sexta-feira, março 29, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasFlorbela Espanca

A Morta, Conto de Florbela Espanca

A Morta

Isto aconteceu.
A Morta ouviu dar a última badalada da meia-noite, ergueu os braços, e levantou a tampa do caixão. Desceu devagarinho, circunvagou em redor os olhos de pupilas sem luz; os outros mortos, bem mortos, dormiam pesadamente. Puxou para si a porta do jazigo que dava para a noite. O vestido branco manchou o negrume das sombras. Fúnebres ciprestes, almas de tísicos bailavam numa clareira uma macabra dança de roda. Avançou lentamente pela avenida soturna, voltando para eles os glóbulos vítreos dos seus olhos sem luz. Parou um momento, clarão no meio de sombras, a ver um pequenino, nu e branco como um mármore grego, que piedosamente se entretinha a encher de lágrimas uma urna partida, onde as pombas viriam beber de dia. Um suicida, escavando a terra com as unhas, procurava o seu sonho, porque se tinha perdido.
As estátuas descansavam das suas atitudes contrafeitas. A saudade alisava as roupagens roçagantes, e sentava-se com a face entre as mãos, olhando vagamente a noite. Uma musa de curvas sensuais, num túmulo de poeta, cerrava languidamente os olhos e fazia com a boca o gesto de quem beija. Um sapo enorme, de olhos magníficos como estrelas, lançava a sua nota rouca, refastelado num fofo leito de lírios.
A Morta caminhava num passo de morta, um ciciar de brisa na folhagem; os sapatinhos de cetim branco mal pousavam nas pedras do caminho; as pupilas sem luz não tinham olhar, e viam. A Morta sabia aonde ia.
A Morta ia a lembrar-se, que os mortos também se lembram; na solidão do túmulo há tempo e sossego para lembrar; é lá que as virgens tecem as mais preciosas lhamas dos seus sonhos. Para quem saiba ouvir, há vibrações de carnes mortas nos túmulos brancos das que morreram puras, como que um frêmito brando de erva a crescer…
A Morta ia a lembrar-se:
Sentira num êxtase sobre-humano, num assombroso sair de si, numa prodigiosa transfiguração de todas as fibras do seu ser, a pressão de uns dedos quentes que lhe desciam as pálpebras sobre as pupilas paradas. Uma boca, que ela nunca sonhara tão macia e fresca, roçara-lhe a macieza e a frescura da sua, em beijos miudinhos, cariciosos, castos como aquelas gotas de chuva que nas tardes de Verão, infantilmente, recolhia nas suas duas mãos estendidas.
Vestiram-na de branco, ungiram-na de branco, envolveram-na numa nuvem de branco. Era branca a almofada de rendas onde lhe pousaram a cabeça, devagarinho, no gesto sagrado de quem pousa uma relíquia três vezes santa nas rendas de um altar. Brancos, os sapatinhos de cetim, aqueles mesmos que mal roçavam agora as pedras do caminho. Branca, a grinalda de rosas de toucar que lhe prenderam à seda dos cabelos. Branco, o vestido, o seu último vestido do seu último baile. Brancos, os cachos de lilás, as rosas e os cravos que eram como asas de pombas a cobri-la. Branca, a caixinha de sete palmos pequeninos onde a mãe a deitou como a deitara anos a fio na brancura do berço.
E agora, as cartas do noivo, o retrato do noivo, as dulcíssimas recordações do noivo. E, piedosamente, cuidadosamente, não fosse esquecer alguma pétala de flor, algum fiozinho dos seus lindos cabelos pretos, algum pedacinho de papel onde as queridas mãos morenas lhe tinham traçado o nome, tudo lhe levaram, como uma divina oferta a um ser divinizado. Tudo levou. Parecia que se tinha tornado de repente mais pequenina, mais imaterial, mais acolhedora, para que tudo lá coubesse, para que nada esquecesse, para que nada ficasse a gelar lá fora no frio glacial da indiferença deste mundo que transe as almas e as coisas. Que lhe pusessem tudo, o caixão não pesaria mais por isso… Todo o ouro a jorros das suas misteriosas quimeras, todos os fúlgidos brocados tecidos dos preciosos metais, semeados das gemas cintilantes das suas miragens de amor, todas as altas torres brancas dos seus sonhos, tudo era tão leve, tão leve, que a caixinha de sete palmos pesava menos que uma pena de colibri.
Depois, a tampa da caixinha tombou brandamente entre o ciciar dos soluços, e toda a brancura se apagou; uma noite de luar que se cerrasse em sombras…
E já foi… Desceu os degraus da escada, baloiçada no seu esquife branco, com a cabeça, tonta do perfume das flores e dos seus sonhos de amor encerrados com ela, corno se lá tivessem encerrado, numa suprema oferta, todas as primaveras que no mundo tinham de florir depois dela.
E lá a deixaram. A vaga que a levara, quebrara-se de encontro â praia, e o esquife, barco sem velas, dormia no porto ao abrigo dos vendavais, das medonhas invernias desencadeadas, das outras vagas maiores que se quebravam ao longe, num marulhar incessante, no mar alto da vida. A Morta podia dormir, a Morta podia sonhar.
Silêncio. Um silêncio feito de fluidos rumorosos, do vago rastejar de um perfume, de um leve vapor de incenso pairando. Silêncio como um vago clarão de fogo-fátuo, como o rasto, a poalha de um desejo imaterial, silêncio em torno da vasta catedral de sombras onde as sombras vestidas de branco pontificam pelas noites.
Os outros mortos, ao lado, dormiam pesadamente, descansadamente. Um dia tinham pendido os braços num gesto de fadiga e tinham ficado assim pelos séculos dos séculos. A Morta viu-os a todos e de nenhum se lembrou; o mundo ficava longe.
Começou depois o encantamento. Todas as tardes, à hora em que o crepúsculo, todo vestido de glicínias, descia com a doçura dumas pálpebras que se fechassem, o perfume das rosas, dos cachos de lilás, das suas recordações de amor encerradas com ela, fazia-se mais denso, corporizava-se, tornava-se nuvem, unguento divino que a inundava, que a aromatizava toda. Os passos, letras de um poema que ela sabia de cor, mal se ouviam, perdidos ainda no coração da cidade, gritante, alucinada cidade dos vivos… mas, agora, vinham mais perto, distinguiam-se melhor, eram mais arrastados, tateavam o chão, tomavam posse das pedras do caminho da silenciosa cidade dos mortos.
Os sete palmos brancos onde as flores dormiam de encontro à carne branca da virgem eram como um enxame de abelhas de ouro: zumbiam lá dentro todas as litanias de amor, batiam desvairadamente os corações dos cravos, abriam-se sedentas as pequeninas bocas das mil florinhas de lilás, aos seios pálidos das rosas aflorava uma onda levíssima de carmim.
A mão do noivo empurrava a porta do jazigo. Os outros mortos, ao lado, não o sentiam entrar; braços pendentes num gesto de fadiga, tinham ficado assim pelos séculos dos séculos.
Entre o vivo e a morta o diálogo era de uma sobre-humana beleza.
Essência de almas, as almas tocavam-se e era tão cândido e tão profundo aquele choque, que as misteriosas forças desse fluido criavam outros fluidos, sopros, hálitos de almas, desses que os predestinados sentem às vezes passar como asas invisíveis roçando um rosto na escuridão. Diálogo em que as bocas ficavam mudas, em que os sons eram imateriais e os gestos intangíveis e o perfume, que é a alma dos sentimentos, não era mais pesado que uma essência de perfume.
O vivo e a morta falavam, e o que eles diziam não o podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortos, aqueles que ao lado dormiam pesadamente, braços pendidos num gesto de fadiga pelos séculos dos séculos.
O perfume agora era mais brando, narcisava-se, palpitava ainda como um rufiar de asas cansadas ao chegar ao ninho… A mão do noivo puxava para si a porta do jazigo… os passos perdiam-se ao longe na silenciosa cidade dos mortos, depois na alucinante cidade dos vivos, e tudo se aquietava. Aproximava-se o silêncio, que trazia pela mão, devagarinho, não fosse tropeçar, a noite cega.
Mas, uma tarde, a Morta esperou em vão, e esperou outra e outra e outra ainda em infindáveis horas de infindáveis tardes. Na caixinha de sete palmos onde os cravos e os lilases eram viçosos e frescos ainda, como se uma eterna madrugada os banhasse de orvalho, começaram a enlanguescer os perfumes, a desmaiar os seios nus das rosas; as cartas de amor amareleciam; os braços da virgem iam esboçando já o gesto de fadiga dos outros mortos que ao lado dormiam pesadamente.
Foi então que uma noite mais cega ainda que as outras todas que o silêncio trazia pela mão, uma noite em que ela sentia gotejar lá fora as lágrimas de todo um mundo de que se tinha esquecido, foi então que ela ergueu os braços, levantou brandamente a tampa do caixão, e desceu devagarinho… foi então que ela puxou para si a porta do jazigo que dava para a noite.
E a Morta lá foi pela soturna avenida, no seu passo, de manto a roçagar. Empurrou a porta apenas encostada — para que se há de fechar a porta aos mortos?… — e saiu… e na cidade adormecida foi uma flor de milagre que os vivos sentiram desabrochar. Foram mais ternos os beijos das noivas; as mães sentiram mais calmos os sonhos dos filhos como se a bênção do céu descesse misericordiosa sobre os berços; os braços das amantes ampararam melhor as cabeças desfalecidas, e os que estavam para morrer tiveram pena da vida.
Atravessou ruas ermas, estradas solitárias povoadas de sombras mais vãs e fugidias que ela era; procurou com as suas pupilas sem luz o clarão que as acendera, estendeu os braços a todos os gritos, andou de porta em porta, subiu a todos os lares, revolveu todas as agonias, debruçou-se em todos os abismos, penetrou o mistério de todos os sonhos. E cada vez as sombras eram mais vãs e fugidias, e os clarões iam-se apagando, estrelas-cadentes no negrume cerrado daquele Gólgota. Nada!
Foi então que lhe chegou aos ouvidos um ciciar brandinho… Seriam passos?… Rufiar de asas?… Folhas de Outono tombando?…
E a Morta parou.
Marulho de ondas pequeninas. O rio.
Na taça de prata, cinzelada a traços de maravilha pelas mãos dos gênios das águas, erguida ao alto por mãos misteriosas e invisíveis, dormia todo o azul do infinito. O seu vestido branco aureolou-se de sonho, teve tons azulados de nácar e madrepérola, claridades fosforescentes de fogo-fátuo; como se lhe batesse de chapa todo o luar dos céus longínquos, lembrou um manto de Virgem; as mãos, num gesto de graça, foram duas minúsculas conchas azuis. Era ali.
Debruçou-se… Marulho de ondas… E a morta foi mais uma onda, uma onda pequenina, uma onda azul na taça de prata a faiscar…
Isto aconteceu.
De manhãzinha, quando as pombas sedentas vieram beber as lágrimas na urna quebrada, quando o sapo, de magníficos olhos como estrelas, deixou o seu fresco leito de lírios, e a saudade se enrodilhou de novo no suntuoso túmulo de mármore, a soluçar, quando a musa de curvas sensuais moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade rígida das linhas austeras e frias, quando enfim as sombras se esvaíram na silenciosa cidade dos mortos, um caixão foi encontrado vazio, uma caixinha branca de sete palmos pequeninos, onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam pender as pálidas cabeças desmaiadas.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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