quinta-feira, março 28, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasD. João Câmara

O baile dos velhos, Conto de D. João Câmara

O baile dos velhos

Houve esta noite festa rija em casa dos padeiros.
Casados há 50 anos, festejaram com estrondo o aniversário do casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu. Isso sim! Das oito à meia-noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem faltaram pares no meio da casa.
Ficou logo combinado, mal o Antônio Pataco falou naquilo: — quem não foi convidado para a boda, também não dançou naquela noite, nem comeu os leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice afora com alma e coragem; eram 12 nem mais nem menos, e os homens apenas seis, todos muito atrapalhados, (tanto mais que o prior não contava) tendo que atender a tanta senhora, não querendo escandalizar nenhuma.
A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela iluminação. Das vigas do teto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro velas sobre as mesas dos cantos. À roda da casa, no friso caiado, tinham disposto a louça branca e na chaminé um grande tronco de azinho ardia, rodeado de piorno, fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um troféu, do outro lado da casa.
Quando um homem pensa que, além daquela riqueza, o Antônio Pataco tinha mais do que outro tanto em serviço na cozinha, e que tudo aquilo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que ele tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica, fechada provisoriamente naquela noite num dos quartos do sótão da casa?
O prior velho foi quem presidiu à festa como é de ver. Está cego de todo, coitado; mas, apesar disso e de andar algum tanto acabrunhado desde que não pôde ler no missal, atendendo a ter sido quem os casara, lá se arrastou conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado à grossa bengala de castãozinho de prata, amarelada pelo uso, tremendo na mão dele, assistiu a toda a festa, até de madrugada, sacudindo em ar de aprovação a cabeça muito calva, onde apenas meia dúzia de cabelos brancos muito compridos esvoaçavam, tenuíssimos, no ar agitado.
Até à meia-noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar.
O Bento não se cansou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para não se mexer, o tamanho do ventre, que vai tomando com a idade proporções medonhas. Alguns quiseram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou, como por acaso, nas canelas do mestre-escola.
A pobre guitarra, velha também, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de fandangos antigos, e era de ver como aqueles bons velhos, talvez enganados pelo som daquelas cordas que os transportava 50 anos para trás, ouvindo aquela música alegre, que lhes trazia recordações risonhas da mocidade, criaram novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos bravos, ligeiros como arveloas sorrindo-se como se ainda se namorassem, como, havia meio século, se sorriam e namoravam.
Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher.
— Ai, rapaz! — gritou-lhe o Bento.
Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu belo calção de briche fino, o colete verde de botões de vidro, as boas polainas espanholas, parecia ter voltado aos 30 anos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito, balouçando os braços, fazendo estalar os dedos.
A mulher custou-lhe mais por causa do reumatismo; mas, apesar de muito dobrada, lá se animou. Levando aquilo muito a sério, dançou perto de um quarto de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades que noutros tempos o tornaram falado por todas aquelas aldeias.
E só a ideia daquela saiazinha amarela, remexendo-se, trêmula, por toda a casa, perseguida por aquele velho cheio de cabelos brancos e de rugas, fazia rir às gargalhadas estrondosas o prior, que não via nada e lançava o olhar incerto, ora para um lado, ora para o outro, num menear constante de cabeça.
— Está século e meio dançando — disse o mestre — escola com a gravidade do ofício.
E muitos pozinhos, e muitos pozinhos! — acrescentou o prior, continuando a rir.
Todos aplaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento.
— Não posso, não posso mais! — declarou a velhinha deixando-se cair esfalfada num tropeço, ao pé da lareira.
— Quem vem então? — perguntou o Antônio, limpando o suor.
E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando a perna, com um sorriso orgulhoso.
Muito se dançou naquela noite, em casa dos padeiros!
Mas o melhor foi a ceia.
O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antônio, muito naturalmente de propósito, sentou-o logo entre a Mariana Coxa e a Maria do Rosário. Imaginem!
Todos se lembravam ainda de quando elas, à volta da fonte, se arranharam, por detrás do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas.
Agora, muito trêmulas, muito engelhadas, de um lado e outro daquele coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços muito recolhidos, tocando quase com as barbas para cima nos narizes para baixo.
Enquanto se tomou a canja, houve um silêncio quase geral, apenas interrompido pelos recados do padeiro à velha criada Matilde ou pelos convites aos assistentes.
— O canjirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo Sr. prior. Mais uma colherinha de canja, tia Inês?
E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da boca e sorviam depois o caldo, com uns apitozinhos gulosos, fechando os olhos; alguns amoleciam na canja as côdeas de pão, e o padeiro, de pé, observando, com a concha metida na enorme terrina, lançava em redor um olhar atento de bom dono de casa, pronto para dar mais a quem pedisse.
— Senta-te e come — disse-lhe a mulher. — Que aflição!
— Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não há cerimônias Quem quiser mais peça por boca — gritou o Bento — estendendo o prato.
Mas já então a Matilde vinha trazendo os assados.
Os convidados limpavam os beiços à toalha e os homens despejavam os copos para abrir o apetite.
Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um magnífico peru ostentava a opulência das carnes aloiradas, espetou-lhes o garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladíssimo, depois de atentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua perícia, a trinchar, seguindo com olhares gulosos os bocados, que iam caindo.
O canjirão já voltara por três vezes à cozinha, quando a padeira começou a servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam caindo os baguinhos na toalha.
O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do colete.
Foi então que, depois dum segredo, que o Antônio Pataco lhe disse ao ouvido com ar de muito mistério, a Matilde saiu, entrando pouco depois com os leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas garrafas, que pôs sobre a mesa defronte do padeiro.
— Sabem, meus senhores? Garrafas lacradas por mim no dia do meu casamento. Os seus copos, façam favor… Ora adeus! O que é isso, Sr. professor? O copo maior… Então? O vinho é o sangue dos velhos.
O sangue não sei, a língua é com certeza. Instantes depois a algazarra subira de tom a tal ponto, que o professor, de pé, examinando à luz a transparência da ametista enorme que lhe refulgia no copo, teve de pedir auxílio ao dono da casa para impor silêncio à velhada.
— Meus senhores… — começou.
Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam àquela festa, puseram-se elas a gritar.
— Basta! Basta! Não queremos tristezas!
Deus me perdoe, mas está-me parecendo que o vinho lhes subira às cabecinhas brancas.
Não sei se o professor também desconfiou da coisa. Muito ofendido, todo vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a imensa berraria, pousou o copo sobre a mesa e começou a atacar o queijo, resmungando.
O Bento é que teve as honras da noite, contando histórias de sua mocidade.
Rapaz perfeito, dono de três moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o queriam.
— E mal sabes tu, Antônio, uma coisa. A tua Josefa também me esperava à porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadela!
— Que é lá isso? — perguntou o Antônio, erguendo-se, entornando o copo sobre a mesa e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho que tinha na boca.
Como o Antônio tem mau gênio, a questão esteve por um triz a azedar-se.
— Ainda tu acreditas naquele traste! — disse a Josefa levantando a mão e como que ameaçando o Bento duma tremenda bofetada.
— E verdade, sim senhores, é verdade! — teimava o Bento, estirado por cima da mesa, de colete já todo desabotoado.
Os outros velhos protestavam, rindo muito. O prior serenava o Antônio. Ele bem devia ver que tudo aquilo era troça e que o Bento estava a brincar.
— E quem sabe? — continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o aniversário do seu casamento, se eu nesse tempo não andasse meio parvo por causa ali da tia Domingas.
— Ah? — perguntou a tia Domingas, aproximando da orelha o côncavo da mão.
— Que andou meio parvo por vocemecê — explicou o prior a berrar.
A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um grande bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda comovida:
— Não me fale nesse tempo, Sr. Bento, não me fale nesse tempo!
E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do mestre-escola.
— Que tem, Sr. Mateus? perguntou-lhe o prior. — Há muito que lhe não ouço a voz.
— Vossa Reverência bem sabe que nunca fui…
— Sei, sei — interrompeu o prior. — Aqui a Sra. Bernarda que diga o que vocemecê foi. Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das janelas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sair.
O prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba rubicunda, olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de sono mal combatido.
Havia longos silêncios e bocejos profundos.
Então as velhas lembraram-se de, como havia 50 anos, acompanhar a Josefa ao quarto.
E pelo corredor a Josefa, com a sua saiazinha amarela, bordada, com largas fitas de veludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antônio, que, por brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era costume.
Pararam todos à porta.
Pela janela entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o duma serena meia claridade.
O quarto estava na mesma: o oratório defronte da porta sobre a cômoda de pau santo, à direita o baú encourado, tapado com uma chita de ramagens, ao fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas, alvejavam na penumbra.

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Havia 50 anos!

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

 
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