sábado, abril 20, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasFlorbela Espanca

O Inventor, Conto de Florbela Espanca

O Inventor

Era pequerruchinho, ainda engatinhava, e já queria ser marinheiro. A sua minúscula bacia de três palmos onde, em três litros de água, a mãe lhe mergulhava todos os dias o corpinho rechonchudo e tenro de magnólia carnuda toda aberta, já era para ele o mar, o mar imenso, a extensão infinita com todas as suas maravilhas, as suas vagas enormes, os seus embustes, as suas traições. Com as mãos pequeninas de deditos escancarados como os raios de uma estrela, audacioso e aventureiro, fazia as ondas maiores, desencadeava tempestades. Com os olhitos arregalados debruçava-se no abismo, contemplava extático as misteriosas profundidades, a água a tremer em ziguezagues irisados e o cobre da bacia a faiscar no fundo, amarelo como ouro. De vez em quando fazia naufrágio: pernas ao ar num pânico indescritível, berrava como um possesso, todo inundado, a sua bela valentia por água abaixo, procurando as saias da mãe para se agarrar como um náufrago a valer à mais pequenina tábua de salvação.
Cresceu, e com ele a sua grande mania de patinhar. A mãe costumava dizer, meio a rir meio zangada, que tinha raça de pato. De manhã, depois de almoço, saía de casa muito lavado, muito limpo, o bibe de quadrados azuis e brancos irrepreensivelmente passado a ferro, o cabelo numa risca muito direita, as botas de cordovão muito amarelinhas, para ir falar à avó, a uma avó que nunca conseguia pôr-lhe em cima os olhos cansados, ainda escuros e úmidos como duas amoras dos campos. O tanque da horta dos Senhores Ramalhos ficava a dois passos, no caminho da casa da avó. Que tentação! E se ele fizesse como o Petit Chaperon Rouge?… E se ele fosse ver a água?… Vê-la só… mais nada! Não queria rasgar o bibe, nem desmanchar a risca do penteado, nem sujar as botas, é claro! Nem por sombras! Mas por ir ver a água… só vê-la! não era caso para que, num segundo, lhe desabassem em cima todas aquelas catástrofes. Era evidente! Claríssimo… como a própria água do tanque da horta dos Senhores Ramalhos… A consciência, esse rabugento desmancha-prazeres, ia falando cada vez mais baixo, as rugas da testa, cavadas no esforço da concentração, alisavam-se, os doces olhos garços enchiam-se-lhe já do infinito prazer, da alegria triunfal e sã de se mirarem num grande espelho movediço e claro. Vencia a tentação; nem as tentações se fizeram para outra coisa… O tanque, ao longe, no meio dos salgueiros, parecia de prata; cheirava a fresco. O peito dilatava-se-lhe de satisfação. Deitava-se ao comprido sobre o rebordo de pedras, reclinava a cabecita morena sobre o braço estendido; a mão, pendida, num gesto quase sensual, afagava a água, que se abria tépida e a envolvia de doçura. E se ele descalçasse as botas e arregaçasse os calções? Poderia meter-se lá dentro; a água não lhe chegava com certeza aos joelhos… As pestanas batiam frementes como que para velar o fulgor de duas pupilas cobiçosas, a mão mergulhava mais fundo na água clara… Ai! Lá molhara a manga! E se ele despisse o bibe e a blusa?… Era melhor: não correria o sério risco de se tornar a molhar. A tentação pôs novamente o manto furta-cores da prudência, e a consciência, enganada, aprovou a sofismática verdade. Num relâmpago, como quem tem medo de refletir ou de se enganar, ei-lo que despe a blusa e o bibe. Fica um instante pensativo: o trabalho que tem para arregaçar os calções é o mesmo que para os tirar de vez e, num ar de grande decisão, resolve-se pelo remédio mais radical: despe-se todo. As botas são desapertadas num ai. De tentação em tentação, de fraqueza em fraqueza, os compromissos de consciência levam um homem honrado à prática de todos os crimes… Ei-lo completamente nu. O corpito moreno e magro de garoto azougado brilha ao sol, que, atravessando os ramos verdes dos salgueiros em volta, o vai acariciar de fugida. A água fulge chapeada de claridade de um salto, atira-se à água. Os olhos fecham-se-lhe de voluptuosidade. Há na curva das fartas pestanas escuras descidas sobre os olhos qualquer coisa da sensualidade de um corpo que mãos suaves de mulher acariciassem… A água faz um gluglu indolente e melodioso e vai espraiar-se em pequeninas vagas no rebordo de pedra. Um melro, quase azul à força de ser negro, espreita malicioso o camarada, por entre os ramos dos salgueiros, de um verde mais intenso, mais cru na tarde que sobe resplandecente. E o pequeno nada, chapinha, mergulha, estira-se, patinha como um deus das águas, ébrio de vida moça e livre, sob a carícia do sol, que lhe morde a carne morena coberta de pequeninas gotas irisadas.
As horas passam, correm velozes como gamos perseguidos. A tarde avança, o Sol declina no horizonte; corre uma brisa mais fresca à superfície da água encrespada; os salgueiros inclinam-se mais, presos da singular melancolia que as coisas tomam ao sentir os furtivos passos da noite… O garoto acorda do seu êxtase. O meu Deus! A primeira impressão é desagradável: é uma impressão de frio, de angústia, de remorso, que lhe aperta a alma de passarinho. Depressa: um salto para o rebordo de pedra. Enfia os calções num segundo, veste a blusa ao contrário, os botões do bibe, mal seguros, saltam-lhe todos sob os movimentos convulsivos das mãos. As meias, das avessas. Agora as botas… os atacadores: três voltas em redor da perna e pronto! Não há tempo para apuros! Meu Deus! É quase noite! Debruça-se na água: o cabelo, encharcado, cai-lhe em melenas sobre a testa. Parece um ladrão! Que irá dizer a mãe? E a avó, coitadinha?! Os olhos enchem-se-lhe de lágrimas, sobem-lhe soluços à garganta, mas, como é valente e já sabe, tão pequeno ainda, tomar corajosamente a responsabilidade dos seus atos, enxuga à pressa as lágrimas à ponta do bibe molhado, engole os soluços, e, assobiando uma música de que é laureado compositor, mãos nos bolsos, cabeleira ao vento, toma galhardamente o caminho de casa.
A mãe recebe mal o pequenino fauno; depois de um ríspido sermão que ele não entende, despe-o de repelão, dá-lhe de cear, e mete-o na cama sem o doce beijo das boas-noites. A alma de passarinho faz-se ainda mais pequenina, a boquita amuada alonga-se num beicinho triste, volta-se para a parede numa grande renúncia de todas as coisas boas deste mundo, e fica-se a dormir como um bem-aventurado.
De noite, porém, não tem sossego. Sonha com o tanque; põe a cama numa desordem indescritível, toda a roupa num alvoroço; os braços e as pernas são uma dobadoura. A mãe, que se levanta a cobri-lo uma dúzia de vezes, não pode deixar de sorrir ao vê-lo nadar, muito aplicado, com uma expressão de grande seriedade, sobre o travesseiro, com a camisa de noite arregaçada até ao pescoço.
Na escola, mais tarde, é um tormento para lhe captarem a atenção, toda virada para o exterior, incapaz do menor esforço de concentração; não está um momento quieto, todo ele é movimento e vida. Das folhas arrancadas aos cadernos de contas e aos livros, faz espetaculosos chapéus armados de almirante, constrói frotas poderosíssimas, que põe a navegar no mar largo de uma grande barrica, onde a professora guarda a sua provisão de água com que, ao cair da ardente tarde alentejana, mata a sede às violetas e aos lírios do seu pequeno jardim de padre-cura.
Adormece, abraçado a um barco de cortiça e velas de pano-cru, que o pai lhe deu num dia de anos. Os presentes de Artaxerxes fá-lo-iam sorrir de desdém perante a dádiva principesca.
Já homenzinho, nas longas noites de Inverno, acocorado à chaminé onde o madeiro crepita, lê embevecido, horas a fio, todo o Júlio Verne, histórias de piratas e corsários; o navio-fantasma enfeitiça-o; os naufrágios heroicos entusiasmam-no; foi durante anos todos os capitães de navios naufragados, morrendo no seu posto, aos vivas a Portugal!
No liceu sonha com a Escola Naval: é uma ideia fixa. Põe a um gato abandonado, repelente, todo pelado, encontrado numa suja travessa das imediações do liceu, o nome de Marujo-, a uma galinha, a quem endireitara uma perna quebrada, ficou-lhe chamando Canhoneira; o cão, seu companheiro de folias, chamava-se Almirante.
No dia em que pela primeira vez envergou a linda farda da Escola, quando o estreito galão de aspirante lhe atravessou a manga do dólman azul-escuro, foi como se São Pedro abrisse diante dele, de par em par, as bem-aventuradas portas do paraíso. Era marinheiro! Sabe lá a outra gente o que é ser marinheiro! Para ele, ser marinheiro era a única maneira de ser homem, era viver a vida mais ampla, mais livre, mais sã, mais alta que nenhuma outra neste mundo! O seu forte coração, sedento de liberdade, era, no seu rude arcabouço de marujo, como um pequeno jaguar saltando do fundo da jaula, estreita e lôbrega, contra as barras de ferro que o retêm afastado da selva rumorosa.
Ao pôr pela primeira vez o pé num navio, lembrou-se do tanque da sua infância e sorriu; o mesmo clarão de dantes, de fascinação e de triunfal alegria, iluminou-lhe os olhos garços; as pálpebras tiveram o mesmo estremecimento de voluptuosidade e cobiça. O rio sempre era maior que o tanque de outrora…
Quando viu fugir Lisboa, afogada nas sombras violetas do crepúsculo, e se lhe deparou todo o mar na sua frente, a sua alma audaciosa, rubra do sangue a escachoar dos seus irrequietos vinte anos, tomou posse do mundo num olhar de desafio!
Quando voltou, porém, meses depois, vinha desiludido, furioso contra o seu sonho, que se tinha ido quebrar, como todos os sonhos, insulso e embusteiro, de encontro à banalidade ambiente. Aquilo, afinal, era uma maçada, uma tremendíssima maçada! O mar, todo igual, monótono embalador de indolências. Não havia corsários nem piratas; o navio-fantasma era um fantasma dos seus sonhos de outrora. O mar era muito mais lindo nos livros e nos quadros. Os poetas e os artistas tinham-no feito maior do que ele era; afinal, era pequenino como o tanque, acabava ali perto… Não tinha sido preciso arriscar nem uma só parcela de vida; não havia no seu navio mulheres e crianças a salvar; não havia naufrágios heroicos; o capitão nem uma só vez teve ocasião de ir ao fundo, no seu posto, aos vivas a Portugal! E sorria com uma grande ironia nos olhos claros de expressivo olhar de lutador.
Renegou o seu culto sem pesar nem remorsos, com a mais completa das indiferenças, e, de um dia para o outro, o mar que tinha sido a grande quimera da sua ardente imaginação de meridional, que tinha sido a sua noiva, a sua amante nos dias felizes da adolescência, foi atirado para o lado, no gesto negligente de um bebê que atira pela janela fora uma concha vazia.
“Aquilo afinal era uma maçada, uma tremendíssima maçada”, e os olhos claros, investigadores, de olhar acerado como o das aves de rapina, procuraram ardentemente outra coisa. Franziu os sobrolhos no ar recolhido e concentrado de quem excogita, de quem procura uma solução difícil… Olhou o céu profundo… e achou! Um avião! Era aquilo mesmo. Ser aviador é melhor que ser marinheiro! É abraçar no mesmo abraço o céu e o mar! Na linguagem dos símbolos, a âncora, definindo a esperança, nunca poderá valer às asas que são a libertação. A âncora agarra-se ao fundo e fica, as asas abrem-se no espaço e penetram o céu como um desejo de homem a carne palpitante de uma virgem que possui. Seria aviador! E foi.
Quando pela primeira vez voou, não se esqueceu de sentar na carlinga, ao seu lado, ao lado do seu coração, aquela que dali em diante seria a companheira de todos os dias, a companheira indefectível de todos os aviadores: a Morte.
Mas um dia começou a pensar que aquilo assim não tinha jeito: queria ver o céu coalhado de asas como o mar de velas, queria ver asas por toda a parte. O homem podia lá estar à mercê dos espasmos da Natureza, dos seus caprichos, dos vendavais, dos nevoeiros, das manias de um motor?! Podia lá ser! Revoltado, franze a testa, encrespa as sobrancelhas, reflete, pesa os prós e os contras, resolve-se… e lá vai ele à conquista da sua nova quimera, do seu novo velo de ouro!
Havia de inventar um motor perfeito, sem caprichos nem manias; das suas mãos sairia resolvido o árduo problema. Não teria sossego nem descanso enquanto não conseguisse animar com o poder da sua inteligência e da sua vontade a inércia do ferro e do aço, enquanto não desse forma palpável ao seu novo sonho, ao seu poderoso sonho de orgulho, do trágico orgulho humano que desencadeia as avalanchas e arremessa sobre as cabeças erguidas os maus destinos à espreita.
Trabalhou dia e noite. Fugiu dos camaradas, do bulício do mundo e das suas tentações. Como um trapista na sua cela, encerrou-se no seu grande desejo, e teimou, teimou, sem um desfalecimento, sem uma quebra de vontade, da sua vontade que ele tinha erguido até ao máximo, que ele tinha educado até pedir-lhe tudo, até agrilhoá-la de pés e mãos, chicoteada e vencida, à sua grande ideia, ideia que era o seu máximo estímulo: difícil, está feito; impossível, far-se-á.
Às vezes caía exausto, com a cabeça pendida sobre a secretária onde passara a noite a alinhar cifras, a enegrecer de algarismos folhas e folhas de papel. Passou um ano, um imenso rosário de horas, brancas e negras: horas de entusiasmo, horas claras que tudo iluminavam em volta — em que tudo parecia fácil, luminoso e claro; horas de desilusão, de fadiga, donde saía mais firme na sua resolução, as rugas da testa mais cavadas, o olhar mais profundo, mais cheio da ideia fecunda que o trabalhava.
Um dia, julgou ter achado! Oh, aquele dia! A embriaguez do homem que se igualou a Deus! O coração a bater, a bater, a sentir-se grande demais para um peito tão pequeno, para um tão mesquinho destino! A umidade das lágrimas a embaciar o olhar gigante que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu! O artista, o poeta, o inventor de novos símbolos, de novas formas, o criador de movimento e de vida, todos os que desbravam caminhos, os que talham, abrem, por entre os matagais selvagens e os campos estéreis da ignorância e da banalidade, as belas estradas largas do pensamento e das ideias, esses que me compreendam e que o compreendam! As palavras são o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes ideias claras.
Nunca fora tão feliz nem se sentira tão desgraçado! Os dias que se seguiram foram um tormento delicioso, um inquieto inebriamento que o trazia como que pairando acima das realidades terrestres. A montagem das peças, as experiências, todo o gozo paradisíaco dos seus sonhos realizados, arrastavam-no para além da vida, para além do mundo sensível, numa esfera de quase loucura, de múltiplas sensações inverossímeis, de emoções profundíssimas e raras. Manejava as peças uma por uma, em gestos de uma infinita suavidade, com um olhar, com um sorriso de ternura, que faria ciúmes a uma amante.
A tarde da definitiva experiência, experiência que dera a certeza dos mais belos resultados, passou-a ele numa febre de orgulho, em cálculos de ambição, de glória e de riqueza, como um monarca doutros tempos contando o ouro e as pedrarias que as caravelas lhe traziam das misteriosas índias longínquas.
À noite, depois dessa tarde memorável, depois do motor desmontado, dos preciosos papéis fechados num envelope lacrado, depois da carta escrita ao diretor da Aviação, a quem pedia nomeasse uma comissão para avaliar os resultados práticos do novo motor que tinha inventado, com a cabeça a escaldar, o pulso como um cavalo a galope, febril, ansioso, resolveu sair, dar um passeio sozinho, procurando como um calmante a fresca aragem da noite, que descia sobre a cidade frenética como um monge sereno e plácido, de negro capuz, a murmurar orações confusas.
No seu passeio, procurou instintivamente as ruas escuras, as ruas solitárias; depois de dezenas de voltas e reviravoltas, sem saber como, foi dar consigo à beira do Tejo. Um degrau de pedra formando um esplêndido banco, ali próximo; esta aparição foi providencial à sua fadiga: sentou-se. Olhou o rio que faiscava à claridade da pálida Lua de Agosto.
As grandes carcaças dos navios imóveis manchavam o rio de esguias sombras escuras. Pensativo, apoiou a cabeça nas mãos, os cotovelos nos joelhos… E uma grande paz desceu subitamente sobre ele, vinda da noite, da escuridão, talvez do seu humilde destino de homem; entrou-lhe no coração cansado como uma branda lufada de ar puro num quarto abafado de doente. Realizara os seus sonhos, todos os seus sonhos! Que havia mais agora?… Já os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais, às cóleras brutais da Natureza; já o céu se podia coalhar de asas como o mar de velas. Todo o homem poderia ter, sem perigo e sem riscos, a cobiçada sensação de comandar nos elementos como um semideus. À ideia de toda a gente andar lá por cima com a tranquilidade de quem rola de elétrico, o seu sorriso de gavroche doutros tempos, deu-lhe ao rosto a maliciosa e amarga expressão de quem ousa tocar num mistério sagrado e pueril.
Sem riscos?… Sem perigos?… A ideia que a princípio o fizera sorrir, trouxe-lhe agora à mente um mundo de coisas em que nunca pensara. Sem riscos?… Sem perigos?… Pôs-se em pé de um salto. A frase, assim, nua e crua, revoltava-o. Num relance, abrangeu todo o alcance da sua obra, do seu esforço titânico, de tudo quanto tinha realizado. Ah, não! Isso não! Mas era uma cobardia, afinal, o que ele tinha feito, o que ele alcançara depois de dias e noites de um trabalho de gigante. O seu grande invento, donde tirara toda a sua soberba, onde filiara todos os seus cálculos de ambição e de glória, não passava, afinal, de uma má, de uma feia ação, de uma cobardia! Um aviador, um cavaleiro sans peur et sans reproche, que toma posse do céu, que abre as asas gloriosas sem riscos, sem perigos, como um simples burguês que rola de elétrico cá por baixo?! Um aviador que não brinca, sorrindo, com o seu mau destino; que não vence com um piparote as horas más, as tirânicas forças da Natureza sempre em luta, terrível descobridora de desalentos; um aviador que não é senhor do céu, da terra e do mar, à força; que a não dobra como a cabeça vencida de uma amante rebelde entre os seus braços de aço; um aviador sem mascote, sem audácia, sem panache — é lá um aviador!… Não passa de um soldado que deserta às primeiras balas!… Um aviador sem a sua companheira vestida de negro, toucada de luto ao seu lado, ao lado do seu peito, na carlinga?! A Morte!…
A esta ideia, um brando sorriso encheu-lhe novamente o rosto de claridade. Não! ele não a amava… ele não amava a Morte, não!… mas era-lhe indispensável e doce como o mal da saudade, era-lhe precisa ali, ao seu lado, a lutar com ele, enrolando sem descanso o fio da sua vida moça e ébria de audácia entre os seus dedos sem piedade. Era-lhe indispensável, precisava de lhe sentir o hálito gelado, de a sentir debruçada sobre o seu ombro, a arrastá-lo para longínquos e ignotos países de aventura, onde seria bom, talvez, aportar um dia, nervos cansados, cabeça esvaída, braços pendentes na suprema paz dos supremos abandonos…
Dominado por uma invencível obsessão, de novo febril, ansioso, atravessou à pressa as ruas escuras, as ruas solitárias, caminho de casa. Galgou as escadas a quatro e quatro, empurrou a porta de repelão, entrou no quarto, deu volta ao comutador, e o seu olhar foi cair imediatamente, instintivamente, sobre o grande envelope branco lacrado a vermelho vivo.
Abriu a janela de par em par sobre o bulício da rua, e então, serenamente, distraidamente, num ar de quem pensa noutra coisa, foi-se entretendo a lançar o vento, como quem atira pétalas murchas, os pedaços rasgados dos preciosos papéis que horas antes lá encerrara e que representavam o melhor do seu esforço, o fruto abençoado das suas febres, o triunfo das noites de vigília, as asas do seu sonho feérico, da sua doirada quimera perseguida e vencida!
Foi depois às peças do motor, meteu-as dentro de uma mala. Dar-lhes-ia destino ao outro dia; o fundo do mar, talvez…
Feito isto, como um justiceiro em paz com a sua consciência, deitou-se, e dormiu descansado como havia muitas noites não dormia.
No dia seguinte de manhã, quando o avião sulcou de novo os ares como uma grande gaivota pairando sobre o rio, o aviador olhou para o lado, ao lado do seu peito, na carlinga, e sorriu à companheira invisível que não quisera expulsar.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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