Resposta, Conto de Aluísio Azevedo
Resposta
Sim, minha senhora, pode acreditar nas frases que me enviou na sua enternecida consulta, transcritas da carta que “Ele” lhe escreveu. São sinceras, afianço!
Ai, minha senhora como eu conheço esses casos!… A estas horas deve o infeliz estorcegar-se de agonia num dos círculos mais torturantes desse inferno subterrâneo do amor, para onde, depois dos beijos trocados à luz das estrelas ou no confidencial sigilo das alcovas, vão as almas penar tristemente com saudades e ciúmes às doidas e fugitivas horas que beberam de lábios juntos pela mesma taça agora partida.
O amor, interrompido na plenitude do seu enlevo, é a mágoa maior e mais amarga que o coração conhece. O homem, quando se vê forçado a deixar a mulher que ama, mal dela se afasta, sente logo, a rondar-lhe os passos, a retardar-lhe a fuga, o doloroso espetro da sua felicidade perdida. E essa sombra, expulsa com ele do paraíso, nunca mais o larga, acompanha-o, soluçando-lhe ao lado, gemendo e suplicando, a puxar-lhe a cada instante a negra túnica de desesperos que o infeliz a custo lá vai arrastando pela noite sem estrelas da sua retirada.
E se é ela que lhe foge dos braços… ah! eu tão já não é mágoa, é dor e verdadeira, que às vezes mata. Quando a mulher nos foge dos braços deixa-nos a alma vazia, como o abandonado molde de uma estátua.
Para onde formos, para onde fugirmos, havemos de levar a ausência dela. Em tudo que ouvirmos, em tudo que fizermos, havemos de sentir um pouco da sua essência, como se a ingrata se volatilizasse num doloroso aroma e estivesse a pairar sobre todas as cousas que nos cercam.
Cor, música, perfume, tudo nos diz que ela existe, mas tudo nos diz que ela está ausente de nós. Todos os objetos que vemos se ressentem dela, como se a nossa amada acabasse nesse instante de passar por eles. Descobrimos a marca do seu pé por todos os caminhos da nossa vida, o aroma da sua mão em todas as carícias que nos façam outras mulheres, um raio dos seus olhos mentirosos em todas as luzes da terra e em todas as luzes do céu, o negrume dos seus cabelos em todas as trevas do nosso abandono e o eco do seu riso e a harmonia da sua voz em todos os nossos íntimos gemidos e em todos os gorjeios e todos os murmúrios da natureza.
A feiticeira abelha passou por nós, fugiu, sumiu-se, mas o cristal ainda geme, ferido, às vibrações produzidas pelo roçar da sua asa dourada!
Estranha natureza das cousas! Quando a mulher, que nos enchia toda a existência com o seu amor, nos foge repentinamente, nós, que havíamos nela tudo concentrado; nós, que fazíamos dela a nossa melhor preocupação e o nosso único egoísmo; nós, que com o seu vulto querido escondíamos todos os aspectos da vida, todas as outras criaturas da terra, e tudo, tudo, que não fosse o nosso próprio amor; nós, que só a ela víamos, só a ela sentíamos, só a ela amávamos; nós, uma vez despojados da sua presença vamos encontrá-la virtualmente por toda a parte, a cada passo, e em todos os objetos que ela dantes não nos deixava sentir nem ver.
Como isto é penosamente verdadeiro, minha senhora!
Enquanto a possuíamos, ela representava para nós o mundo inteiro; perdemo-la, é o mundo inteiro que para nós a representa agora. O sol que se levanta fala-nos dela; a noite ao cair-no-la lembra com a sua primeira estrela. Uma mulher que passa, um pássaro que canta, tudo nos aviva a nossa saudade, tudo nos lembra a nossa amada ausente, tudo nos apunhala o coração. E quanto mais queremos esquecê-la, tanto mais a sua lembrança nos arrebata para as extintas épocas felizes do nosso amor. Os mais insignificantes de então dos quais até aí nem sequer nos recordávamos, transformam-se agora em objeto de saudade e fazem-nos chorar de dor.
E principiamos, minha senhora, a reconstruir todos e todos os episódios, até os mais íntimos, da vida de amantes que dantes tínhamos; começamos, com uma paciência inquisitorial, a apanhar do fundo da nossa saudade, um por um, todos os fragmentos do poema de amor que ela e nós estraçalhamos num fatal momento de cólera.
Não nos escapa a mais pequenina partícula do passado feliz; mergulhamos aos vales mais profundos da memória, para de lá voltarmos ofegantes com uma frase, uma palavra, um sorriso, que ela nos deu despreocupadamente nos tempos venturosos.
Tudo isso, todos esses nadas da ternura, têm agora grande valimento para nós; tudo isso ganhou prestígio e perfume aos olhos da nossa alma ferida. Uma flor sem destino que ela nos enfiara um dia na botoeira do fraque; algumas palavras que de outra vez nos disse, assentada sobre os nossos joelhos; um suspiro que lhe escapou quando em certa ocasião lhe falávamos de outra mulher; um sonho em que lhe ouvimos dizer baixinho o nosso nome; tudo, tudo, para o que não atentávamos então, surge-nos agora ao espírito, repassado de um melancólico arrependimento de não termos sabido melhor aproveitar em tempo aquela felicidade, para sempre perdida.
E eis que vemos a sua imagem, nítida, real, estendida no leito, com os olhos meio cerrados, um leve sorriso, em que transparece uma pontinha de fadiga, a entreabir-lhe as pétalas da boca. Íamos então a sair e, enquanto abotoávamos o sobretudo, de costas, indiferentemente, víamos a sua imagem refletida no espelho. Ah! nessa ocasião, loucos que somos! não reparávamos quanto ela era formosa! Olhávamos saciados para o mármore do seu corpo como um guarda de museu olha a nudez das Vênus gregas.
E continua o martírio: Vemo-la agora vestida, esbelta, pronta para o passeio, a prender uma flor ao colo, enquanto nós, estendidos num divã, esperávamos por ela a fumar ou a ler. E vemo-la assentada negligentemente à mesa do almoço, em roupa de manhã, ou mais tarde, às horas de calor, na chácara, a folhear um romance ou solfejar uma canção. E na rua, no teatro, na sala ou na alcova, é sempre ela que vemos, é sempre ela que encontramos, depois que ela nos fugiu dos braços.
E o tormento não pára mais, nunca mais, minha senhora! O cérebro não larga de raspar as paredes da memória. A saudade trabalha, trabalha dentro da nossa amargura, como uma toupeira dentro da terra, de dia e de noite, a escavar o passado, para extrair de lá as raízes do nosso amor com que ela, a bruxa, se alimenta. E é a chorar que sonhamos todas as sepultadas venturas que a perjura nos deu um dia; é com o coração aberto, a escorrer sangue, que nos arrastamos até à miragem dos beijos que já não existem; é com as asas partidas e as carnes alanhadas que de lá caímos desiludidos, desabando, como o anjo maldito, no mais fundo do abismo, da nossa dor sem esperança.
Ah, não! minha senhora, não! Ele não lhe mentia na carta que lhe escreveu. Responda e verá.
Mas, é preciso preveni-la de uma cousa, e é que os frutos da reconciliação por melhores, não valerão juntos uma só partícula da deliciosa mágoa que neste instante lhe faz arfar o seio e que ontem a levou tão comovida a consultar-me sobre o estado atual do seu coração.
Na união amorosa de um par, diz certo filósofo, é sempre um só o que ama; o outro deixa-o amar. Pois na separação deve ser o mesmo – um sofre e o outro deixa-o sofrer.
É o que lhe dou de conselho, minha senhora – deixe-o sofrer. Deixe-o lá, que sofra sozinho, porque, quando chegar a sua vez, juro que V. Exa. não me consultará sobre o caso; todas as loucuras aconselhadas pelo seu próprio desespero lhe parecerão boas, desde que a conduzam para junto da pessoa amada.