quinta-feira, março 28, 2024

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Camilo Castelo BrancoContos, Crônicas e Poesias

O Arrependimento, Conto de Camilo Castelo Branco

O Arrependimento

Em tempos da minha mocidade costumava visitar a miúdo uma boa velha, minha vizinha, que me honrava com a sua estima e amizade. Humildemente confesso que não há sociedade mais deleitosa e agradável, do que a de uma mulher que soube envelhecer. A sua conversação instrutiva e divertida, é um inesgotável tesouro de lembranças, anedotas, observações chistosas e reflexões circunspectas, é finalmente uma revista do passado.
D. Mafalda, deixem-me assim chamar-lhe, juntava à amenidade da conversa, a do caráter, que era brando e indulgente.
Quando tinha ocasião de ir passar uma noite com ela, parecia-me que as horas voavam ligeiras e que corriam mais rápidas, do que quando as gastava a distribuir finezas e galanteios às mais formosas rainhas dos mais brilhantes salões. Era sempre com vivo pesar que a via apontar para o relógio, indicando-me que a hora de me retirar tinha chegado, e voltava a minha casa com o espírito mais rico, e o coração satisfeito e melhor.
A história que vou contar-vos, minhas caras leitoras, foi-me dita por D. Mafalda num destes serões em que vos falei.
Era numa bela noite de junho; fui encontrá-la sentada na sua cadeira à Voltaire, tendo aos seus pés, deitado num cochim, o seu cãozinho querido; os olhos tinha-os semiabertos, um sorriso nos lábios, e parecia respirar com prazer a aragem, que, embalsamada pelas flores do jardim, se coava pela janela meia aberta. Quando cheguei junto dela vinha indignado porque um dos meus parentes tinha sido vítima de um abuso de confiança; contei-lhe o sucedido, e no calor da narração não poupei ao culpado as maiores imprecações, nem deixei de lhe dizer que desejava fazer-lhe todo o mal possível.
— Devagar, meu querido amigo-me disse ela não o julgava tão irascível, nem que tivesse tão pouca caridade para com o próximo. Sabe lá, se, com a vida, não tiraria ao culpado o mérito de para o futuro se poder reabilitar pelo arrependimento, e se o momento em que lhe infringisse o castigo não seria o destinado por Deus para esse arrependimento?
— Eis-aí, minha cara vizinha, uma doutrina, permita-me a expressão, um pouco subversiva da ordem social.
— Deus me defenda — replicou-me — de querer que o culpado não seja castigado, e que a sociedade fique indefesa dos crimes que um seu membro praticou contra ela; quis dizer somente que devia deixar às leis o cuidado de castigar o delinquente, e que o meu querido amigo, não devia, como individuo, fechar assim desapiedadamente o coração a todo o sentimento de comiseração por um desgraçado e infeliz, no coração do qual talvez ainda bruxelei algum clarão de virtude, que uma ocasião favorável e propícia, que se apresente, ainda pode despertar, e fazer com que esse membro da sociedade, que julga inútil, se torne bom e aproveitável.
Como eu respondesse a isto, fazendo um destes movimentos de cabeça, que são um protesto mudo e respeitoso, ela acrescentou:
— Está com paciência para me aturar ouvindo uma história, pois que ainda temos algumas horas?
Não recusei: uma história era uma fortuna para combater a exaltação de espírito em que estava.
D. Mafalda começou assim:
— Emílio da Cunha era o mais velho de três irmãos, dos quais, o mais novo, vivia há muitos anos no Rio de Janeiro, onde tinha alcançado fortuna. O segundo nunca deixou o Porto, sendo sempre infeliz nos seus cometimentos e especulações. Emílio da Cunha, à custa de muito trabalho e economias, pôde alcançar uma fortunazinha, que lhe permitia esperar com sossego, o momento de descansar da vida laboriosa em que tinha vivido.
Uma quarta pessoa completava esta família, que era uma irmã, que tendo seguido o seu marido à Índia, para onde ele tinha sido despachado, e não vindo nenhum deles a figurar nesta minha história, não lhos recordarei mais.
Aconteceu que o irmão de Emílio da Cunha, que residia no Porto, por uma destas catástrofes que ocasionam os jogos de bolsa, faliu. Teve tal sentimento por este fato, que faleceu três dias depois, atacado de uma febre cerebral. A herança, que deixou, foram dívidas e um filho.
Emílio da Cunha, que tinha um coração bondoso, e um caráter pundonoroso, para que a memória do seu irmão não ficasse desonrada, comprometeu-se a pagar as dívidas e recolheu na sua casa o filho para lhe substituir o pai, que tinha perdido; procedimento louvável, e digno de se admirar, sabendo-se que ele tinha uma filha, para quem, passados quatro ou cinco anos tinha a procurar um casamento vantajoso.
Roberto, se chamava o sobrinho de Emílio da Cunha, tinha já 15 anos de idade, mas o pai, inteiramente entregue às especulações, e aos cuidados, que elas trazem consigo, descuidou completamente a sua educação, por isso o seu retrato moral, nesta ocasião, nada tinha de vantajoso; o espírito tinha-o completamente inculto; as noções que possuía do justo e do injusto eram as mais errôneas e disparatadas; o respeito aos direitos de outrem era para ele uma invenção estúpida dos homens, condenada pela natureza, e a verdadeira liberdade consistia em fazer o mal impunemente. Se algum bom instinto, ou algum vislumbre de virtude, existia no coração de Roberto, ainda estava em embrião, porque se não tinha demonstrado. Quantas e quantas vezes, em quanto que o pai, cego pelas especulações, concentrava todas as suas faculdades intelectuais na realização de um impossível, não deixou Roberto de ir ao colégio, fazendo o que em termo escolar, se chama gazear, e gastava as horas de estudo em andar a vagabundear pelos campos e praças. Daí proveio o tomar relações com meia dúzia de garotos, ou vadios, permita-me a frase, para quem nada era sagrado nem nas ações, nem nas palavras. Daí nasceu a falta de respeito pela propriedade alheia, roubando os pomares; e o endurecimento de coração, castigando barbaramente animais inofensivos.
Emílio da Cunha reconheceu logo os maus instintos de que o seu sobrinho era dotado, e a desmoralização, que já se tinha infiltrado no seu coração, mas concebeu a esperança do regenerar com desvelos, paciência, e sobretudo bons exemplos. A sua filha, a que chamarei Valentina, de 14 anos de idade, contribuiu poderosamente para a realização deste seu empenho, tão justo e louvável. Era uma menina para quem a natureza tinha sido prodiga em encantos de rosto, de espírito e coração, a ponto de qualquer que a via a admirar, e de quem a ouvia amá-la imediatamente. Tinha uma tal influência, ou magia sobre os que se acercavam dela, que aos bons tornava-os melhores, e aos maus fazia-lhe retirar envergonhados para o fundo do coração os maus instintos. Esta magia não teve menos poder sobre Roberto, do que sobre os outros, de sorte que a regeneração que ele sofreu, nos seus costumes e ações, foi tão sensível, que o bondoso Emílio da Cunha revia-se alegre e contente na sua obra, e congratulava-se dos resultados que tinha colhido.
Deu-se porém uma circunstância feliz, mas que ao mesmo tempo foi desgraçada, que deteve Roberto repentinamente na boa estrada em que se tinha embrenhado, e na qual parecia caminhar resolutamente. Por uma carta chegada num dos paquetes ingleses do Brasil, soube Emílio da Cunha, que o seu irmão mais novo tinha falecido, deixando-o, por ele ser o seu mais próximo parente, herdeiro de uma fortuna considerável.
Bens rústicos e estabelecimentos industriais é no que consistia a fortuna, dos quais se poderia colher bons lucros, sendo bem geridos, conforme o tinha praticado o seu defunto proprietário; mas Emílio da Cunha, além de se não julgar com conhecimentos e forças para bem gerir a indústria com que o seu irmão tinha feito fortuna, não tinha desejo, nem queria expatriar-se. Foi até com imensa repugnância que se resolveu a ir ao Brasil tomar posse e liquidar a herança; parecia que um secreto pressentimento o avisava do que tinha de acontecer, levando-o a considerar como uma desgraça esta viagem, a que os sagrados direitos da sua predileta filha Valentina, o obrigavam a empreender.
Partiu finalmente, depois de ter tomado todas as precauções para a tranquilidade do seu espírito. Valentina entrou num dos colégios de educação mais acreditados do Porto, e Roberto ficou numa casa particular, onde lhe deviam prestar todos os cuidados, que exigiam a sua idade, pois que já então tinha 17 anos, e a sua completa ignorância, de que até uma criança de 8 anos poderia zombar.
Emílio da Cunha aportou a salvamento às terras de Santa Cruz, e logo que saltou em terra, desenvolveu a maior atividade, e procurou por todos os meios possíveis abreviar rapidamente os seus negócios, mas infelizmente os resultados não correspondiam aos seus esforços e desejos, porque de todos os lados, e a todos os momentos estavam sempre a surgir empecilhos e embaraços não prevenidos nem esperados. Havia já um ano que Emílio da Cunha tinha chegado ao Brasil, e ainda os seus negócios não estavam mais adiantados, que no primeiro dia.
Cansado, desanimado e afetado de melancolia, ou spleen, como lhe chamaria um nosso fiel aliado britânico, mortificado por um desassossego de que não podia explicar a causa, deliberou entregar os seus negócios e a liquidação e arrecadação da herança a um procurador, e embarcar-se no primeiro paquete, que seguisse viagem para Portugal.
Que se tinha porém passado no Porto, durante este tempo?
É o que lhe vou contar, meu vizinho, se ainda tiver paciência para me ouvir, me disse D. Mafalda, e o que vou fazer às minhas leitoras, se elas quiserem ter a mesma paciência de me ler.
Roberto, separado da sua prima, aborrecido e dominado pela preguiça, fugiu um belo dia da casa onde se achava hospedado, foi procurar, e infelizmente encontrou, os seus antigos companheiros da vadiagem, que tinham quase todos seguido a estrada do vício e do crime. Arrastaram portanto consigo o desventurado Roberto para esse despenhadeiro, na baixa do qual se encontra a escoria da sociedade. Roberto tinha por companheiros habituais homens criminosos, de cara sinistra, maneiras brutais, linguagem grosseira e vestidos esfarrapados, numa palavra mendigos, ou ladrões. Adotou-lhe portanto os costumes as maneiras e as máximas, e quem o visse emagrecido pela devassidão, com os vestidos em desalinho, os cabelos eriçados, tomá-lo-ia por um bandido de trinta anos, quando ele não tinha mais que dezenove incompletos. Valentina, pelo contrário, tinha crescido em corpo, beleza, espírito, talento e virtudes.
Conduzi-o do Porto ao Rio de Janeiro, e do Rio de janeiro ao Porto, agora, querendo-me seguir, levá-lo-ei a Lisboa, onde se passa um pequeno episódio desta muito verídica história.
De bordo de um paquete inglês, chegado dos portos do Brasil, tinha desembarcado um passageiro, que se dirigiu a um hotel para descansar, e aí passar até ao dia seguinte, em que devia seguir viagem para o Porto, na mala-posta, a fim de se vir unir aos seus filhos, que estava ansioso por abraçar e apertar contra o coração. Julgo desnecessário o dizer-lhe, pois me parece já o adivinhou, que este viajante era Emílio da Cunha, que se considerava feliz por pisar o solo da sua pátria, que tanto amava, e onde estava tudo o que ele mais prezava neste mundo. Logo que no hotel lhe prepararam o quarto e tomou uma pequena refeição, deitou-se e adormeceu, embalado por sonhos felizes.
No dia seguinte ainda o sol mal tinha despontado, já subia pela escada do hotel e entrava no corredor comum, sobre o qual deitavam uma dúzia de portas de quartos, um homem de má catadura. Era um destes cavalheiros de indústria, a qual consiste em entrar, sob qualquer pretexto, de manhã cedo nos hotéis, e aproveitar-se do primeiro quarto que encontram aberto para empalmarem destramente um relógio, ou uma mala, se o acordar do hóspede ou locatário do quarto, os não obriga a retirar-se de mãos vazias, desculpando-se de que se tinham enganado na porta.
No andar, vacilante, e como desconfiado, do cavalheiro de indústria se reconhecia facilmente, que era um noviço, que ia tentar os seus primeiros ensaios, ou que ia fazer a sua primeira escamoteação.
Depois de ter estado por bastante tempo em luta com a sua consciência, e irresoluto se devia ou não penetrar no quarto de que a porta se achava meia cerrada, meteu primeiro a cabeça, depois uma perna, e por último todo o corpo; mas fazendo algum ruído com este último movimento, o hóspede, que estava deitado, acordou, e virando rapidamente a cabeça, Roberto, porque o cavalheiro de indústria era ele, encarou o seu tio Emílio da Cunha. Ficou estupefato e como fulminado por um raio.
Nesse mesmo dia de tarde Emílio da Cunha tomou lugar no caminho de ferro até ao Carregado, e aí na mala-posta até ao Porto, onde trinta e seis horas depois se achava nos braços da sua querida filha Valentina, que imediatamente tinha ido procurar ao colégio.
— Tu sabes já, já do colégio, minha filha-lhe diz Emílio da Cunha — para retomares, e nunca mais deixares, o teu lugar ao meu lado.
— Que felicidade — exclamou Valentina toda alegre e folgazã-que vida sossegada e feliz não vamos passar todos três, não é assim meu querido pai, por que Roberto também vai para a nossa companhia?
— Roberto, morreu-respondeu Emílio da Cunha com rosto severo, e voz soturna. — Não quero que me fales mais nele, entendes Valentina?
Valentina admirada da resposta, ainda fez diversas perguntas ao seu pai, mas a todas elas não obteve outra resposta, senão a completa proibição de nunca mais lhe falar em Roberto.
Ainda porém não tinha Emílio da Cunha sofrido todas as provações, que Deus lhe destinara. Tinham decorrido seis meses desde que tinha chegado do Rio de Janeiro, quando recebeu a participação de que o procurador, que ficara encarregado da liquidação e arrecadação da herança, tinha cumprido a sua missão, mas que, depois de ter arrecadado a soma importante, que produzira a mesma herança, tinha desaparecido, sem que as pesquisas feitas para se descobrir o lugar do seu refúgio, tivessem dado o desejado resultado.
Emílio da Cunha ficou completamente arruinado por este fato, porque, impaciente por satisfazer os credores do seu irmão, pai de Roberto, tinha vendido tudo o que possuía em Portugal.
O golpe foi forte, mas ainda assim não o foi bastante para poder subjugar a coragem do bom e respeitável velho, mostrando-se Valentina nesta conjuntura, digna filha de um tal pai.
Renunciando heroicamente às comodidades da vida, em que até então tinham vivido, foram habitar, num bairro mais afastado da cidade, uma pequena casa, na qual sofreram privações diárias e penosas, tratando sempre de obter alguns recursos para a sua subsistência, mesmo em trabalhos mal retribuídos.
Valentina, que Deus tinha dotado de bom gosto, e bastante habilidade, começou a trabalhar para uma modista, a qual satisfeita com os seus primeiros trabalhos, lhos deu em seguida mais delicados e por isso melhor retribuídos, o que foi para eles uma grande felicidade, e que assim lhes proporcionou meios lícitos de pagarem regularmente o seu aluguel, e de já não recearem tanto nem o frio, nem a fome.
Valentina ia entregar a sua obra à modista, a qual satisfeita com ela lhe dava sempre mais, e muitas vezes mais do que a que ela podia fazer. A uma crise terrível tinha-se seguido uma abastança medíocre, que era por isso uma felicidade mais agradável e estimada.
Decorreram assim dois anos.
Um dia, em que Valentina estava só, lhe entregou o carteiro uma carta, e qual não foi a sua surpresa quando reconheceu a letra do seu primo.
Roberto contava nesta carta tudo o que tinha passado, desde o momento em que o vimos no hotel em Lisboa preparando-se para escamotear o seu tio. Fulminado pela vista de Emílio da Cunha tinha recobrado os sentidos para na fuga se salvar às imprecações de indignação do velho. Chegou ofegante ao
Terreiro do Paço, onde se sentou, ou melhor se deixou cair num dos assentos de pedra, que ali se acham, e assim esteve por muito tempo, com a cabeça escondida entre as mãos, mergulhado em acerbas e cruéis reflexões.
Experimentou ou sentiu dentro em si uma completa revolução; o seu procedimento indigno e infame se lhe apresentou em toda a sua nudez e hediondez; teve horror de si mesmo e por um instante pensou em suicidar-se; mas com o arrependimento entraram-lhe no coração sentimentos mais generosos. Lembrou-se que, tendo doravante uma conduta honrosa e ilibada, ainda poderia chegar a fazer esquecer os seus erros passados, e reanimado por esta feliz lembrança, que o seu anjo bom lhe tinha sugerido, levantou-se resoluto a trabalhar para a sua reabilitação, e a não descansar sem a ter chegado a alcançar.
A ocasião favorável não se fez esperar muito, porque um capitão de um navio mercante, que estava aparelhando para a Califórnia, lhe concedeu passagem gratuita, mediante os seus serviços e o seu trabalho na viagem.
Aportou Roberto à Califórnia e sorrindo-lhe a fortuna, em lugar de se embrenhar no jogo, arriscando assim as suas economias, fundou um estabelecimento, que ia prosperando, faltando unicamente para a sua felicidade se tornar completa, o obter o perdão do seu tio, e a esperança de poder tornar a ver sua prima, cuja imagem tinha constantemente na ideia, e o sustentava e animava nesta nova estrada de trabalho e ordem, de que não pensava mais em se desviar.
Eis aqui em resumo o que continha a carta que Roberto dirigiu a sua prima.
Valentina muito comovida, mas gostosa e alegre por ter de dar tão grata notícia ao seu querido pai, esperava ansiosa a sua volta.
Mal lhe deu tempo de sentar-se, ia logo a contar-lhe o sucedido, mas, Emílio da Cunha a deteve, apenas tinha pronunciado a primeira palavra. Valentina insistiu, mas o velho levantou-se com a maldição nos lábios; ela lançou-se-lhe de joelhos aos pés, chorou, suplicou, mas ele a tudo ficou impassível e inflexível.
Valentina consternada respondeu à carta do seu primo descrevendo-lhe o sucedido, e a inutilidade dos seus esforços; mas para o não desanimar prometia-lhe de os renovar, e que os repetiria até que chegasse a mover o seu pai à comiseração e piedade, de que não desesperava. A carta continha também a descrição de todos os sucessos, que se tinham dado desde que Roberto tinha desaparecido; a decadência de Emílio da Cunha, a pobreza em que tinham vivido enquanto que o seu trabalho mal retribuído lhe dava parcos meios de subsistência, e o melhoramento da sua posição, finalmente continha também algumas palavras de exortação e amizade.
A situação de Emílio da Cunha e a sua filha sofreu, passado algum tempo, uma modificação muito mais inesperada, do que a que se havia seguido ao aniquilamento da sua fortuna.
Emílio da Cunha foi chamado a casa de um capitalista, aonde lhe entregaram 20 contos de reis de que um anônimo lhe mandava dar posse a título de restituição. Donde tinha vindo este dinheiro?
Emílio da Cunha pensou muito naturalmente, que o procurador que o tinha roubado, mortificado pelo remorso, e querendo sossegar um pouco a sua consciência, lhe tinha mandado entregar aquela quantia, como uma parte da restituição, que lhe tinha a fazer. Valentina estava muito longe de concordar com a opinião do seu pai, mas nem por isso teve a franqueza de lho declarar, nem lhe dar a entender qual era a sua.
Qual das duas opiniões era a verdadeira, é o que nos não importa saber, o que se sabe é que a abastança ou decência tinha reentrado em casa de Emílio da Cunha, e as ideias do digno e honrado velho, foram-se tornando mais brandas sob a influência do bem-estar.
Foi ele próprio que num dia falou primeiro a Valentina no seu primo Roberto, e ela não perdendo esta ocasião tão propícia, que se lhe oferecia, advogou por muito tempo, com calor e eloquência, a causa do seu primo. Emílio da Cunha deixou-a falar como e todo o tempo que ela quis, sem lhe dar a mais pequena resposta, nem lhe replicar a coisa alguma.
Estaria ou não convencido?
A pergunta não tinha muito fácil resposta, mas pelo menos tinha ouvido sem cólera e com sossego as alegações a favor do seu sobrinho, o que já era um bom indício da mudança que nele se havia operado.
Valentina, contente e satisfeita com o resultado do seu primeiro cometimento, escreveu imediatamente ao seu primo informando-o do que havia, e a esta carta seguiram-se outras muitas, noticiando-lhe sempre algum novo passo dado na estrada da reconciliação.
Aconteceu um dia que Emílio da Cunha, no meio de uma conversa, que tinha seguido num objeto muito diverso, parasse precipitadamente para dizer a sua filha:
— Tu acreditas sinceramente no arrependimento do teu primo?
— Oh! sim, meu pai — apressou-se em responder Valentina.
— Queira Deus que te não enganes.
Um outro dia acordou de uma pequena sesta, que se tinha seguido ao jantar, gritando, como se continuasse uma conversa começada:
— Ah! se Roberto estivesse arrependido realmente, como tu o supões, com que prazer e alegria…
Não terminou a frase, mas a expressão benévola da fisionomia de Emílio da Cunha indicou a Valentina o complemento da ideia.
Isto foi objeto para uma última carta a Roberto, a que ele respondeu, e fechou-se a correspondência.
Uma manhã Emílio da Cunha achava-se com Valentina num a pequena, mas elegante sala, que deitava sobre o jardim porque eles tinham deixado a sua pobre morada, trocando-a por outra mais decente — Emílio da Cunha sentado junto de uma mesa, sobre a qual se achava uma magnífica jarra de flores, olhava sorrindo para Valentina, que, de pé, junto de um açafate em que estavam dois pombinhos, repreendia, acariciando-o, um deles:
— Eis-te aqui, meu belo fugitivo — dizia-lhe ela — pensavas que era só voltar para te ser concedido o perdão, depois de me teres feito sofrer com a tua ausência e ingratidão? Muito bem; visto que o teu regresso prova um arrependimento sincero, perdoo com prazer; não é assim, paizinho — acrescentou ela com voz meiga e levantando os lindos olhos com uma expressão de candura para Emílio da Cunha — que se devem receber os filhos pródigos, que regressam arrependidos e contritos?
Emílio da Cunha não deu uma palavra, mas rolou-lhe uma lágrima sobre a face.
Neste momento surpreendeu ele um olhar de inteligência, que Valentina dirigia a alguém, que estava pelo lado detrás da cadeira em que estava sentado. Voltou-se rapidamente, e soltando um grito, ouviu-se o nome de Roberto.
Era Roberto realmente. A cena que se seguiu o meu caro vizinho melhor a poderá imaginar, do que eu pintar-lha, ou descrever-lha.
Roberto voltava honrado e rico. Julgo que já compreendeu que, para socorrer o seu tio, ele concebeu e executou o plano da restituição.
D. Mafalda calou-se. Parecia esperar, que eu, convencido pela sua história, sancionasse com o meu voto a doutrina, que ela tinha expendido antes de começar.
— Ah! — disse-lhe eu com admiração sincera – vossa excelência podia facilmente escrever um romance.
— Isso quer dizer que me faz a honra de julgar esta minha história como produção da minha imaginação e fantasia?
Limitei-me a inclinar-me respeitosamente, e aqui terminou a nossa discussão.
No dia seguinte D. Mafalda ofereceu-se para me apresentar a um seu sobrinho, proprietário de um estabelecimento industrial importante nos subúrbios do Porto. Aceitei gostosa e prontamente. Fui recebido com extrema bondade e franqueza. O sobrinho de D. Mafalda gozava uma felicidade digna de ser invejada; era casado com uma mulher, que era um anjo de beleza e bondade, e tinha um filho o mais lindo e traquinas que se pode imaginar; o seu estabelecimento florescia e prosperava; o seu nome figurava entre os principais e os mais honrados do mundo comercial e industrial, numa palavra nada faltava à sua glória, fortuna, e felicidade doméstica.
— Que pensa do meu sobrinho?-me perguntou D. Mafalda, quando nos retiramos.
— Ah! minha senhora, nada mais ambiciono do que poder imitá-lo.
— Pois aquele que viu é o Roberto da minha história.
Recolhi-me a casa fazendo para mim as seguintes reflexões: Que a regeneração do homem pelo arrependimento não é utopia, e que a sociedade e a sua organização é que são as causas principais, que ocasionam que muitos dos seus membros não se regenerem, por lhe embargarem ou matarem logo algumas centelhas de virtude, que ainda tinham no coração.
Pensem, e verão o corolário que tiram.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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