quinta-feira, março 28, 2024

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Contos, Crônicas e PoesiasFlorbela Espanca

Os mortos não voltam, Conto de Florbela Espanca

Os mortos não voltam

— Tenho a certeza de que os mortos não voltam.
O velho e simpático Dr. X, quebrando o silêncio em que se tinha emparedado toda a noite, fez esta estranha afirmação num tom tão peremptório, com uma tal firmeza de acentuação, com uma tão grande autoridade, que a sua frase, balde de água gelada na exaltação do grupo, fechou a discussão como por encanto.
— Os mortos não voltam — repetiu.
Todos os olhares convergiram para ele. Impassível, eixo da curiosidade geral, puxou mais a cadeira para o vão da janela aberta de par em par sobre a noite cálida e estrelada de agosto. Sacudiu a cinza do cigarro, aspirou uma lufada de ar carregado dos aromas dispersos do jardim e do mar, e continuou tranquilamente:
— Eu explico a minha afirmação… e o tom em que a proferi — acrescentou, com um dos seus belos sorrisos, de cujo encanto tinha o segredo e que eram talvez a mais clara explicação dos seus repetidos triunfos na vida. — Se a nossa discussão, meus senhores, não é uma discussão ociosa, o que é muito provável, se semelhante coisa pode entrar tanto quanto possível no domínio dos fatos experimentais, se tudo isto que acabamos de dizer não é metafísica pura, a minha afirmação de há pouco tem valor, e eu vou dar-lhes a sua explicação. A minha certeza é o fruto de uma experiência que o acaso preparou magistralmente, numa época em que estes problemas apaixonavam os intelectuais, problemas que deram origem aos soberbos trabalhos de Gurnay, primeiro, e, logo a seguir, de Crooks, Lodge, com o seu célebre Raymond, trabalhos que suscitaram todas as curiosidades no mundo pensante. Nessa época, já relativamente afastada e por assim dizer ainda de ontem, que a época trepidante dos sem-fios e dos aviões destronou, não se falava noutra coisa: alucinações telepáticas, visões, lucidez, pressentimentos, aparições objetivas, etc., fenômenos ocultos, misteriosos, discutidos entre a zombaria e a incredulidade de uns e a credulidade medrosa de outros — eis o assunto de toda a conversação de uma ordem mais elevada ou com pretensões a tal. Eu lia tudo quanto se publicava sobre o caso, e hesitante, balouçado entre a dúvida e a certeza, intuitivamente crédulo e refletidamente descrente, preso deste indefinido mal-estar que nos avassala perante os fatos desconhecidos, fora do nosso conhecimento imediato, não conseguia firmar uma opinião, ver esboçar-se o prelúdio de uma vaga certeza.
Até que um dia, ou antes uma noite, o meu espírito sossegou, apoiado a uma absoluta convicção que os fatos até hoje não vieram desmentir.
Não, meus senhores, os mortos não voltam. Nada faltou à preparação da magistral experiência que o acaso me fez presenciar: campo experimental, cenário, ambiente particular, emoção elevadíssima, tudo! E, nessa noite, depois das rápidas parcelas de segundo de um voo para além dos limites do consciente, a alma pousou de novo no domínio da vida material sem ter visto, sem ter sentido nada.
O Dr. X. fez uma pausa, olhou a noite recamadinha de estrelas, e pareceu escutar a voz soturna das ondas, rezando o seu cantochão de eterna ansiedade.
— Foi em casa da Senhora L. — principiou ele.
— Você conhece, Veiga — disse, voltando-se para um rapaz alto e loiro, de monóculo —, a deliciosa velhinha que possui, num cenário de maravilha, le dernier salon ou l’on cause. Faz agora anos por estes dias. Festejava-se num jantar íntimo a saída, do colégio, da neta, a endiabrada garota que hoje é mãe não sei já de quantos taludos bebês. Estávamos todos no terraço, depois de jantar, naquele lindo terraço todo em mármore cor-de-rosa, janela escancarada sobre o mar, que parece ter sido idealizado por um paxá das Mil e Uma Noites. Estava eu, a dona da casa, Madame V., os dois irmãos Grey, o Ravara de Melo e aquela linda rapariga que o ano passado professou num convento de Segóvia e que você também conheceu muito bem, Lídia de Vasconcelos. Lembro-me como se o caso se tivesse passado ontem. Não sei que poder evocador se desprende desta noite, da melopeia destas ondas, que misteriosos eflúvios traz consigo o ar que entra por esta janela aberta, o certo é que preciso fazer um esforço para me convencer que isto não se passou ontem, que tantos anos não dispersaram já toda esta gente que evoco. Influência do cenário igual, da noite igual da discussão, talvez…
Os Estoris enchiam-se de pontos luminosos; o céu, de estrelas miudinhas. O Monte lembrava um presépio, como agora, sobre o mar a escurecer, a preparar o mistério das suas bodas com a Lua que vai surgir toda de branco.
Discutia-se um caso de telepatia narrado pelo mais novo dos Grey, aquele místico Robert de uma psicologia tão curiosa. Tinha visto, segundo ele dizia, a mãe entrar no seu quarto, depois de ter atravessado um comprido corredor que levava diretamente à alcova onde meses antes expirara. O caso levantou, como calculam, enorme celeuma. Na mesa ninguém se entendia; falavam todos a um tempo, faziam-se comentários, cada um expunha a sua opinião, contava um caso da sua vida. Houve risos, blagues, e, quando saímos para o terraço, deixando os dançarinos no salão, o Robert continuava, impassível, a garantir a autenticidade da sua história, e nós todos engalfinhados a discuti-la.
Parece-me estar ouvindo o Ravara de Melo, o cético elegante, rir com os seus espirituosíssimos paradoxos a escultural Madame V., aquela loira Madame V. de quem a Lila dizia que trazia a arder na cabeça todas as fogueiras de São João, o tom de máscula impassibilidade do Robert afirmando, a voz já apagada e tão doce da Senhora L.
O Dr. X. interrompeu o que estava a dizer para acender outro cigarro, rito praticado sempre com um raro deleite de sibarita, precursor do raro prazer de se intoxicar, operação que levava a cabo metodicamente, desde os Paxás da sua adolescência até aos preciosos Abdulas de agora.
— Que linda noite! — murmurou, como se falasse consigo próprio, e, em voz alta, continuando:
— Era uma noite assim; a pouco e pouco fomos adoçando as vozes para não quebrar a harmonia da hora, daquela hora de uma sobrenatural e mágica beleza que todos nós sentimos ser uma pausa na nossa vida brutal, um momento digno de deuses na nossa feia vida de homens, uma hora feita de envolventes bruxedos, tão pesada de perfumes, tão embebida de doçura que, maquinalmente, as mãos quase esboçavam o gesto de se estender para agarrar a hora maravilhosa que sentíamos fugidia e já perdida nos momentos que passam. O riso de Madame V., num dado momento, quase nos chocou como uma falta de tato, uma inconveniência, como se ela se lembrasse de aparecer nua diante de nós todos. De repente, elevou-se no salão a voz da Lila cantando a Balada do Rei de Tule.
Houve outrora um rei em Tule…
A voz profunda e pastosa entrava na noite como um punhal numa ferida: dilacerava-a. A pungente melodia fez-me subir as lágrimas aos olhos, e ao coração uma turba de recordações que eu julgava perdidas no mar da vida como a taça lendária sobre as águas do mar.
Calamo-nos todos, a ouvir. O ruído das ondas acompanhava em surdina a voz maravilhosa que subia e se espalhava na noite, que parecia concentrar-se e compreender como uma alma. Julguei naquele momento ouvir um soluço abafado, como se uma onda se tivesse quebrado ali mais perto de nós; voltei-me negligentemente como para pousar o cigarro numa mesinha que estava atrás de mim; não vi ninguém, a não ser a Lídia de Vasconcelos que tranquilamente mordiscava um cravo branco. Quando a voz se calou no arrastar dos últimos versos:
E a taça lá vai boiando
Por sobre as águas do mar…
fez-se um silêncio que nenhum de nós ousava ser o primeiro a quebrar. Sobressaltou-nos, numa impressão desagradável, a voz roufenha, monótona, do Robert, que num tom peremptório, num tom todo britânico, teimosamente preso à sua ideia, reatava o fio da discussão interrompida: “Os mortos voltam.”
A doce Senhora L. não pôde conter um sorriso. Aquele sorriso, naquela ocasião, vinha sublinhar a sua opinião sobre os Ingleses, opinião que eu conhecia e que achava de uma injustiça flagrante; mas vão lá convencer as mulheres da injustiça de uma opinião que elas criaram sozinhas!
A discussão acendeu-se outra vez. Ravara deitou novamente fogo às peças de artifício do seu espírito brilhante. O riso de Madame V. ecoou mais cristalino na noite pura…
Foi então que, de novo, chegou aos meus ouvidos o eco abafado de um soluço. Não havia dúvida, tinha sido um soluço. Voltei-me rapidamente. A Lila continuava a mordiscar o seu cravo branco, mas, olhando-lhe as mãos, compreendi tudo num relance: tremiam como as asas de uma avezinha presa.
O coração apertou-se-me cheio de uma imensa piedade por aquele tristíssimo destino da rapariga. “Vocês sabem a história… talvez”, disse ele voltando-se para o grupo que o escutava, e, a um sinal negativo do rapaz de monóculo: “Não? A Lídia estava noiva de um seu camarada, Álvaro Bacelar”, disse ele a um oficial da Armada que o ouvia, com uma grande atenção, de pé, encostado ao peitoril da janela; “não, você não pode lembrar-se; isto passou-se há anos, ainda você não tinha entrado sequer na Naval; de um seu camarada que morreu, vítima de um desastre no mar, oito dias antes do marcado para o casamento. O cadáver, apesar de incansáveis pesquisas, nunca mais apareceu. Era um esplêndido rapaz, dotado das mais fortes e sérias qualidades, de uma beleza viril que se impunha. Lembro-me muito bem da cara dele, principalmente dos olhos; tinha um olhar duro, um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma, que afirmava, que insistia; mas, quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se sente vasculhada, adivinhada até aos seus mais recônditos esconderijos, o olhar mágico dulcificava-se, aveludava-se, transformava-se na suavidade de um olhar quase feminino, lânguido e caricioso. Era realmente um belo rapaz. Lembro-me muito bem dele e da tragédia da sua morte. Nos primeiros dias houve sérios receios de que a noiva enlouquecesse. Eu fui vê-la nessa ocasião; depois, esteve numa casa de saúde na Alemanha, viajou pelo Oriente, foi a Jerusalém. Voltou, passados dois ou três anos, curada, segundo parecia. Reatou os seus hábitos interrompidos, viram-na de novo, mais linda do que nunca, os salões mais chiques da capital, e começaram, é claro, a fazer-lhe a corte. Nova, bonita, rica, por que não? O mundo é dos vivos, os mortos têm o seu à parte. Era natural que a pobre rapariga esquecesse, fizesse por viver, tentasse de novo fundar um lar, desejasse filhos, não é verdade? As mãos geladas de um cadáver não têm o direito de prender eternamente o coração de uma rapariga de vinte anos que crê na vida, mas as decepções, na turba cada vez mais numerosa dos pretendentes, foram-se multiplicando; Lídia de Vasconcelos atendia benevolamente todos, mas não se decidia a escolher nenhum. Vocês compreendem, um morto é um temível rival, um competidor seriíssimo que tem por si as mil vantagens que a ausência e a saudade lhe emprestam. A morte é o Reutlinger das recordações; na objetiva do coração foca-as para sempre em beleza imutável e única. Quando, naquela noite, lhe vi tremer as mãos pequeninas que, num jeito cheio de ansiedade, seguravam o cravo branco, quando a vi olhar num olhar de inexprimível desalento aquele mar, mortalha imensa de um ente que para todos era há muito apenas uma recordação diluída e que para ela era a única realidade existente, tive a impressão nítida de que o seu único, o seu obcecante desejo, naquela ocasião, seria o impossível prodígio de poder erguer, com as suas mãozinhas que tremiam, a ponta daquela mortalha, a dobra daquele grande lençol, e contemplar um minuto, um só minuto, os olhos estranhos, inolvidáveis, do morto. Senti que aquelas mãos só tinham forças para pedir ao destino aquela esmola. O seu vestido de rendas prateadas, na claridade leitosa da Lua, que se elevava acima das ondas, vestia-a de espuma a faiscar. O grande diamante do seu anel de noivado parecia grande e pesado demais para o seu dedo miudinho e frágil de bebê. Naquele terraço, quase às escuras, fez-me pensar numa imaterial aparição; parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraço e que se imobilizasse na expectativa de um prodigioso e inefável milagre.” A voz aguda e trocista de Madame V., respondendo à frase do Robert, sobressaltou-me como uma pessoa que, no melhor do seu sono, é acordada brutalmente para a realidade da vida. “Oh Robert, que candura a sua! Estes Ingleses!… Você teve muito simplesmente uma má digestão, coisa que acontece a muita gente. Será você sonâmbulo?” acrescentou a rir. Robert abanou gravemente a cabeça, o irmão sorriu com o seu frio, com o seu cortante sorriso saxônio. Vocês não podem fazer uma ideia: nunca vi sorrir um inglês, que não ficasse irritado. Aqueles sorrisos nus e ao mesmo tempo complicados, onde parece não haver nada e onde se adivinha tanta coisa, espicaçam-me como um aguilhão. Ia para responder; não tive tempo. A voz da Senhora L., que naquele momento se elevou, foi um unguento, um calmante no prurido da minha cólera absurda; serenou-me como por magia. Ela dizia, abanando tristemente a cabeça branca, que parecia de prata ao luar:
Não, Robert, os mortos não voltam e é melhor que assim seja… Que vergonha se voltassem! Onde há por aí uma alma de vivo que se tivesse mantido digna de semelhante prodígio?… Eles vão, e a gente fica e ri e canta e deseja e continua a viver! Mutilados, amputados, às vezes do melhor de nós mesmo, a gente é como estes vermes repugnantes que, cortados aos pedaços, criam novas células, completam-se e continuam a rastejar e a viver! É uma miséria, é, mas é assim!” “A voz da Senhora L. perdeu-se num murmúrio, casada ao murmúrio surdo das ondas, lambendo os rochedos da praia. No salão dançava-se animadamente um charleston em voga. Foi então que, na noite pura, na noite silenciosa talhada em horas de imperecível beleza, estalou o grito sobre-humano, o grito que, passados tantos anos, trago ainda nos ouvidos, que foi como que o comentário à margem de todas as minhas dúvidas e incertezas, que consubstanciou em si, no arrastar das suas notas trágicas, a resposta às minhas interrogações em frente ao formidável mistério da morte. Lídia de Vasconcelos tinha-se erguido na cadeira e, voltada para o mar, lívida, irreconhecível, estendera os braços, e soltara num grito, como um arranco, como um desgarrar de fibras, o nome querido: “João!”
Àquele brado de angústia, àquele chamamento, àquele apelo desesperado, a própria noite se enrodilhou cheia de medo e de assombro e todos nos entreolhamos à espera que das ondas surgisse o morto, novo Lázaro a um novo Surge et ambula. Foi um segundo de emoção como nunca tinha vivido, como nunca mais poderei viver. Foi um momento. Lídia tornou a cair na sua cadeira como um triste farrapinho branco, numa crise de soluços que a sufocava; todos se levantaram para a socorrer. Eu fiquei a olhar para o mar, o mar impiedoso que guardava a sua presa, que se espreguiçava molemente como uma fera que tem sono. Não, meus senhores, os mortos não voltam. Se voltassem, haveria um que naquela noite teria voltado, quando o chamaram.
O Dr. X. calou-se. Atirou para o jardim o cigarro meio consumido, e ficou pensativo, a olhar o mar, com os olhos rasos de água.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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