quarta-feira, outubro 9, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasGuerra Junqueiro

A Mãe, Conto de Guerra Junqueiro

A Mãe

Estava uma mãe muito aflita, sentada ao pé do berço do seu filho, com medo que lhe morresse. A criancinha pálida tinha os olhos fechados. Respirava com dificuldade, e às vezes tão profundamente, que parecia gemer; mas a mãe causava ainda mais lástima do que o pequenino moribundo.
Nisto bateram à porta, e entrou um pobre homem muito velho, embuçado numa manta de arrieiro. Era no inverno. Lá fora estava tudo coberto de neve e de gelo, e o vento cortava como uma navalha.
O pobre homem tremia de frio; a criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se a pôr ao lume uma caneca com cerveja. O velho começou a embalar a criança, e a mãe, pegando numa cadeira, sentou-se ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez com mais dificuldade, pegou-lhe na mãozinha descarnada e disse para o velho:
— Oh! Nosso Senhor não o há de levar! não é verdade?
E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça de uma maneira estranha, em ar de dúvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara. Sentiu-se estonteada com um grande peso de cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou ligeiramente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.
— Que é isto! exclamou, lançando à volta de si o olhar alucinado. O berço estava vazio. O velho tinha-se ido embora, roubando-lhe a criança.

***

A pobre mãe saiu precipitadamente, gritando pelo filho. Encontrou uma mulher sentada no meio da neve, vestida de luto. “A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Via sair a correr levando teu filho. Anda mais depressa que o vento, e o que ela furta nunca o torna a entregar.”
— Por onde foi ela? gritou a mãe. Dize-mo pelo amor de Deus!
-sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de preto. Mas só te ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes tas ouvi cantar, debulhada em lágrimas.
— Cantar-te-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.
A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram mais do que as palavras.
No fim disse-lhe a Noite: “Toma à direita, pela floresta escura de pinheiros. Foi por aí que a Morte fugiu com o teu filho.”
A mãe correu para a floresta; mas no meio dividia-se o caminho, e não sabia que direção havia de seguir. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.

***

— Não viste a Morte que levava o meu filho? perguntou-lhe a mãe.
— Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho, senão com a condição de me aqueceres no teu seio, porque estou gelado.
E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, de onde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de inverno frigidíssima, tal é o calor febricitante do seio de uma mãe angustiosa.
E o matagal ensinou-lhe o caminho que devia seguir. Foi andando, andando, até que chegou à margem de um grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era demasiadamente profundo para se passar andando. Contudo, querendo encontrar o seu filho, era necessário atravessá-lo. No delírio do seu amor, atirou-se de bruços a ver se poderia beber toda a água do lago. Era impossível, mas lembrava-se que Deus, por compaixão, faria talvez um milagre.
— Não! não és capaz de me esgotar, disse o lago. Sossega, e entendamo-nos amigavelmente. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são de um brilho mais suave do que as pérolas mais ricas que eu tenho possuído. Se queres, arranca-os das órbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: essa estufa é a habitação da Morte; e as flores e as árvores que estão lá dentro, é ela quem as cultiva; cada flor e cada árvore é a vida de uma criatura humana.
— Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho! disse a mãe. E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e os seus olhos destacaram-se das órbitas e caíram no fundo do lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não teve no mundo uma rainha.
O lago então ergueu-a, e com um movimento de ondulação depositou-a na outra margem, aonde havia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de comprido. De longe não se sabia se era uma construção artística ou uma montanha com grutas e florestas. Mas a pobre mãe não podia ver nada; tinha dado os seus olhos.
— Como hei de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho! bradou ela desesperada.
— A Morte ainda não chegou, respondeu-lhe uma boa velha, que andava de um lado para o outro, inspecionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste tu aqui parar? quem te ensinou o caminho?
— Deus auxiliou-me, respondeu ela. Deus é misericordioso. Compadece-te de mim, e dize-me onde está o meu filho.
— Eu não o conheço, e tu és cega, disse a velha. Há aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a Morte não tarda aí para as tirar da estufa. Deves saber, que toda a criatura humana tem neste sítio uma árvore ou uma flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração. Guia-te por isto, e talvez reconheças as pulsações do coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que tens ainda de fazer?
— Já não tenho nada que te dar, disse a pobre mãe. Mas irei até ao fim do mundo buscar o que tu quiseres. — Fora daqui não preciso de nada, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros; tu sabes que são belos, e agradam-me. Trocá-los-ei pelos meus cabelos brancos. — Não pedes mais nada do que isso? disse a mãe. Aí os tens, dou-te de boa vontade.
E arrancou os seus magníficos cabelos, que tinham sido outrora o seu orgulho de rapariga, recebendo em troca os cabelos curtos e inteiramente brancos da velha.
Esta levou-a pela mão à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação maravilhosa.
Viam-se debaixo de campânulas de cristal jacintos mimosíssimos ao lado de peônias inchadas e ordinárias. Havia também plantas aquáticas, umas cheias de seiva, outras meio murchas, e em cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas.
Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas, carvalhos e plátanos frondosos; depois num outro sítio isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas humildes que representavam o gênero de utilidade das pessoas que elas simbolizavam.
Havia ainda grandes arbustos em vasos demasiadamente estreitos, que pareciam rebentar; mas viam-se também floresitas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra, circundadas de musgo, tratadas com esmero delicadíssimo. Tudo isso representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a China até à Groenlândia.
A velha queria mostrar-lhe todas estas coisas misteriosas, mas a mãe impacientada pediu-lhe que a levasse ao sítio onde estavam as plantas pequeninas; tateava-as, apalpava-as, para lhes sentir o bater do coração, e, depois de ter tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações do coração do seu filho.
— É ele! exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que, pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.
— Não lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier, que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte terá medo, porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem o seu consentimento.
Nisto sentiu-se um vento glacial, e a mãe adivinhou que era a Morte, que se aproximava.
— Como é que deste com o caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o conseguiste? — Sou mãe, respondeu ela.
E a Morte estendeu a sua mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.
Mas a mãe protegia-o violentamente com ambas as mãos, tendo o cuidado de não ferir uma só das pequeninas pétalas. Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos enregelados do inverno.
— Não podes nada comigo! disse a Morte. — Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a mãe. — É verdade, mas eu não faço senão aquilo que ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar, transplanto-as para outros jardins, um dos quais é o grande jardim do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém sabe o que se lá passa.
— Misericórdia! misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o meu filho, agora que acabo de o encontrar! Suplicava e gemia. A Morte conservava-se impassível; agarrou então instantaneamente em duas flores lindíssimas e disse à Morte: Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não só esta, mas todas as flores que estão aqui!
— Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes que és desgraçada, e querias ir partir o coração de outra mãe! — Outra mãe! disse a pobre mulher, largando as flores imediatamente. — Toma, aqui tens os teus olhos, disse a Morte. Brilhavam tão suavemente que os tirei do lago. Não sabia que eram teus. Mete-os nas órbitas, e olha para o fundo deste poço; vê o que ias destruir, se arrancasses estas flores. Verás passar nos reflexos da água, como numa miragem, a sorte destinada a cada uma dessas duas flores, e a que teria tido o teu filho, se porventura vivesse.
Debruçou-se no poço, e viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros risonhos e deliciosos, e logo depois cenas terríveis de miséria, de angústias e de desolação.
— Nisto que eu vejo, disse a mãe aflitíssima, não distingo qual era a sorte que Deus destinava ao meu filho.
— Não posso dizer-te, respondeu a Morte. Mas repito-te, em tudo isto que te apareceu viste o que no mundo havia de suceder ao teu filho.
A mãe desvairada, lançou-se de joelhos exclamando: Suplico-te, dize-me: era a sorte infeliz a que lhe estava reservada? Não é verdade! Fala! Não me respondes? Oh! na dúvida, leva-o, leva-o, não vá ele sofrer desgraças tão horríveis. O meu querido filho! Quero-lho mais que à minha vida. As angústias que sejam para mim. Leva-o para o reino dos céus. Esquece as minhas lágrimas, as minhas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que disse.
— Não te compreendo, respondeu a Morte: Queres que te entregue o teu filho ou que o leve para a região desconhecida de que não posso falar-te! Então a mãe alucinada, convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos e dirigindo-se a Deus exclamou: Não me ouças, Senhor, se reclamo no fundo do meu coração contra a tua vontade que é sempre justa! Não me atendas meu Deus!
E deixou cair a cabeça sobre o peito, mergulhada na sua agonia dilacerante.
E a Morte arrancou o pequenino açafroeiro, e foi transplantá-lo no jardim do paraíso.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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