quinta-feira, novembro 14, 2024

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Aluísio AzevedoContos, Crônicas e Poesias

O Touro Negro, Conto de Aluísio Azevedo

 

O Touro Negro

A notícia de uma estrondosa corrida de touros, que se ia dar na velha cidade da Galiza, onde nessa época me achava, assanhou o povo como por encanto, pondo-lhe o ânimo num estado de alegria do qual estava eu bem longe de o supor capaz. Viria como primeiro Espada e chefe da “cuadrilla” o guapo Torbellino, dono então por alguns instantes da cruenta alma espanhola, sem conseguir, está claro, com esse passageiro namoro, distrai-la completamente da sua sádica paixão por Lagartijo e Frascuello.

À boa nova começou logo a chamar gente de todas as cidades e povoações vizinhas. Ninguém por ali em volta resistia ao sôfrego desejo de vir buscar o seu quinhão de sensações violentas, que tão grata tourada prometia, e gozar o seu bocado de sangue fresco, que havia tanto tempo já se não gozava por aquelas alturas. Dir-se-ia que os restos da sacrossanta Espanha de Torquemada e de Filipe II, não se podendo saciar como dantes, nos bons tempos como o capitoso sangue dos heréticos e dos ímpios, se contentava agora, em falta de melhor, com o inócuo sangue de bois e de cavalos, Sempre na esperança, todavia, de qualquer acaso feliz que viesse enriquecer a festa com o apreciável sangue de algum toureiro desastrado.

E já não havia meio de conter a sofreguidão pública pelo prometido regabofe, quando chegara afinal o grande dia, deslumbrante ao vivo sol de Agosto e aclamado ardentemente pelo povo como um dia de glória nacional. Houve salvas e toques de corneta ao romper d’alva. Das duas da tarde em diante, as principais ruas da cidade, no meio de uma poeirada de cegar, transformaram-se em estrepitosas torrentes de carruagens, carroças, ginetes, e peões de toda espécie, que lá iam, em ansioso alarido, desaguar na praça de touros..

À entrada do circo, donde vinha um quente. rumor de caldeira a ferver, homens de má catadura, com grandes tabuleiros amparados ao ventre e suspensos do pescoço por grossa correia do couro cru, ofereciam aos circunstantes, não refrescos, frutas e flores, mas navalhas e facas de todos os feitios e tamanhos. Mais adiante, viam-se outros a vender, em vez de doces e confeitos, chouriços, paios e lingüiças, e ouviam-se ainda outros, cercados de barris e garrafões, apregoar vinho, azeitonas e aguardente. Em volta dos felizes que entravam para assistir ao espetáculo, rilhava invejosa a matilha dos que ficavam cá de fora sem poder fazer outro tanto, e um enxame de mulheres, de laço de cor à cabeça, doidejava em redor dos sujeitos que se dirigiam aos corretores de bilhetes, suplicando-lhes, a sorrir ansiosas, uma senha de entrada em troca de tudo que elas lhes pudessem dar com o corpo, e mendigos berravam por outro lado, lanceando o espaço com os dedos hirtos, a reclamar esmolas como quem reclama justiça no meio de caifases, e atiravam para o ar o nome de Deus e das virgens num intenso diapasão de pragas; ao passo que os guardas civis, sombrios debaixo do seu reluzente chapéu de oleado em forma napoleônica e da sua enorme capa, rondavam de um lado para outro, cruzando-se com os chulos de facha encarnada e as manolas de trunfa alta, que também rondavam, mas com fins inteiramente opostos.

O corredor do anfiteatro estava ensalsichado de espectadores até a boca, e lá dentro, tanto do lado da sombra como do sol, não havia lugar vazio. Meu banco felizmente era à sombra, e eu via palpitar no lado contrário, em plena luz, os leques de milhares de espectadores de ambos os sexos, lembrando borboletas presas pelos pés e doidas por voar; as sombrinhas de todas as cores, as vistosas mantilhas e as roupas claras tinham, nessa vasta e iluminada banda do circo, um aspecto tão alucinador, que parecia ser a expressão palpável daquela infernal algazarra, feita da rixa e riso, e da qual os palavrões obscenos se destacavam, iguais a esses estalos mais fortes que rebentam por entre a constante crepitação de um incêndio na floresta virgem. Ouviam-se de todos os lados sonoras pragas e alegres exclamações de arrancar couro e cabelo; à minha esquerda, uma família em que havia meninas menores de quinze anos, manifestava o seu entusiasmo pelo mesmo depilatório sistema, e aqueles castos ouvidos recolhiam palavras capazes de fazer tremer a um soldado, que não fosse espanhol; à minha direita o chefe de outra família, sem dúvida não menos honesta que a da esquerda, empinava de vez em quando uma formidável borracha de vinho, a que ele chamava “bota”, e fazia também beber aos seus por igual sorte, entremeando os sucessivos tragos com tarascadas de chouriço, partidas rente da boca por uma navalha, de inquietadoras proporções.

Cinco minutos antes das quatro horas, momento marcado a rigor para começar a função, a berraria recrudesceu, preparando-se já para protestar, mas o alcaide da cidade, pomposo nas suas insígnias, assomou logo no camarote de honra, acompanhado pelo presidente da corrida, cumprimentou cerimoniosamente o público, e uma vibrante cometa militar, acolhida com tumultuosos regozijos, deu o sinal de abertura. Rompeu então a banda de música a tanger uma marcha dobrada, escancararam-se as grades de um portão no lado oposto ao da entrada de espectadores; e entre aplausos gerais a “cuadrilla” fez a sua solene aparição na liça.

Vinha na frente, a cavalo, o Primeiro Espada, o guapo Torbellino, todo agaloado, com chapéu de plumas e botas de canhão empunhando senhorilmente o seu bastão de chefe; seguiam-se os bandarilheiros e capinhas, a dois e dois, numa vistosa ala de cinco pares, todos a gingar, brilhantes nos seus bordados trajos de jaqueta curta e calção justo, o braço esquerdo dobrado por debaixo da capa vermelha e o direito solto, acompanhando os requebros do corpo; fechavam o séquito os picadores, em número proporcional, formados de três a três, com brutais perneiras de chumbo e lanças formidáveis, cavalgando velhas alimárias, tristes e alquebradas, que ali vinham, depois de uma dura vida de trabalhos no campo ou nas cidades, para ser, em recompensa dos seus bons serviços, escorneados por companheiros de martírio.

Feita a apresentação, separados da “cuadrilla” os toureiros que tinham de ficar na praça e correr o primeiro touro, fechado de novo o portão por onde vieram, bem vendados os olhos aos cavalos dos picadores, para que não fugissem espavoridos ao perigo, a cometa deu novo sinal, abriu-se daquele mesmo lado uma cancela, e a vítima designada surgiu a galope, estacando logo, porém, em pleno circo, fascinada e aturdida no meio de toda aquela estrondosa berraria, a olhar perplexa para todos os lados, até que, como se só então desse pela presença dos capinhas, investiu contra um deles.

Estava travada a pugna.

E começaram a repetir-se defronte daqueles milhares de olhos ávidos as estafadas sortes e passes, que há séculos a Espanha vê e revê sempre com o mesmo entusiasmo, e que sempre aplaude com a mesma convicção patriótica. Os capinhas, como há cem anos, atormentavam a pobre besta, negaceando defronte dela com as suas irritantes e traiçoeiras capas vermelhas, ou os bandari1heiros lhe espetavam na espádua e no pescoço farpas carregadas de enfeites e às vezes também de fogo, ou então os picadores lhe apresentavam as ilhargas das suas deploráveis cavalgaduras para que o enfurecido animal as destripasse ferozmente e também como há cem anos, se o mísero cavalo não morresse logo à primeira agressão e ainda se pudesse equilibrar sobre as patas, recolham-lhe de novo ao ventre os intestinos, cosiam-lhe o couro com alguns pontos apressados, e de novo o ofereciam sempre com a venda nos olhos aos truculentos Cornos, e afinal, ainda como há cem anos, quando o touro se achasse já bem cansado e exausto, o matador se apresentava defronte dele com a sua gloriosa espada e lha enterrava na cerviz até matá-lo. Fidalgo, gesto que sempre teve o condão de arrancar do público espanhol delirantes manifestações de aplauso, traduzidas não só em brados de louvor e em flores, ali mesmo arrebatadas do próprio colo ou do próprio toucado pelas mulheres, mas muitas vezes também em ricos lenços de renda, finos leques e até jóias preciosas, que lá iam cair aos pés do triunfador de envolta com charutos, cigarros e moedas de prata arremessadas pelos homens.

Só a quinta e última corrida da tourada, graças ao imprevisto das circunstâncias que se deram nela, discrepou daquele venerável ramerrão, e por isso mesmo foi a única digna de ser contada.

O touro então a correr era um belo animal negro e reluzente, com os cornos curtos e afilados como os de um búfalo.

Ao abrirem-lhe a cancela, ele invadiu a praça num formidável e insólito galope, centrípeto e cerrado, e a circulou repetidas vezes, com tal velocidade e tamanha fúria, atropelando tudo por tal modo, que foi logo uma debandada geral em toda a arena; os capinhas e bandarilheiros voaram por cima da trincheira, sem quase lhe tocar com a mão, e os picadores, chumbados aos seus pretensos corcéis, abeiravam-se dela e eram às pressas colhidos lá de dentro e carregados no ar, a pulso, como manequins de pernas tesas, entretanto que os expiatórios rocinantes, abandonados e às cegas, iam recebendo cornadas por conta própria e pela de todos os lidadores que desertavam o campo. Eram três os míseros, e os três pouco tardaram a cair mortos, enchendo de sangue o chão já coalhado de restos das capas, sombreiros, lanças bandarilhas e outros despojos, que o touro espezinhava com raiva rugindo de cabeça erguida.

público, a patear e a trapejar com as bengalas, protestava em delírio contra a ausência dos toureadores no lugar do perigo, e reclamava, a berros loucos, novos cavalos na praça como estabelecia o regulamento das corridas E essa feroz reclamação de “chair-au-taureau” encheu muitos minutos, que foram até aí os mais estrepitosos da tourada.

Era tal o fragor, que o touro pela primeira vez se mostrou atordoado e se pôs a correr à toda, procurando instintivamente uma aberta qualquer, por onde fugir àquela diabólica tempestade que bramia em redor dele e parecia querer tragá-lo.

A tempestade se acalmou quando de novo se abriu o portão, para dar passagem a outra turma de três picadores, desta vez precedidos por todos os toureiros da “cuadrilla”, que foram entrando de cambulhada e dispostos para tudo. Torbellino, agora vestido de seda cor de esmeralda recamada de galões de ouro, trazia consigo uma cadeira, cuja magistral sorte figurava no programa da corrida em letras garrafais.

Mas o tremendo adversário não lhes deu tempo para negaças, e de roldão foi investindo sobre um dos picadores, que logo desabou da sela como um S. Jorge, e ao qual era preciso acudir antes de mais nada e carregar prontamente dali, se o não queriam ver num ápice acabar nas pontas do touro. E para este distrair e arredar daquela zona durante a subtração do picador em apuros, armou-se em volta dele uma agitada tropelia, enquanto os outros dois cavaleiros, bem cientes do que os esperava, tratavam de chegar-se à salvadora trincheira, contra a qual de fato eram em poucos segundos arrojados impetuosamente com as suas cavalgaduras, apesar de receberem a ponta de lança o cornígero agressor.

Derreados os cavalos e eclipsados os picadores o touro fez-se de todo para os capinhas, que, aliás, não conseguiram capear uma só vez e quando muito só lograram enraivecê-lo ainda mais. De cada feita que o quadrúpede arremetia sobre um deles saíram-lhe os outros pelos lados, agitando as capas, sem lhe dar tempo a marear alvo para o assalto. Todo o empenho dos toureiros era fatigá-lo, a ver se desse modo alcançavam equilibrar as forças em ação e obtinham, para decoro profissional, realizar algumas sortes, embora das mais simples, como o passe da Verônica ou da Navarra.

O touro, com efeito, apesar de sempre árdego e rebelde, já dava mostras de cansaço e parecia já não acometer com a mesma veemência, tanto assim que Torbellino, sem se poder conformar com aquela vergonhosa corrida composta só de correrias de um para outro lado da praça e repetidas escaladas à trincheira resolveu salvar a situação com um golpe da. audácia e declarou que ia executar imediatamente a sua famosa sorte da cadeira.

O público aclamou-o de novo mas desde que ele, com um par de farpas na mão direita e a cadeira na outra se pôs a bater com aquelas, chamando o touro à cita., este, em vez de partir de cara, como era de esperar, torceu de banda, antecipando-se assim no ardiloso requebro que o toureiro contava fazer, e repontou-lhe pela esquerda, sem lhe dar tempo senão para fugir. De sorte que os papéis singularmente se trocaram, o toureiro não toureou e o touro toureara, e Torbellino lhe teria sentido o gosto dos cornos se não se livra tão depressa, abandonando ao adversário as farpas e a cadeira, que voou logo em estilhas pelos ares.

O pior, porém, é que o demônio do animal se lhe ferrou no encalço, e começou a persegui-lo a galope cerrado por toda a volta em redondo da praça, sem fazer caso dos capinhas que tentavam desviá-lo da porfia. Torbellíno, afinal, com inaudita destreza, agarrou-se na carreira que levava à borda da trincheira e a transpôs de um salto; o touro, porém, não menos destro, galgou-a atrás dele, rastejando-lhe a pista.

E então é que foram elas! No interior da trincheira havia como sempre refúgios e defesas, mas a tudo levava o touro de vencida, ameaçando até as primeiras filas de espectadores. O pavor não podia ser maior. Na inversão dos pontos de perigo, via-se agora encher-se a arena com os que a invadiam, saltando a trincheira falsa em busca de segurança, e era lá para dentro que acorriam os capinhas em perseguição do intourejável boi.

Ah! não havia dúvida que a quinta corrida, se, pelo seu imprevisto, ia bem para grande parte do público, ia positivamente muito mal para os toureiros. Das farpas e bandarilhas destinadas ao feroz bicho, nenhuma lhe chegara a picar o couro; das lanças dos picadores que o atingiram, a nenhuma foi dado conservar-se inteira, e dos últimos três cava]os sobrevindos, só um vivia ainda, e esse mesmo já ferido nas costelas e mal se podendo ter nas pernas.

Agora, o que os espectadores reclamavam nos seus implacáveis berros, era a presença do touro na praça; felizmente, porém, já lá dentro tinham conseguido encurralá-lo, e não tardou a que o restituíssem no público.

Vinha cansado e vinha colérico. ~ surgiu, entretanto, na liça, encapotou logo, assestando para frente, cornos afilados, e desembestou, tal qual ao iniciar a corrida, no seu centrípeto galope a que nada resistia.

A praça esvaziou-se inda uma vez, e o touro, bem senhor dela, como para completar a sua vitória. arremeteu contra cavalo já ferido de morte, único sopro de vida que ali respirava. A pobre cavalgadura jazia encostada à trincheira, com os olhos sempre vendados, e com o sangue a desfilar-lhe por entre as costelas partidas. Ao primeiro assalto caiu logo, mais de costa que de flanco, agitando as patas no ar. O touro acometeu-o de novo, engolfando-lhe no ventre os cornos por inteiro e revolvendo-lhe as entranhas que arrancou afinal de todo para fora.

O desviscerado escorjava-se, ululando, num tremor de todo o corpo, e o touro, a saciar nele a sua tremenda cólera, só recolhia as armas para as cravar de novo com mais fúria. Depois, não conseguindo nelas levantar a vítima e arrojá-la, como um despojo vil, por cima da trincheira, se desforrava em mergulhar de todo a cabeça no arrombado ventre do agonizante, esfocinhado lá dentro na sangrenta lameira dos intestinos.

O público, empolgado por tão cruenta ferocidade, esqueceu-se dos toureadores, para dar todo o seu entusiasmo ao touro. Os aplausos rebentaram do anfiteatro em peso mais delirantes do que nunca, e o inconsciente herói como se os compreendera, sacou a cabeça das entranhas do cavalo para encarar orgulhoso a multidão, apresentando-lhe uma hedionda máscara vermelha e verde, feita de estrabo e de sangue.

Redobrou o entusiasmo, e uma ânsia febril apoderou-se dos espectadores.

– Que lo maten! Que lo maten!

E a nuvem dos toureiros acudiu de novo à praça. O touro, na sua imediata investida, viu-se logo cercado por todos os lados, e, arquejante de cansaço, já sem força para os repelir, escamava a terra com as patas dianteiras.

– Que lo maten! Que lo maten!

Um lúgubre toque de cometa deu o sinal de morte. Pela primeira vez, fez-se no circo um pouco de calma quase silente na qual se sentia resfolegar a velha alma espanhola

E o guapo Torbellino na sua linda roupa cor de esmeralda, perfilou-se defronte do touro expondo-lhe a capa vermelha, debaixo da qual se escondia a lâmina fatal. O adversário, de cabeça baixa, a arfar com o corpo todo, recuava defronte dele, negando-se à provocação; mas os capinhas tanto o instigaram e tanto o enredaram nos seus mil ardis, que o condenado foi afinal colocar-se diante do Matador, em posição favorável para receber o supremo golpe.

Torbellino não deixou fugir a vez. Aprumou-se, mediu o bote e, com um gracioso salto de mestre, enterrou-lhe até os punhos a espada na raiz do pescoço, por entre os cornos.

A arma ficou no corpo do ferido, e este estacou, como surpreso do que se passava por dentro dele. O Matador aproximou-se então da sua vitima, puxou-lhe da cerviz à ensangüentada espada e bateu-lhe com ela desdenhosamente na cara.

O touro deu ainda um arranco, que era já de moribundo, a cambalear, cruzando as pernas da frente, e foi cair ao lado do último cavalo morto.

Levantou então a cabeça e abriu os seus olhos de animal vindo ao mundo para ser bom e forte. Da boca escorria-lhe sangue, mugiu soturnamente, e nesse mugido ia toda a lamentação de sua alma simples pelos campos verdes e amigos, que ele tivera de deixar para vir morrer ali tão cruamente nas mãos de bárbaros.

E por fim, deixando pender a cabeça sobre o flanco do companheiro de sorte, suspirou muito repousadamente como um ente humano quando adormece.

Nápoles, agosto de 1910.

 

   

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