sexta-feira, novembro 8, 2024

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Aluísio AzevedoContos, Crônicas e Poesias

Fora de Horas, Conto de Aluísio Azevedo

 

Fora de Horas

Ora! Para que lhes hei de contar isto? Histórias do Norte! Histórias de amor! Cousas que não voltam mais!

Era a última vez que eu ia ter com ela, e seria menos uma entrevista de amor do que um encontro de despedida; meus lábios pressentiam já ligeiro travor de lágrimas nos beijos que sonhava pelo caminho.

Fui. Ela me esperava à meia-noite, como de costume, espreitando por detrás da porta cerrada, descalça e palpitante de ansiedade e de susto. Eu costumava chegar furtivamente, cosendo-me à própria sombra pelas paredes da rua. Entrava; a porta fechava-se então de todo, surdamente, e nós ficávamos sendo um do outro até esgotar-se a noite. Ninguém desconfiava da nossa felicidade.

Vivia a minha amada em companhia de uma parenta velha, sua madrinha, viúva e rica, senhora de engenho, dona austera e venerável, devota até ao fanatismo. A madrinha idolatrava-a loucamente. A casa era grande, antiga e nobre, povoada de agregados, de mucambas e muitos fâmulos. Para chegar ao quarto da afilhada era preciso atravessarmos, eu a ela, de mãos dadas, na escuridão, longos corredores e varandas; com o calcanhar no ar, a respiração suspensa, os sapatos fora. Mas que prêmio era ganhar o fim dessa jornada aflitiva e tenebrosa! A alcova lá no fundo, isolada do resto da casa, dava janelas sobre um jardim de árvores floríferas, todo cercado de altos muros de convento e todo envolvido no doce mistério de uma fortaleza de amor.

Que delícia contemplar da altura das janelas silenciosas o céu todo orvalhado de estrelas, e beber o segredo da noite; cinturas presas, cabeças juntas, cabelos confundidos.

Ela não tinha mãe desde o berço e fora criada pela madrinha. Casara aos quinze anos e enviuvara aos dezoito. A nossa loucura principiou no calor das valsas e foi-se derramando num delírio de mocidade até àquela perfumada alcova, onde a nossa última madrugada recolheu no seio o eco dos nossos derradeiros beijos.

A madrinha não me podia ver.

Ressentimentos de devota: Eu nesse tempo, com pouco mais de vinte anos, supunha-me um batalhador predestinado a regenerar o mundo a golpes desapiedados contra as velhas instituições; tinha o meu jornal republicano e acatólico e duelava-me, dia a dia, ferozmente, com os redatores de um órgão ultramontano e com os velhos jornalistas conservadores. Imaginem se a velha me podia ver!

Era por toda a cidade apontado a dedo; amado pela metade da população e amaldiçoado pela outra. Os devotos enfureciam-se comigo e os padres pediam ao diabo que me carregasse para longe da minha província.

Ouviu-os o demo. Tive de partir para o Rio de Janeiro. E foi nas últimas horas precursoras desse triste dia que os mais amorosos lábios de mulher gemeram contra os meus a dolorosa cavatina precursora da saudade.

Ai! quantas lágrimas nos ensoparam os beijos e quantos soluços nos cortaram os juramentos de fidelidade! Só resolvemos separar-nos quando o horizonte já nos ameaçava com a aurora. E lentamente nos afastamos do nosso paraíso, mais tristes e mais mudos que os dois primeiros amantes enxotados sobre a terra. Ao meu lado ela caminhava quase tão nua e certamente mais comovida e chorosa do que a primeira Eva.

– Espera! Espera ainda um instante, meu querido amor! suplicava-me entre beijos desesperançados, na ocasião de abrirmos a porta da rua. Espera! Diz-me um negro pressentimento que nunca mais nos veremos! Espera ainda! um instante só!

Mas era preciso separar-nos. O dia não tardaria a repontar e eu tinha de estar ao lado de minha família ao amanhecer. O vapor largaria cedo. Os amigos viriam buscar-me logo pela manhã. Era preciso ir!

– Adeus! Adeus!

E arranquei-me dos seus braços, enquanto desfalecida e soluçante, ela se amparava contra a parede do corredor. E, para não sucumbir também, tratei de apressar a fuga e precipitei-me sobre a porta da rua.

Mas, que horror! a chave já lá não estava na fechadura. Alguém de casa tinha carregado com ela.

– Ah! Foi Dindinha com certeza, disse dolorosamente a minha pobre amada. Meu Deus! meu Deus!

E quase sem poder andar, de tão nervosa e trêmula, voltou ao interior da casa e tornou a ter comigo, para me segredar aterrada que havia luz no quarto da madrinha.

– Descobriu tudo! Descobriu tudo! murmurou aflita. Fechou-nos! Estamos presos ! Estamos perdidos!

– E agora?… perguntei, deveras agitado, lembrando-me da monástica altura dos muros do jardim.

– Não sei! Não sei! foi a única resposta que lhe obtive.

Tornamos à alcova, mais tristes e mais lentos do que de lá saímos. A idéia da nossa separação não nos acabrunhava mais do que a de ficarmos juntos à força. Se me doía abandonar aquele doce paraíso de amor, não me atormentava menos ter de ficar lá dentro prisioneiro.

E ela, perplexa, chorava, chorava, apertando a cabeça entre os formosos braços, numa angústia sem esperança de salvação. Urgia, porém, tomar qualquer partido decisivo: o dia estava a chegar e eu não podia amanhecer ali, tendo de seguir para o Rio de Janeiro e embarcar dentro de poucas horas!

Afinal, a minha companheira de agonia muniu-se de coragem e foi bater de leve, muito de leve, no quarto da madrinha.

Silêncio.

Tornou a bater.

Bateu terceira vez.

– Quem está aí?

– Sou eu, Dindinha. Abra por favor…

– Que quer a senhora

– Nada, Dindinha… Eu queria a chave da porta da rua…

– Para quê?

– Não me pergunte, Dindinha, por amor de Deus! e dê-me a chave… Peço-lhe por tudo que Dindinha mais deseja no mundo!…

– Não dou!

– Minha Dindinha

– Não! não!

– Abra a sua porta ao menos…

E esta súplica foi já toda embebida de lágrimas e soluços.

A velha veio à porta e eu então pude espiar lá para dentro. Era um pequeno aposento, bem arrumado e limpo. Havia uma cômoda com um oratório, onde luzia uma lâmpada que era única a iluminar o honesto e tranqüilo dormitório. Pelas paredes aprumavam-se quadros de santos, contrastando com o retrato a óleo de um tenente de cavalaria, mal pintado, mas de olhinhos vivos e que parecia sorrir lá da sua moldura para a viuvinha, com o ar escarninho assim de quem diz: “Tu então, pequena, fizeste a tua falcatrua e foste apanhada, bem?… Pois é bem feito!”

A velha, assentada de novo na sua rede, conservava a fisionomia fechada e parecia implacável.

A afilhada, procurando esconder nos braços nus a pecadora nudez do colo, desfazia-se em lágrimas e nelas repisava as suas súplicas, jurando que nunca mais, nunca mais! por tudo que houvesse de sagrado! reincidiria naquela feia culpa!

– Não!

– Tenha pena de mim, Dindinha!…

– Quem é que estava aí com a senhora?!

A moça calou-se, de olhos baixos, arfando-lhe por sob a cambraia da camisa os seios atormentados.

– Diz ou não diz?

– É… é… Para que Dindinha quer saber?… Dindinha vai ficar zangada se eu disser…

– Diga quem é!

– Dindinha saberá depois…

– Pois então retire-se já daqui! Saia da minha presença!

– Não… Não… Eu digo… É…

E ouvi o meu nome balbuciado a medo no ouvido da velha.

Um charuto aceso, que lhe metessem pela orelha, não lhe produziria tanto efeito.

A devota teve um frouxo de tosse convulsa.

– Com efeito! rosnou afinal, contendo a custo uma explosão de cólera. Com efeito! Pois é esse alma perdida, esse ateu, esse monstro, que a senhora introduziu velhacamente em minha casa?!

– Tenha paciência, Dindinha… Ele parte esta manhã mesmo para o Rio de Janeiro…

– Paciência?!… É boa! Esse herege há de ficar aqui preso e só sairá com alto dia e na presença do senhor vigário geral e dos padres da Sé, a quem vou chamar! o público há de ver e apreciar o escândalo, para vergonha sua e para castigo dele! Paciência! Sim, hei de ter paciência, mas será para desmascarar aquele pedreiro livre!

A velha tinha chegado ao auge da cólera e já falava em voz alta.

Vi o caso perdido.

E a minha pobre cúmplice, de pé ao lado da rede, descalça e apenas resguardada pela trêmula camisa, abaixou ainda mais o rosto e deixou que as suas perdidas lágrimas lhe corressem ao suspirado resfolegar do peito.

A velha conservava-se inflexível. Mas a afilhada chegou-se mais para junto dela e pousando carinhosamente uma das mãos nos punhos da rede, começou a embalá-la de leve, e começou a murmurar num flébil queixume ressentido:

– Dindinha, entretanto, não devia fazer assim comigo… Dindinha bem sabe o muito que lhe quero e o muito que a respeito… Mas Dindinha devia lembrar-se de que enviuvei com dezoito anos e tenho apenas vinte… devia lembrar-se de que sou moça e que o rapaz a quem amo não pode sequer aproximar-se de Dindinha…

– Confiada!

– Devia lembrar-se que… certa noite. (e abaixou mais a voz) quando eu era ainda pequenina e dormia no mesmo quarto com Dindinha… já depois que meu padrinho se separou de vosmecê… o tenente Ferraz, que ali está pintado na parede, saltou a janela do nosso quarto e Dindinha o recebeu nos braços, depois de ter ido verificar se eu estava dormindo…

– Cala-te, doida!

– Eu estava bem acordada, mas fiquei quietinha na minha rede, fingindo que dormia, só para ser agradável à Dindinha… e ouvi todas as palavras de ternura que o tenente disse ao ouvido da Dindinha.. E nunca falei disto a ninguém… Ouvi tudo! Por sinal que o tenente dizia: “Eu te amo, minha flor! Eu te amo como um louco!

– Se quiseres quê…”

Mas a velha interrompeu-a.

– Cala-te! Cala-te! disse.

A sua fisionomia tinha pouco a pouco se transformado com as palavras da afilhada e ia ganhando um triste e compassivo ar de desconsolação. Os olhos relentaram-se-lhe de saudade com aquele frio recordar do passado.

Quando a rapariga quis continuar as suas revelações, ela interrompeu-a de novo com um fundo suspiro e acrescentou com a voz quebrada pela comoção:

– Cala-te, minha filha!… Aí tens a chave… Abre-lhe a porta… Vai! vai, antes que amanheça… E deixa-me só! deixa-me ficar só!

 

   

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