quarta-feira, outubro 9, 2024

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Artur AzevedoContos, Crônicas e Poesias

A melhor amiga, Conto de Artur Azevedo

A melhor amiga

I
A mais ingênua e virtuosa das esposas, D. Ritinha Torres, adquiriu há tempos a dolorosa certeza de que o marido a enganava, namorando escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer a profissão de modista.
Havia muitas manhãs que Venâncio Torres — assim se chamava o pérfido — acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava sua xícara de café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Notícias debruçado a uma das janelas da sala de visitas.
Como D. Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos que estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé ante pé, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a vizinha, que o namorava também.
A pobre senhora não disse nada: voltou para o quarto, deitou-se de novo, e à hora do costume simulou que só então despertava.
Tivera até aquela data o marido na conta de um irrepreensível modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não deu a perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não deixou escapar um suspiro.
Mas às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado, tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também, e foi bater à porta da sua melhor amiga, D. Ubaldina de MeIo, que se mostrou admiradíssima.
— Que é isto? Tu aqui a estas horas! Temos novidade?
— Temos… temos uma grande novidade; meu marido engana-me
E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.
— Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de súbito.
— E adivinha com quem?… Com aquela modista… aquela sujeita que mora defronte de nossa casa!…
— Oh, Ritinha! isso é lá possível!…
— Não me disseram: vi; vi com estes olhos que a terra há de comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!
— Olha que as aparências enganam…
— E os homens ainda mais que as aparências.
O pranto recrudescia.
— E eu que tinha tanta confian… an… ça naquele ingra… a…to!
— Que queres tu que te faça? perguntou D. Ubaldina, quando a amiga lhe pareceu mais serenada.
— Vim consultar-te… peço-te que me aconselhes… que me digas o que devo fazer… Não tenho cabeça para tomar uma resolução qualquer!
— Disseste-lhe alguma coisa?
— A quem?
— A teu marido.
— Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha melhor amiga.
D. Ubaldina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe carinhosamente as mãos, assim falou:
— Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar. Teu marido engana-te… se é que te engana…
— Engana-me!…
— Pois bem, engana-te, sim, mas… com quem? Reflete um pouco, e vê que esse ridículo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus hábitos, é uma fantasia passageira, um divertimento efêmero que não vale a pena tomar a sério.
— Achas então que…
— Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente fiel. Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices do Melo, e digo como dizia a outra: — Enquanto andar lá fora, passeie o coração à vontade, contanto que mo restitua quando se recolher ao lar doméstico.
— Filosofia no caso!
— Vejo que não sente por teu marido o mesmo que sinto pelo meu…
A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim:
— Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás que ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que por enquanto não passa, felizmente, de um namoro sem consequências, poderá um dia transformar-se em paixão desordenada e furiosa!
— Mas…
— Não há mais nem meio! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então o que deverás fazer.
— Aceito de bom grado os conselhos, minha amiga, mas não sei se terei forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.
— Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe. Quando um casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação dos filhos torna-se extremamente difícil.
Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignação a cruz do casamento.
II
Logo que ficou sozinha, D. Ubaldina que até então a custo se contivera, teve também uma longa crise de lágrimas.
Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos, a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição onde Venâncio Torres era empregado.
— Alô! Alô!
— Quem fala?
— O Sr. Venâncio está?
— Está. Vou chamá-lo.
Minutos depois D. Ubaldina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava falar-lhe com toda urgência.
Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma explosão de lágrimas e imprecações.
— Que é isto?! que é isto?! perguntou atônito.
— Sei tudo! bradou ela. Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com a modista de defronte!
Venâncio ficou aterrado.
— A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse.
E agarrando-o com impetuosidade:
— Ah! mas eu é que me não resigno, sabes? Eu não sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?
— Isso é uma invenção tola. Eu não namoro modistas.
— Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira, darei um escândalo descomunal, nunca visto… — Afianço-te que te arrependerás amargamente! Tu ainda não me conheces!…
Venâncio tinha lábias: desfez-se em desculpas e explicou, o melhor que pôde, as suas madrugadas.
D. Ubaldina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação. Entretanto, ameaçava-o sempre:
— Olha que se me constar que… Não te digo mais nada!…
Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coração intacto, Venâncio, que descia a escada, parou, e retrocedeu três ou quatro degraus para dizer a D. Ubaldina:
— Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua melhor amiga.
E desceu.
III
Oito dias depois, D. Ubaldina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes termos:
“Minha boa amiga. — Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive contigo, nunca mais Venâncio madrugou nem foi à janela. Queira Deus que isto dure! Como sou feliz! — Tua do coração, Ritinha Torres.”

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

 
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