terça-feira, outubro 15, 2024

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Aluísio AzevedoContos, Crônicas e Poesias

Rendas e Fitas, Conto de Aluísio Azevedo

 

Rendas e Fitas

– Olá! exclamei eu, vendo saltar do bonde de Botafogo o meu querido Ernesto Branco. Bons ares te tragam! Como vais tu? Mas que diabo de cara tens agora? Estás zangado?

– Ora! Não me fales! Não estou zangado; estou aborrecido. Aborrecido com esta vida infernal do Rio de Janeiro; aborrecido com este calor selvagem, este calor inimigo da civilização e do trabalho; e aborrecido principalmente com as nossas patrícias, esses monstros de olhos sedutores e sorrisos virginais!

– Ó diabo! a cousa agora é mais grave… Dar-se-á o caso de que o meu espirituoso amigo levasse tábua de alguma moça com quem estivesse para casar?…

– Hein?! Casar?! Eu?! Com quem?!

– Oh! com qualquer moça do teu gosto…

– Por quê ! Que mal fiz eu, para me condenarem assim, sem apelação nem agravo!… Casar! Casar com uma dessas criaturinhas que neste instante acabam de encher-me de indignação e de vergonha? Casar com uma dessas moças ignorantezinhas, pretensiosas e malcriadas? Oh, nunca! Nunca! Nunca! Antes ser cão de cego; antes ser ministro do Sr. Floriano; antes ser leitor do Fígaro!

– Mas, que te fizeram, Santo Deus! para te ver neste estado de cólera contra o sexo mimoso?… para te ver assim terrível e feroz contra essas belas flores com alma, que são o encanto da nossa vida, o perfume do nosso lar, a segurança da nossa felicidade?…

– Que me fizeram? perguntas tu! Oh! dir-se-ia que nunca viajaste em um bonde em que vão patrícias nossas! Dir-se-ia que nunca cedeste o lugar a uma senhora, para vê-la aceitar a tua fineza, sem voltar sequer o rosto, quanto mais dizer “Muito obrigada!”

– Acanhamento!…

– Qual acanhamento! São acanhadas para cumprir com tão insignificante preceito de boa educação, mas não lhes falta desembaraço para protestar com uma careta, e às vezes até com um muxoxo, quando lhes chega a vez de se incomodarem para te dar passagem!

E o modo afrontoso e impertinente com que elas observam e esmerilham, medindo da cabeça aos pés, as pessoas que entram no bonde, será também acanhamento …

– Curiosidade de mulher…

– De mulher mal-educada! E’ muito feio que uma moça, pressuposta inocente e virginal, ou mesmo uma senhora já casada ou viúva, não possam ver entrar uma cocote no bonde, sem se voltarem de nariz torcido, sem a medirem com desprezo e azedume, arriscando-se a ouvirem uma merecida resposta! E não é preciso que seja uma de chapéu tapageur e vestido de cor criard a pessoa que entre no bonde, para ser analisada deste modo; basta ser uma estrangeira, uma estrangeira que não se vista pelo detestável gosto com que se vestem as nossas damas; quer dizer que não venha coberta de seda e veludo por um dia de sol ardente e não traga em cima de si todas as cores do céu e do inferno!

– Tu exageras!

– Não exagero tal! Agora mesmo acabo de presenciar revoltado uma dessas cenas. Estava uma família ocupando o banco em frente do meu: uma velha, uma senhora de meia idade, e duas moças de quinze a vinte anos; todas as quatro tudo que há de mais tipo brasileiro e de mais ridículo.

O grupo formava uma orgia de cores, de flores e de fitas; uma loucura de sedas, de lãs, de veludo, e de algodão.

Entra um casal americano do norte. O homem de calça e paletó de brim, chapéu de palha com toalha em volta, e guarda-sol de pano claro, a mulher com um singelo vestido de linho cor de palha, enfeitado de rendas da mesma cor, e na cabeça um abat-jour de linho branco, preso despretensiosamente ao pescoço por duas pontas largas de cadarço.

Pois, meu amigo, não imaginas o rebuliço que se produziu naquela família com a chegada deste casal, que aliás, nada mais fez do que entrar, assentar-se e pôr-se a conversar em voz baixa, natural e discretamente.

Oito olhos arregalados cravaram-se imediatamente sobre a americana com tal insistência que a nobre senhora começou a examinar-se, e perguntou depois ao seu cavalheiro se ela tinha em si alguma cousa que chamasse a atenção.

“Deus te livre!” disse a velha, com arrelia, dando um estalo de língua e torcendo enojada a cabeça, como para não continuar a ver um espetáculo indecoroso.

“Iche! desdenhou por sua vez a quarentona. Esta gente não tem vergonha de sair assim à rua?… Parecem mascarados, Deus me perdoe!”

E as duas moças começaram, de lenço contra a boca, a emitir consecutivas gaitadas de riso, e a remexerem-se no banco, e a cochicharem tão impertinentemente, que os americanos voltavam a cabeça de vez em quando, patenteando na fisionomia o mais completo ar de intriga e de assombro.

Não ouvi o que eles disseram lá entre si; vi, apenas, o desdenhoso movimento dos seus lábios e senti venetas de estrangular aquela família brasileira, tão tola, tão ridícula, tão chinfrim!

E ainda me vens falar em casamento! Mas a idéia que me dá ânimo para continuar a viver; a única razão por que não me atiro ao mar; o meu único momento de felicidade, é quando me lembro de que aqui no Rio de Janeiro, onde todos são mais ou menos casados, eu me conservo solteiro como no dia em que nasci! E, juro-te que não é da febre-amarela, que tenho medo, nem das bexigas, nem do beribéri, nem da legalidade do Sr. Floriano, nem da queixada do Sr. Aristides, é daquilo que ali vem. – Olha!

E Ernesto apontou para um grupo de três mocinhas que se aproximavam de nós, muito risonhas, acompanhadas pela mamãe; e deitou a fugir como um louco em direção contrária, a gritar.

– Livra! Livra!

E foi-se.

II

Não, Ernesto, vem cá. Senta-te aqui; conversemos tranqüilamente. Não comeces a gesticular como um louco e a dardejar paradoxos a torto e a direito! Ouve-me quieto e responde com bons modos, se não me queres ver tomar o chapéu e desaparecer pela porta da rua.

– Vamos lá!

– Foste ontem injusto e severo demais com as nossas patrícias. Concordo que nem todas as brasileiras mereçam a minha defesa; sei que há por aí muita mocinha impertinente e muita senhora insuportável, mas ninguém pode negar que a brasileira em geral é meiga, virtuosa e asseada,

– Não foi disso que tratei!

– Ouve. Tu conheces bem o tipo da inglesa, com a sua barriga de tábua, com o seu cabelinho louro grudado à cabeça e enrolado pobremente sobre a nuca; com a sua cintura de lâmina, muito estreita vista de lado, muito larga vista de frente; com os seus pés espalmados e longos, como uma canoa de pescador emborcada sobre a praia; conheces a famosa Miss, tão celebrada pelo lápis de Gavarni; essa misteriosa criatura de olhos celestiais, que em viagem se parece com um guarda-chuva inglês, metido cuidadosamente dentro da capa, e que em casa, no interior, lembra um vaporoso e fino caramelo encimado por uma trouxa de fios de ovos. Conheces a mulher inglesa?.

– Se conheço! Theóphile Gautier, o meridional romântico, o beduíno francês, que viveu para adorar as mulheres, e que amava e cultivava os gatos, por não poder fazer o mesmo com a pantera (que, depois da mulher, é o bicho mais feroz de criação), Theóphile Gautier dizia e repetia que as inglesas são as mulheres mais formosas do mundo!

– É exato. O que não impede que os outros franceses, ao vê-las atravessar o boulevard, tenham, sempre para ela as pilhérias mais terríveis e os ditos mais ridículos. Mas, passemos adiante: conheces igualmente a espanhola?

– Oh! Pergunta-me antes se conheço Byronl Não conhecer o tipo da espanhola!… Dançante seguidilha de amor que se transforma em mulher! Oh! se conheço! Mantilha, leque, castanholas e touros! Sou louco por ela! Vamos adiante!

– Pois, meu amigo, fica sabendo que as espanholas têm cousas detestáveis nos seus costumes. Â mesa, por exemplo: não há espanhola, por mais bem educada, que não leve a faca à boca, como se fosse um saltimbanco engulidor de espadas; e todas elas lambem os dedos; tiram com a língua o que fica de comida entre os dentes, e…

– É falso! É mentira! Não prossigas, ó caluniador! que te estrangulo aqui mesmo!

– E a italiana?…

– Oh! oh! O velho amor cavalheiresco! Beijos e punhaladas. Lábios grossos e quentes; punhais frios e penetrantes. Um conde assassinado ao luar, debaixo de uma ponte; a condessa veneziana fugindo com um tenor de olhos ardentes!…

Conheço! conheço! mas tudo isso cheira-me um pouco a macarrão e realejo!

– Quando não cheira pior… porque, meu caro, debaixo de todo aquele romanesco lírico e daqueles transportes de paixão, com punhal, cabelos soltos e dentes cerrados, mal sabes o que vai! A italiana em geral é boa para ser vista de longe. Só tem efeitos cenográficos. Não te aproximes muito dela, se queres conservar a bela impressão artística que recebeste!

– E da francesa? que me dizes tu da encantadora francesa?…

– Digo-te que é a mais vulgar de todas as mulheres… a que menos tem a linha original…

– Socorro! Socorro! Este homem acaba de enlouquecer!

– Não! Não enlouqueci! Não confundas a francesa com a parisiense. Fala-me desta, e eu te direi que a parisiense é a mulher mais feia e mais sedutora entre todas as filhas de Eva; eu te direi que só ela tem o segredo do amor que ri, e canta, e brinca; o segredo da amabilidade que satiriza e confunde como um piparote na ponta do nariz. Não é uma mulher, é uma bonita fantasia feita de cançonetas, aljôfares de champagne e rendas valencianas!

– Seduzem-no mais o espírito do que os sentidos. E’ a primeira mulher do mundo.

– Não! A primeira mulher do mundo, meu querido Ernesto, é a brasileira.

– E por que não a portuguesa?

– Porque a portuguesa aos trinta anos, idade da grande afeição da beleza feminil, em geral começa a barbar e a criar umas singulares bochechinhas ao lado do queixo, que lhe tiram todo o encanto e lhe dão ares de abadessa.

– E a brasileira então? A brasileira aos trinta anos está coberta de sardas; já se não aperta; já se não penteia; anda em casa com o roupão desabotoado sobre o ventre; arrasta os chinelos, e, às vezes, fuma até cachimbo!

– Não é verdade! Ou tens consciência de que estás mentindo ou não sei que diabo de brasileiras conheces tu! Repito: a brasileira é a primeira mulher do mundo. Sela se reúne tudo o que as outras possuem de melhor; ela tem a graça e o donaire da espanhola; tem o calor e o arrebatamento da italiana; tem o coquetismo da francesa, tem o asseio e a virtude das inglesas e o talento doméstico da alemã.

– Só lhe faltam, para ser completa, as barbas à portuguesa!

– Mas tem uma cousa ideal, que nenhuma outra possui como ela, e é a meiguice, o carinho profundamente sincero, a dedicação sem limites pela pessoa amada. Só a brasileira, só ela no mundo, tem o segredo de dar cafunés e de fazer certos quitutes e certos doces que nos arrebatam! Só ela…

Mas Ernesto não me deixou prosseguir, ergueu-se indignado e exclamou, enterrando o chapéu na cabeça:

– Ora, vai-te para o diabo! Estás apaixonado por alguma pasteleira! E eu a dar ouvidos a este comilão!

E foi-se.

 

   

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