Uma Embaixada, Conto de Artur Azevedo
Uma Embaixada
Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema.
— Entra. Estava ansioso.
— Vim, mal recebi o teu bilhete. Que desejas de mim?
— Um grande serviço!
— Oh, diabo! trata-se de algum duelo?
— Trata-se simplesmente de amor. Senta-te. Sentaram-se ambos.
Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opiniões ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.
— Mandei-te chamar, continuou Minervino, porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há se der hoje por força.
— Estou às tuas ordens.
— Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?
— Sim, lembro-me… um namoro…
— Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão!
— Quê? Tu estás apaixonado?!…
— Apaixonadíssimo… e é preciso acabar com isto!
— De que modo?
— Casando-me; e tu que hás de pedi-la!
— Eu?!…
— Sim, meu amigo. Bem sabes como sou tímido… Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entrou ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: — Vá descansado, hei de fazer justiça, — eu respondi-lhe: — Vossa excelência, se me nomear, não chove no molhado! — Ora, se sou assim com os ministros, que dirá com as viúvas!
— Mas tu a conheces?
— Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido de minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.
— Mas que diabo! observou Salema, — isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!
— Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.
— Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?
— Ah! como todos os namorados, tenho a minha polícia… Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu… Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa. E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre: — Vai! Vai! não te demores!
Salema saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins.
No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.
— Que diabo! refletiu ele; não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez… Não seria mais natural que Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?… Mas, ora adeus!… eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.
Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de reps, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.
Salema esperou uns dez minutos.
Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se-lhe os movimentos, e não pode reter uma exclamação de surpresa.
Era ela! ela!.. a misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.
Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na Rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!…
— Oh! disse a viúva, estendendo-lhe a mão, muito naturalmente, como se fosse a um velho amigo; era o senhor?
— Conhece-me? balbuciou Salema.
— Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro, e, não sei porque… por simpatia, creio… perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem…. lembra-me que o puseram nas nuvens. Por que nunca mais tornei a vê-lo?
Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se mais tímido que Minervino, — mas cobrou ânimo, e respondeu:
— Não foi porque não a procurasse por toda a parte…
— Não sabia onde eu morava?
— Não; supus que nas Laranjeiras. Via-a entrar naquele sobrado… e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a vê-la.
— Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só se abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se… aqui… mais perto de mim… Sente-se, e diga o motivo de sua visita.
De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.
— O motivo da minha visita é muito delicado; eu…
— Fale! diga sem rebuço o que deseja! seja franco! imite-me!… Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido…
E apontou para o retrato.
— Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!…
— Minha senhora, eu sou…
Ela interrompeu…
— É o senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.
Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.
— É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações e quase rica. Não tenho filhos nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo! Salema quis dizer alguma coisa; ela não o deixou falar.
— Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.
Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.
— Mano, apresento-lhe o senhor Nuno Salema, o meu noivo.
O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:
— All right!…
Depois inclinou-se, de novo e saiu da sala, sempre apressado.
— Mas, minha senhora, tartamudeou o noivo muito confundido, imagine que o meu colega Minervino que mora ali defronte…
— Ah! aquele moço?… Coitado! não posso deixar de sorrir quando olho para ele… É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!…
— Mas… ele… tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar…
— Deveras?! exclamou a viúva Perkins.
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
E deixou-se cair no divã.
— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
— Que hei de dizer ao meu amigo? Ela ficou muito séria, e respondeu:
— Diga-lhe que quem tem boca não manda assoprar.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)