sexta-feira, março 29, 2024

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Aluísio AzevedoContos, Crônicas e Poesias

Vícios, Conto de Aluísio Azevedo

 

Vícios

Tarde de inverno. Ouvia-se o relógio palpitar soturnamente ao fundo da longa sala e ouvia-se o crepitar das asas de um inseto que se debatia contra as vidraças de uma janela fechada. A casa, na sua adormecida opulência coberta de pó, tinha um duro e profundo aspecto de tristeza.

Dois homens, pai e filho, um eternamente irresponsável e criança, apesar das suas rugas e dos seus cabelos falsamente negros, o outro já desiludido e velho, a despeito dos seus miseráveis vinte e poucos anos; ambos cansados, ambos tristes ambos inúteis e vencidos, quedavam-se, sem ânimo para mais nada, assentados um defronte do outro, olhando o espaço, como que vegetalizados ambos por um só e mesmo tédio, por um só e mesmo desgosto de existir, por uma só e mesma preguiça de viver.

Sentia-se desconsoladamente que naquelas escuras paredes sobrecobertas de enegrecidos painéis e desbotadas tapeçarias e naquele teto de estuque já sem cor e naqueles dourados móveis despolidos pelo tempo, há muito não ecoavam rir e palrear de crianças ou alegres vozes de família. Apesar dos dois espectros de homem que lá permaneciam imóveis, a casa toda parecia totalmente desabitada.

O velho de cabelos tintos levantou-se afinal, bocejando, deu como um sonâmbulo algumas trôpegas voltas pelo aposento, tomou um cálice de cognac da frasqueira que havia a um canto sobre um tremó antigo, acendeu um cigarro e encaminhou-se lentamente para o outro, a quem tocou no ombro.

– Então…. disse, parando defronte dele.

O rapaz fixou-o com o seu indiferente olhar de enfermo sem cura, e balbuciou suplicante:

– Prepara-me uma injeção de morfina… Sim?

– Não!

– Ora!

– Não é possível, meu filho…

– Por amor de Deus!

– Não. Só logo mais quando eu voltar.

O moço contraiu aflitivamente o rosto, em cópia de toda a sua dolorida contrariedade; e abateu-se mais na cadeira, deixando pender a cabeça sobre o peito e abandonando os braços ao próprio peso.

– Sentes-te mal hoje? perguntou o pai.

O interrogado sacudiu os ombros indiferentemente, sem levantar o rosto.

Pobre criança?… pensou aquele, refranzindo as rugas da sua marmórea e despojada fronte de velho folgazão. Muito caro pagas tu a minha loucura de te haver dado a vida!… Maldita hora em que consenti, por conveniências de fortuna, me casassem com tua mãe!…

O enfermo, como se lhe percebera o pensamento, ergueu os olhos para fixar os do pai; e este acrescentou, agora falando:

– Que falta te fez ela na infância!… tua mãe!

O moço deu de ombros outra vez com a mesma desdenhosa indiferença.

– Minha mãe… tartamudeou depois, pondo-se a olhar um retrato de mulher que havia na sala. Minha mãe… sei cá!… Nem sequer a conheci!

E, insistindo em contemplar o retrato, disse ainda com um suspiro bocejado:

– Era bem bonita minha mãe…

– Bonita e boa! Não serias, talvez, assim inútil e perdido para a vida, se nos teus primeiros anos ela te inoculasse no espírito, com o seu amor, as idéias do Bem, que eu nunca tive!

E prosseguiu, depois de sorver de um trago um novo cálice de cognac:

– Era uma boa criatura; era, não há dúvida! Honesta, friamente virtuosa, muito discreta e concentrada. Não sei se algum dia me amou, casou-se por obediência aos pais, foi sempre em absoluto indiferente às minhas carícias como às irregularidades da minha má conduta de homem casado! Mas, quem sabe, se ela não morresse logo depois do parto, se te não deixasse tão cedo sozinho comigo; quem sabe o que poderias vir a ser?… A nossa riqueza, o meu temperamento leviano e a educação ociosa e galante que me deram, tudo isso, meu pobre filho, conspirou contra ti e fez de teu pai o pior que até hoje existiu no mundo!…

O rapaz sacudiu novamente os ombros, com desprezo, enquanto o outro ia ainda esgotar um cálice de cognac à garrafeira do tremó.

Ah! se ela não tivesse morrido tão cedo!… exclamou o velho estróina, lamentosamente. E acrescentou, como se precisasse descarregar a consciência numa humilhante confissão de todo o seu crime paterno: – Vê tu que desgraça! Fui eu, eu só, o teu exemplo na infância, o teu guia, o teu mestre eu! Eu, que jamais compreendi deveres de espécie alguma, nem tive nunca esperanças no futuro, nem ambições de qualquer gênero, nem ao menos confiança e fé na família ou em Deus! Sei que sou homem, porque às vezes sofro! O companheiro fiel que me seguiu pela existência, meu filho, não foste tu, nem foi tua mãe ou algum amigo estremecido, foi a forte paixão pelos meus próprios vícios; e, na ausência destes, foi só o tédio que enxerguei sempre ao meu lado. Ah! como tenho remorsos de te haver feito viver!… Como fui mau, principalmente com relação a ti!…

– É exato! suspirou o filho.

– Como sou um pai digno da tua inutilidade e da tua degeneração! Como tu, pobre esqueleto gotoso, és bem o filho dos meus ossos!

E depois de outro cálice de cognac, o velho começou a declamar, em uma explosão nervosa, agitando os braços e dando à voz inflexões teatrais:

– Fui na existência um navio inútil, sem carga, sem destino, sem bandeiras e sem munições para nenhum combate! Vaguei, errante e perdido, por todos os mares largos do vício, sacudido por todas as tempestades e por todos os vendavais da intemperança e da luxúria! Cheguei à velhice como um casco naufragando com a mastreação partida, as enxárcias estaladas e o cavername arrebentado! Eis o que sou!

O filho afastou-o com a mão, enfastiadamente, a torcer o rosto aflito em um esgar de repugnância.

– Vai-te embora!… murmurou. Já estás bêbedo!…

– E é este despojo, continuou a declamar o pai, sem levar em conta aquelas palavras; e é este resto de naufrágio que há vinte anos representa para ti, minha querida vítima, todo o teu passado e toda a tua família!… Oh! sem dúvida que não serias isso que aí está prostrado nessa cadeira, a implorar por amor de Deus uma injeção de morfina, se fosses gerado por qualquer outro homem!… Perdoa-me ter sido eu o teu pai, meu filho!

– Mas, vai-te embora! Vai-te embora, por piedade! Para que me hás de torturar?!

– Amo-te, entretanto, pobre criança! sempre te amei! O meu amor, porém, nunca te serviu de benefício; fez-te ao contrário, caminhar até hoje pela minha mão no sombrio e úmido caminho da minha loucura, sem me lembrar, desgraçados de nós! que não tinhas tu herdado de mim, como eu herdei de meu pai, a resistência física que ele economizara durante a sua vida e que eu prodigamente gastei toda inteira, só comigo, nos meus prazeres egoístas!

– Mas, vai-te embora! São quatro horas. A primeira banca principia no Clube às quatro e meia! Vai-te embora! Vai jogar!

– Queres tu vir comigo?…

– Não.

– Vê se te resolves. .. Talvez até isso te faça bem…

– Não posso.. Sinto-me mal.

– Como tens um pai diferente do pai que eu tive!… Aquele que ali está naquele quadro, ao lado de tua avó, ah! esse era um homem!

– Não recomeces por amor de Deus! Vai-te embora!

– Aquele não conhecia tédios, nem fastios! Não tinha vícios! Trabalhou toda a vida! Triplicou a fortuna que herdou e que eu desbaratei antes dos trinta anos! Era um justo!

– Já sei de tudo isso! já mo disseste mil vezes! Vai-te embora! Vai-te embora, se me não queres ver disparatar.

– Se eu tivesse ao menos amado tua mãe… é possível, se assim fosse, que te salvasses!… E como merecia ela ser amada!… a infeliz senhora!… Ah! se a conhecesses, meu filho!… (E a voz do miserável começou a estalar, ameaçando abrir em soluços). Era uma santa criatura! Fria, indiferente, mas resignada e casta!… Imagina que eu…

O outro, porém, ergueu-se possesso e começou a agitar-se por toda a sala, bradando desabridamente:

– Mas que mal fiz eu para me torturarem deste modo?!

– Acalma-te! Acalma-te!

– Arre! É muito! É demais!

– Acalma-te, meu filho!

– Acalmar-me, é boa! Já me não posso conter! Era isto que querias?! Pois aqui o tens! Daqui a pouco estou por terra, espumando!

– Não! Não te apoquentes! Saio já! Saio imediatamente!…

– Agora! Agora pouco me importa que saias ou não! O que eu não queria era cair neste estado! Vê como tremo todo! Olha como tenho já a língua! Olha para as minhas mãos!

– Vê se sossegas!…

– Que inferno! Que inferno! bramiu o moço. E, depois de puxar pelos cabelos e bater contra a cabeça os punhos contraídos, exclamou, de braços e olhos arrancados para o teto: – Mas meu Deus! meu Deus! por que me fizeram viver?! Que espírito cruel me chamou a esta vida de lama, sem indagar se eu tinha forças para arrastá-la pelo mundo! Por que me entalaram nesta prisão que me dói, onde meu pobre espírito ofega oprimido e a minha carne geme e os meus ossos estalam?! E para que me deixaram cá dentro do barro podre deste corpo só prestável para doer, esta maldita consciência que marca os segundos da minha agonia como um relógio de médico; esta enfermeira coberta de luto que ronda a minha insônia e pesa a minha incalculável miséria, grama a grama, numa balança de hospital?! Por quê?! Por quê?! Que mal fiz eu ao mundo, meu Deus?! Amaldiçoados sejam os criadores de existências e mais os seus agentes e os seus cúmplices! Amaldiçoado sejas tu, velho libertino!…

– Meu filho…

– Vai-te para o diabo! Se ao menos pudesse eu matar-me! Mas o covarde instinto da vida agarra-me torpemente a esta carcaça epilética e leva-me de bruços pela existência, como a lesma rastejando na própria baba!

– Acalma-te, meu filho!

– Mostra-me então o meu lugar nesse alegre banquete, do qual nunca te levantaste! Mostra-me o meu talher e o meu copo! Aponta-me a cama da mulher que tenha lábios e braços para me amar! Vamos! O que é do meu quinhão? Devoraste-mo tu, Falstaff! Choras, hein? mas choras repleto e ainda não saciado! Choras, bem vejo! mas tens rido a vida toda com todas as dissolutas que topaste no caminho! tens palpitado de comoção em todas as bancas de azar! tens-te embriagado com todos os vinhos que existem na terra! E continuas a beber, a fumar, a viver noites inteiras no amor e no jogo; e eu?! O que foi que eu gozei até agora?! Deste-me para ama de leite uma das tuas cúmplices venéreas! desmamaste-me a cognac! levaste-me ainda criança a todos os lugares em que te corrompeste! fizeste-me, na idade em que se aprendem as orações fumar e beber para divertir os teus companheiros de libertinagem e fizeste-me macaquear os libertinos para servir de histrião às tuas prostitutas! És um monstro! Sai da minha presença ou eu te mato!

– Não! não, meu filho, não quero que fiques mal comigo!… Não ficarás! Aqui tens morfina!

– Morfina?! Ah! dá-ma! dá-ma! Perdôo-te tudo! Como és bom! como és bom, meu pai obrigado!

 

   

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One thought on “Vícios, Conto de Aluísio Azevedo

  • Em que ano esse conto foi publicado?

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