhe cinco por cento além do ordenado.
— Oh! patrão! isso não faz um pai ao filho!…
— Ainda não é tudo. Quero que você se case com a minha filha. Doto-a com cinquenta contos.
— Mas eu sou um homem sério, continuou o patrão; a minha lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha filha… não é virgem.
O noivo espalmou as mãos, inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as pálpebras, ajustou os lábios em bico, e, respondeu com um sorriso resignado e humilde:
— Oh! patrão! ainda mesmo que fosse, não fazia mal.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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